quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Do Magrebe até Olhão

Uns pobres marroquinos tiveram o azar de atracar o seu barquito nas praias portuguesas e foi a confusão geral. A polícia recolheu logo os louros da mega operação para capturar aqueles malandros ilegais e as televisões montaram arraiais para ver se conseguiriam entrevistar os invasores, ou à falta de melhor, filmar a opulência do seu enorme barco de madeira. A histérica cobertura que foi dada ao caso, prende-se com um sub-reptício contentamento das nossas autoridades, por finalmente os africanos se deixarem de atracar em Espanha e apontarem o seu astrolábio em direcção à costa algarvia. Era sinal que os tipos davam valor ao que era bom. Mas o desapontamento não tardou em chegar com as declarações do intérprete do grupo. Então não é que o indivíduo dizia que o barco tinha como destino Cadiz? Pois é, afinal aqueles poucos Marroquinos que pensávamos terem escolhido um país próspero para atracarem, vieram parar a Olhão por falta de olho do capitão do barcote.
Existiram contudo, alguns aspectos que me deixaram algo baralhado. Um deles, a declaração de um responsável dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras, que, ao explicar a deslocação da embarcação com as correntes marítimas para a costa portuguesa, disse que “podia ter dado origem a uma grande tragédia…”. Mas haverá maior tragédia do que vir parar a Olhão em vez de Cadiz? Outra das questões que me custa a entender, foi a notícia de que irão ser levados a tribunal e receber ordem de expulsão dentro de 60 dias. É preciso galo. Não bastava aos tipos terem a infelicidade trocar Espanha pelo Algarve, de terem tido o enorme azar de serem apanhados pelos poucos polícias que temos a vigiar a costa, e ainda vão ter de gramar mais 60 longos dias aqui? O aparato era de todo desnecessário se a razão fundamental fosse apenas expulsão dos indivíduos em direcção ao Atlas marroquino. Ao perceberem o engano, eles tratariam de se auto-expulsar de forma espontânea. Consta até, que no primeiro momento em que ouviram falar português, além de espancarem o responsável pela desorientação, correram em direcção ao barco gritando em uníssono: Cadiz, Cadiz! Como tal não seria necessária esta medida de coacção. Se não queriam que eles fossem para Cadiz, então, com algum jeitinho, se os guardas que procederam à detenção lhes tivessem dito que nós tínhamos o Sócrates, a Maria de Lourdes e o Mário Lino à frente disto, eles até para o deserto voltariam a nado se necessário fosse.
Mas os 60 dias que foram dados para a expulsão, escondem a vontade latente de se falar no caso junto aos nossos parceiros europeus. Até agora os promotores da imagem de Portugal só se tinham lembrado do que de melhor o país tem: desportistas e fadistas. Mas não se lembraram dos marroquinos. E que melhor propaganda se pode fazer ao país do que ter sido a escolha para ser um local pelo qual vale a pena arriscar a vida dentro de um barquito de madeira? “Mas nós queremos ir para Cadiz!” Diziam os pobres coitados. “Alguém percebe o que eles estão a dizer em Tuaregue?”... “Ombre, si fior precisio nosotros também hablamos epanhol para fiquiarem aqui algun tiempo!... Bale?”
Depois apareceu o nosso Primeiro Ministro, descansando os portugueses com o facto deste ter sido um caso isolado, mas congeminando na melhor maneira de avariar mais uns quantos GPS nas embarcações africanas, no sentido de trocarem as Canárias por Tavira.
A grande dificuldade que as autoridades estão agora a ter, é a de manter enclausurados os marroquinos ilegais. Parece que os guardas prisionais já não conseguem ouvir mais a palavra “Cadiz”. No sentido de acalmar os ânimos, foi já disponibilizada uma viatura para eles poderem fugir rumo a Espanha. Quando lhes disseram que o tanque estava vazio e quanto tinham de despender para encherem o depósito de gasóleo, ouviu-se a resposta pronta: Afinal o que são 60 dias aqui neste belo país?

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Pai - Amigo


Estava a relação paternal tão descansada e eis que surgem os Pedopsiquiatras. Antigamente o pai dizia ao filho: “vai lá brincar com os teus amigos, mas estás aqui em casa às sete horas para ires ao banho e jantar”. Agora o pai diz ao filho “António, anda aqui brincar comigo até à hora de jantar, que eu sou um pai porreiro pá!” . Esta foi uma das grandes artimanhas que os tais pedopsiquiatras arranjaram para nos lixar a vida. Escondido nos livros, nas entrevistas, nas conferências, nas consultas, aí está ele para nos atazanar: o conceito do Pai-Amigo. E este conceito foi criado para atribuir ao pai, um papel que deveria ser do filho do vizinho do lado. Já ouvi pais dizerem orgulhosamente: “A nossa relação vai muito para além da simples filiação; eu sou o melhor amigo do meu filho!”. Alguma coisa está errada. Não era suposto o pai ser o melhor amigo do filho. Então é com ele que o miúdo vai comentar a magnitude dos seios da colega de turma? ou que bebeu uma ginginha às escondidas? Ou que jogou à batalha naval nas aulas de Matemática? Será com o pai que ele treina o seu léxico de asneiredo?... Não e ainda bem. O papel do pai é ser pai e não amigo. Aliás, ser pai é muito mais difícil do que ser amigo. O pai, para além de brincar de vez em quando, de aconselhar, também é aquele que dá um tabefe ao filho se este faltar ao respeito a alguém,….epá disseste tabefe?...nunca podes dizer tabefe,…nem sequer pensar nisso,…olha que os pedopsiquiatras andam por aí…
Tenho de confessar que eu próprio fui enredado por esta teia do pai-amigo. Também eu sinto por vezes, a pairar sobre as minhas acções educativas, os conselhos abalizados dos especialistas. E o pai bué da fixe é aquele que brinca muito. “Ó pai anda aqui fazer um puzzle da cinderela!”; “ó pai anda aqui brincar aos carrinhos!”; “ó pai anda montar uma casa na árvore!”;”ó pai vem andar de bicicleta!”; “ó pai faz-me lá um arco comós índios!”; “ó pai leva-nos ali ao parque da teia!”. E nós ali presos na teia da pedo-pedagogia. “Agora chega filhos, o pai está cansado”,…shiuuuu,…olha que o pedopsiquiatra anda por aí e ainda te diz que um “pai nunca está cansado de ser …pai amigo”. O pai vai-se sentar no sofá para ver um pouco de televisão “Ó pai agora vamos ver o dvd da pequena sereia, nessa televisão onde tu ias ver o futebol!”… “Sabes o que é que eu faço ao dvd da pequena sereia, sabes?”...Shiuuuuu,…lembra-te dos conselhos do doutor Alcides, “um pai nunca perde o controlo”… “Eu quero é que o doutor Alcides vá com o dvd da pequena sereia até à… Conchichina!”. Estas são as palavras do pai que já está um pouco farto de ser tão amigo.
Uma das variantes do Pai-amigo é o Pai-Ambrósio. O Pai-Ambrósio é o tipo que vai buscar o filho à escola e o leva às aulas no Instituto de línguas; depois vai buscar o filho ao Instituto de línguas e vai levá-lo às aulas de piano; depois vai buscar o filho ao piano e leva-o às aulas de natação. Tudo porque a criança precisa de ser estimulada o mais rápido possível, para aprender o mais rápido possível, para dar cabo dos pais o mais rápido possível. Podíamos também substituir o “estimular” pelo “ocupar”, que não é pedopsiquiatricamente tão correcto, mas na realidade há que ocupar a criança com aulas, muitas aulas, senão ainda sobra tempo para os pais terem de se chatear muito com ela em casa. Basicamente, o Pai-Ambrósio transformou em sentido literal, a abstracta função do pai “conduzir” a formação dos filhos.
Depois do pai ser Amigo e Ambrósio durante todo o dia, o miúdo diz “Ó Ambrósio,…ainda me apetece algo…”. Se ao Ambrósio não lhe apetecer dar algo,…o cachopo reclama e manda uns murros na mesa. Sim, porque agora um psicólogo até inventou um “Livro de Reclamações” para as crianças dizerem das suas ansiedades. Ao passar por uma livraria, abri-o um pouco a medo, e lá vinham expostas as inúmeras reclamações dos filhos(?). Numa página li qualquer coisa do género “o meu pai quando se zanga fica muito feio”. E não é que o doutor respondia à óbvia constatação do miúdo com uma frase do tipo “Sabes, tens razão,…”, entre um pai zangado e o Yeti, a diferença está apenas na pelagem. No nosso tempo, um filho que abrisse a boca para reclamar “Mas porque é que tenho de me sentar na mesa de jantar a…” já tinha apanhado uma galheta antes de chegar às “horas”.
Naquele dia o pai chega a casa cansado e diz ao filho que não lhe apetece brincar, nem contar histórias, nem fazer puzzles, nem pensar no Doutor Alcides. A criança reclama: “ Vens brincar e é já!”. O pai admirado responde “Mas tu pensas que estás a falar com o teu amigo ou quê?...”

domingo, 11 de novembro de 2007

Dia dos bolinhos

Decidi retomar com os meus filhos a tradição do dia dos Bolinhos. Lembro-me do gozo que me dava sair com a minha irmã a tocar nas campainhas da vizinhança, esperando que alguém nos abrisse a porta para podermos gritar: “Boliiiinhos!”. Depois da uma extenuante manhã, sentávamo-nos na cozinha e espalhávamos em dois tabuleiros distintos o fruto da nossa recolha. Comparávamos rebuçados, broas, nozes, chupas e bolachas Maria que nos davam os mais forretas, para depois metermos o dente na massa e apanhar uma barrigada daquelas.
Quando no dia anterior, preparava os miúdos para esse dia, eles começaram logo por perguntar: “Mas porque é que no Halloween nós vamos pedir bolinhos?” Expliquei “Filhos, o Halloween não tem nada a ver com os bolinhos,…” fui interrompido… “Posso levar o fato de vampiro?”…prossegui “Mas os bolinhos são uma tradição nossa e…” fui novamente interrompido “eu cá vou de bruxa e com uma vassoura para bater nas portas!”… “Filhos, sabem que essas tradições não são…” mais um assalto “Eu vou levar a abóbora metida na cabeça e pregar um cagaço quando nos abrirem a porta!”…. perdi a pachorra “Chega! Não há Halloween! Halloween é na América ! Bolinhos em Portugal!...Perceberam!”. Senti nas suas caras um enorme desapontamento. Com uma voz trémula questionaram: “Então e as máscaras? os disfarces que vendem no Modelo? Os dentes de vampiro? Os sustos? As cobras e as aranhas?” . Percebi, que prescindiriam de bom grado dos bolinhos, se pudessem vestir capas negras e pregar sustos às pessoas. “O Halloween é mais uma invenção para os pais gastarem dinheiro!” Desabafei. Ao menos podiam arranjar um nome que a malta percebesse. Voltei à carga “Amanhã vamos tocar às campainhas e cada um leva um saco de pano para guardar as guloseimas que nos vão dar”. A ideia das guloseimas lá acalmou um pouco a frustração de não haver Halloween e consegui contar a minha experiência infantil sem ser muito interrompido.
No dia seguinte, lá fomos de porta em porta em busca dos bolinhos. Depois de instruir os miúdos da forma cantada como teriam de entoar “boliiiinhos” ,fomos à luta. A primeira casa foi logo a da avó, para criar uma primeira experiência positiva. Os avós são sempre generosos e vá de receber uma oferta de relevo para começar bem a colecta. Partimos em seguida para a aventura: os vizinhos da avó. A tarefa é facilitada porque alguns já conhecemos, outros apenas de vista. Tocadela, daqui, tocadela dali e vizinhos…nada. Mas o moral não esmorecia. Os sacos estavam bem abertos e a voz bem preparada para o grito. Ao afastarmo-nos da 5ª porta, lá ouvimos um ranger e…”boliiiiiinhos!” Conseguimos a primeira oferta em território alheio: umas belas nozes! Agradecemos e recebemos um reforço na equipa. Juntou-se o Salvador e a sua Tia que, tal como eu, queria transmitir ao rapaz a saga dos bolinhos. “Ó pai olha esta casa tem as persianas abertas! Aqui vamos ter sorte!” Tocaram na campainha, no batente, na porta e…nada. Vimos a vizinha seguinte a entrar em casa e gritámos em uníssono “Boliiiiinhos!” antes de qualquer possibilidade de fuga. Lá vieram uma quantas broas de mel para dentro dos sacos. Depois dessas broas passámos por um período de abstinência mais ou menos prolongado. Em 9 casas não obtivemos qualquer resposta. Comecei a notar algum esmorecimento nas hostes mas “Um caçador de bolinhos nunca baixa os braços, quanto muito levanta os braços para espreitar para o interior do saco!”. Depois desse período de trevas, as crianças tocaram a uma campainha ainda algo descrentes. Veio uma senhora, espreitou um pouco a medo pela pequena abertura da porta e …. “Boliiiiinhos!” . O susto foi grande, mas teria de compreender que há já algum tempo as crianças não gritavam. Ainda denotando algum receio deu uma moedita a cada um dos petizes. A minha filha mais velha declinou educadamente a oferta. Eu tinha ouvido dizer que o dia dos bolinhos se tinha rendido ao vil metal, e em vez de broas os miúdos arriscavam-se a trincar uma moeda de 20 cêntimos. Quando a senhora viu a sua oferta ser rejeitada, percebeu que não se tratava de uma qualquer esquisitice, mas que estávamos ali de forma genuína à cata das guloseimas. Fez um sorriso e libertou-se do receio. “Esperem um pouco que venho já!”. Depois de lá ter ido dentro e, antes de despejar rebuçados nos sacos impacientemente abertos, colocou uma das mãos na cara de cada criança e perguntou: “como te chamas querido?...”. Olhei para a senhora e encontrei aquilo que procurava no dia dos bolinhos. A lembrança daquela senhora de cabelos brancos que morava numa rua perpendicular à da minha mãe e onde eu e a minha irmã, encontrávamos sempre as melhores broas. E só as mereceríamos depois de sentirmos a palma da sua enrugada mão na nossa cara e um carinhoso “Tomem lá meus queridos!”. Ali não havia necessidade de desligar a campainha ou esconder-se atrás das cortinas. Havia prazer, um prazer enorme em dar, igual ao que nós tínhamos em receber. E como as broas eram saborosas….
Estava eu a meditar na minha infância e na senhora simpática das melhores broas do bairro, quando o meu filho mais novo me puxou pelas calças e perguntou: “Pai, achas que para o ano posso vir pedir bolinhos mascarado de Homem-Aranha?”

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

A Percentagem da Média Europeia



Preciso de desabafar. Mas não me basta desabafar com o pessoal cá de casa. A magnitude da minha indignação não desaparece com uma simples queixa à esposa ou aos filhos, até porque eles começavam logo a gritar: Queixinhas! E pai que se preze não pode correr esse risco. Decidi assim, exteriorizar a minha mágoa e submeter os leitores ao meu manifesto de revolta sobre o rumo que o ensino em Portugal está a levar. E eu pergunto em jeito de catarse: Como é possível tanta IMBECILIDADE? …Ahhhhh,….pronto,… já me sinto um pouco mais aliviado. Desculpem, mas tinha este sentimento a dar cabo do meu intestino grosso. Não sei bem porquê, mas quando penso nas medidas recentes para dar cabo do que resta do ensino, só me vem à cabeça…o intestino grosso(?). Sou professor há 16 anos e, quando comecei a dar aulas, estava convencido que o meu papel seria precisamente dar boas aulas aos meus alunos. Agora vêm-me dizer que o meu papel passará pela elaboração de resmas de papel cheias de percentagens. A minha visão do ensino, onde o professor se empenha para educar os seus alunos, para lhes ensinar matérias e valores humanos, está caduca. Agora a malta só quer saber de percentagens. Tudo começou porque a nossa percentagem de abandono escolar era muito superior à da média da união europeia. Já contaram as vezes em que se ouve a “média da União Europeia”? E à “média” aparece sempre adjacente a “percentagem” e a este termo também aparece sempre um tipo de gravata a dizer “temos de mudar estes valores!”. Que valores?...os das percentagens em relação à média. Temos de apostar de uma vez por todas na “Formação”, dizem os entendidos. E eu fiquei a pensar: Ora bem, formação, educação, exigência, disciplina, competência,…Não!...percentagens! Medida de fundo? A transformação de objectivos educacionais em números. Assim, as escolas mais brilhantes para se candidatarem ao título de ”Escola Mais Dentro da Percentagem da Média da União Europeia” devem atingir percentagens de sucesso na ordem dos 95%. Mas e se, por um acaso, a turma for assim muito fraquinha…Não Podem!...e se na turma existirem muitos alunos que se estão marimbando para as aulas …Não Podem!...e se na turma, existirem no teste de Português respostas do tipo “ Sofia de Mello Quê?...Sofia só conhesso a gaja da padaria que tem umas gandas trancas!”…Não Podem, e pronto! Com o “Pronto” aparecem todos os planos de recuperação para esses alunos que têm grandes dificuldades em manter atenção à aula, porque ali ao lado, no café, estão os amigos a beber uns finos e a fumar umas coisas que fazem um gajo rir. Mas se por sua vez, estes planos de recuperação não resultarem, elaboram-se novos planos de recuperação, até que o aluno consiga recuperar(?)…nem que seja da ressaca da noite anterior. O termo recuperação suscita-me algumas dúvidas. Recuperar pressupõe o acto de reaver algo que já se adquiriu. Mas se os tipos não sabem, nunca souberam, nem querem saber, vão readquirir o quê?. Mas agora descobri o que os entendidos queriam dizer. A recuperação no ensino moderno funciona da seguinte maneira: “Ó Vasco descobre aí quanto é a raiz quadrada de 58!”….(isto é o Vasco a pensar)….Hã? responde o Vasco. “Temos de fazer um plano de recuperação para ti Vasco.”… “Dá-me lá então um exemplo de 2 números cuja soma dê 58!”....(Vasco pensa novamente)…”Hã?” “Pronto, agora que já te fiz uns planos de recuperação, esta vais resolver: Qual é o número que aparece após ao 58?”... Ó profe, “após” quer dizer o quê? …Ó Vasquinho (isto é o profe a “recuperar” a infância perdida do Vasco),…ficamos pela conta de somar do 5 + 8, está bem? E o Vasco viu recuperado o seu conhecimento do 1º ano durante a frequência do 10º ano. “Muito bem Vasco, conseguiste chegar ao número 13 sem calculadora (parece que já a querem incluir no ensino básico, que isto de fazer contas dá muito trabalho). Estou mesmo a ver o futuro patrão do Vasco na empresa de caixilharia, a fazer-lhe planos de recuperação depois do rapaz ter montado 20 janelas um pouco desniveladas. “Vamos lá Vasco, lixa lá mais 10 caixilhos que um dia chegas lá!” Agora com o novo estatuto do aluno parece que o Vasco nem tem de ir às aulas para recuperar. Isto é que é exigência! “Patrão, hoje não me está a apetecer ir montar janelas!...e se calhar amanhã também não, vou dar um giro com a Vanessa!”..Ao que o patrão responderá: “Ó Vasquinho…, vai lá, mas olha que vou ter que te fazer um exame de recuperação!”
E temos assim milhares de Vascos como este, que conseguem cumprir a escolaridade obrigatória (parece que vai ser até ao 12º) sem saber quem era Camões e sem saber que para se ter algo tem de existir esforço. Se até o Cristiano Ronaldo sabe que “Se não se mexer, não rende”? O contra-senso disto tudo, é que nunca a sociedade exigiu tanto de nós enquanto profissionais; e nunca a escola exigiu tão pouco dos seus alunos enquanto futuros profissionais.
Desculpem, mas tenho de fazer outra catarse a ver se consigo aliviar novamente a tensão: “A todos os Pseudo-pedagogos que estão a conseguir transformar o ensino neste conteúdo inerte, cheio de permissividade e facilitismo, o meu mais profundo e intenso DESPREZO! ”… A vantagem de libertarmos assim, em jeito rude, as nossas energias negativas, reside no facto de nos manter mais calmos na espera paciente pelo dia, em que alguém consiga pôr em prática um plano de recuperação do próprio ensino.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Ouvi dizer...


Sempre tive vontade de escrever uma crónica baseada no boato. Afinal se todos os dias vemos informação sustentada em boatos, porque não poderei também eu, explorar o meu próprio boato. Infelizmente, associou-se ao boato uma imagem depreciativa, uma espécie de falsidade expressa na frase “Isso são só boatos, foi tudo inventado para denegrir a imagem do homem! Então não se vê logo que não é pedófilo?…; que os rapazolas que saíram de casa dele em tronco nu, eram entregadores da Pizza Hut?”. Mas o boato ou rumor como lhe queiram chamar, não tem de ser necessariamente falso. É apenas uma notícia não confirmada. Pode ser ou não falsa. Pois bem, estava eu a ver televisão na horizontal e, ao fim de 10 minutos, já estava como sempre fico depois de ver televisão na horizontal: a dormir profundamente. Tinha começado a sonhar com informações não confirmadas, mas eram boas informações. Às tantas comecei a ouvir o som estridente da televisão embrenhado no âmago dos meus boatos mentais. A minha mulher tinha aumentado o som para ouvir um debate sobre a pobreza. Como os meus sonhos em forma de boato estavam a correr às mil maravilhas (estava a sonhar com um tipo a sussurrar: “ouvi dizer que o deficit vai acabar…), não houve som estridente ou pobreza que pusesse fim a este saboroso e enriquecedor rumor. A partir daí, se me mantivesse a dormir, só criaria boas notícias não confirmadas. Entre o boato e o debate, de longe o primeiro. Ainda levei uma cotovelada acompanhada de um “não queres ouvir?”, mas deixei-me estar a roncar, preferia esperar para …ouvir dizer na manhã seguinte.
Na manhã seguinte, ouvi dizer (ora aqui está o boato!) que a determinada altura, no tal debate, que não ouvi e como tal não posso confirmar, um tipo disse acerca da pobreza, que um dos sinais para se saber se o indivíduo é pobre, é o facto de não ter computador em casa(?). Pode ter jipes, os dois filhos a estudar em escolas particulares, cães a comer ração da Eukanuba, mas se não tem computador…é pobre! Parece que… (outro boato encoberto pelo “parece”) os tipos da Caritas e outras obras sociais ainda tentaram demover o senhor contando-lhe das sopas dos pobres e ajudas domiciliárias, mas o senhor continuava na sua ideia de que “sem computador um tipo está a uma passo de se lançar da ponte Dom Luís com um tijolo agarrado aos pés” . Decidi inventar o meu próprio boato, e parece que o senhor disse para o representante da Caritas: “Mas antes de dar a sopa ao mendigo perguntou-lhe se ele tinha computador em casa? É que se tem, não come sopa!” Aliás, como grande obra de fundo, Ouvi dizer que está já em marcha a distribuição de computadores (onde já ouvi isto?) por todos os sem abrigo das ruas de Lisboa, no sentido de fazer com que deixem de ser …pobres. Então e a sopita?...Tem computador?...Não come!...Não tem computador?...Então tome lá a canjinha! Parece que no tal debate também se disse que os pobres, para manter o status, quando tinham algum dinheiro estoiravam-no em tudo menos em bens essenciais. Compravam para se sentirem menos pobres. Ouvi dizer que num casebre no meio da serra do Caldeirão, o filho perguntou ao pai: “Oh pai! É hoje que temos arroz para o jantar?...ao que o pai responde: “Meu estafermo!...Não vês que antes desses luxos alimentares temos de comprar um LCD para pôr ali à frente daquela janela que não tem vidro, que é para ver se tapamos as corrente de ar, pá?!”. Depois de tomar conhecimento destas informações não confirmadas sobre a pobreza extrema em Portugal, cheguei à escola e um amigo contou-me que tinha visto uma reportagem na televisão sobre uns miúdos no Gana que são vendidos pelos pais aos pescadores locais, para serem mantidos em regime de total escravidão, trabalhando 14 horas por dia. Comem uma refeição diária e, para além de pescarem desalmadamente, têm como função ir desprender redes no fundo do lago infestado de crocodilos, a uma velocidade que lhes permita sair de lá com todos os membros. Estava eu a ouvir falar da pobreza em Portugal,…dos pobres que compram roupa de marca para manterem o Status e de repente dou por mim a ouvir falar de outros pobres que vendem os filhos de 4 anos por 30 euros para serem comidos por crocodilos. Ouvi dizer que o tal senhor do debate, se apressou a ir à estação de informação que publicou essa notícia das crianças pobres ou das pobres crianças do Gana e em tom frenético lhes perguntou: E digam-me lá!....os miúdos?...Têm computador?....

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

A senhora do elevador



Aquele elevador está num sítio isolado. Existe outro ali bem perto e mais arejado, mas optei por aquele, porque fica mais perto do estacionamento. Saí do carro à pressa e entrei de rompante no hall de espera do elevador. Deparei-me com uma senhora encostada à porta sem desviar o olhar da mesma nem por um segundo. Achei estranho, mas lá fiquei, com ela, à espera do ascensor . Ao observar com mais atenção notei que, aquele encosto do nariz à porta de metal, transportava uma certa tensão, aliás uma excessiva tensão para estar apenas relacionada com pressa de subir. Pressionei mais uma vez no botão de chamada e, para aliviar a tensão da senhora, disse umas fúteis palavras do tipo “parece que não quer nada connosco”, ao que a senhora (sem retirar os olhos da porta de aço) e com cara de poucos amigos disse a bufar “poooça não há paciência!”. Continuei a achar estranho, mas calei-me. Será que alguma amiga lhe tinha dito que a campanha de saldos terminava dentro de minutos? ou que estaria ali o Cristiano Ronaldo a dar autógrafos? Aquela impaciência e tensão transportava afinal de contas uma sensação de medo. Medo do indivíduo que entrou ali de forma inesperada e abrupta, sem lhe dar tempo de reagir. Ficou enclausurada entre a porta e o peito de um desconhecido, que poderia muito bem ser um violador,… ou pior: um violador e assassino;… ou ainda pior: um violador , assassino e adjunto de secretário de estado. Apeteceu-lhe fugir mas era tarde; e o elevador tardava em chegar, para que ela visse terminado o seu calvário mais rápido. A porta abriu e entrou de forma fulminante para o cantinho do cubículo. Queria aliviar o sofrimento da senhora com um diálogo enriquecedor sobre as condições meteorológicas ou a crise no Médio Oriente, mas fiquei com a plena convicção, que à primeira palavra que emitisse, apanhava logo com a carteira da senhora nas ventas e um pontapé nas partes baixas seguido de um “Socorro!...Gatuno!”. Mantivemo-nos ali num sepulcral e incomodativo silêncio, durante os intermináveis segundos que a subida demorou. Cada um no seu canto da masmorra, esperando pela libertação. Ao sentir-me um homicida depravado, vieram-me à memória, as minhas férias de infância passadas numa aldeia de Trás-os-Montes, onde todas as pessoas se falavam, mesmo sem se conhecerem. Dizia-se “Bom dia!” quando nos cruzávamos com desconhecidos na rua, no campo ou na mercearia , apesar do dia por vezes não estar lá grande coisa. Mas também o sorriso largo não era dispensado para acompanhar o generoso “Bom dia!” . Estava eu entretido com as minhas memórias de sorriso largo e lá estava a senhora com ar carrancudo, pronta para me lançar o spray paralisante nos olhos, ao primeiro movimento suspeito que esboçasse. Mas aquele desconforto serviu para me fazer pensar no absurdo dos tempos urbanos. Dos tempos em que ninguém fala com ninguém, mesmo quando partilha um exíguo elevador; em que todos têm na cabeça a última notícia do jovem que degolou a namorada ou a criança que foi raptada; dos tempos de olhar apavorado por cima do ombro quando se retiram as notas no Multibanco; em que não se deixam as janelas abertas por causa dos ladrões; dos tempos em que não se tem tempo. Estava eu a pensar nos tempos modernos e lembrei-me da púcara(?). A púcara que encontrávamos junto à fonte que trazia água da serra do Marão e que estava ali, para matar a sede a tipos como nós, que por ali passavam durante as caminhadas. De vez em quando, encontrávamos o dono daquelas terras e…do púcaro, que nos presenteava com uma cavaqueira de quem não vê alguém há muito. Alguém que pode escutar os seus desabafos sobre as dificuldades dos cultivos, a frescura da água da montanha ou a sacana da cabra que ainda não voltou do pastoreio.
Finalmente, a porta do elevador abriu e a senhora fugiu disparada para longe das mãos do eventual violador, rumo à libertação. Ao confrontar-me com o seu óbvio alívio, pensei o que teria acontecido se lhe tivesse lançado um efusivo “Bom dia!”. Talvez tivesse a marca da sua sacola estampada na minha testa…

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Quando os homens também choram



Eu vi os tipos agarrados a chorar e tive vontade de chorar. Berravam o hino, como se disso dependesse a sua vida e a do seu país. Viam-se as bocas bem abertas, as mãos bem firmes no pescoço do companheiro do lado e as vozes roucas embargadas pela emoção de ser português e estar ali, naquela hora a empunhar orgulhosamente o “Nobre povo nação valente” perante o mundo. Mas eu vi apenas o que me deixaram ver. Eram os nossos primeiros representantes na Taça do Mundo de Râguebi, que se preparavam para jogar. O jogo, esse, não o vi, simplesmente porque o canal público, para o qual todos contribuímos alarvemente, achou que a modalidade não tinha qualquer interesse público(?), bom pelo menos não tanto como a cobertura ininterrupta do caso Madelaine baseada em fontes próximas da polícia e do casal, o concurso Herança de Verão onde uns tipos gamam a massa dos outros ou aquela novela portuguesa representada por actores brasileiros. Continuava com a imagem daqueles matulões chorando convulsivamente e não pude deixar de me sentir orgulhoso ao ver o orgulho que os tipos tinham do país. Mas apesar do sinal de patriotismo, o país parece que não reparou neles. Afinal porque vale a pena reparar nuns tipos que vão lá só para perder por menos de 50 pontos com a Escócia? Afinal somos um país regido pela excelência, onde tudo é soberbo, onde apenas interessa a vitória, estamos habituados a sermos os primeiros em tudo. Será assim desprezível assistir à luta de jogadores para não perder por muitos; nós só conseguimos ver alguém a ganhar por muitos! Talvez por isso o quarto lugar no mundial de atletismo de Naide Gomes ser uma desilusão. “Então e a medalha miúda? Tu não consegues fazer melhor do que seres a quarta melhor do mundo? …que miséria…”. Mas voltemos ao Râguebi e à única selecção amadora entre as 20 melhores do mundo. Aos tipos que se reúnem depois do trabalho para se embrulhar na lama, que perdem fins de semana para jogar em estádios com 20 espectadores, que jogam lesionados para que se consiga chegar lá,…à taça do mundo, para que o país se pudesse orgulhar deles, do seu esforço, da sua dor e da sua voz a cantar o hino. Mas a busca da audiência desenfreada, fez com que o esforço destes atletas, passasse à margem do país. E perdeu-se a oportunidade de dar a conhecer o jogo de Râguebi, um jogo onde se cultiva o espírito de superação colectiva, onde existe um confronto duro mas leal, onde os jogadores não chamam nomes ao árbitro, onde o adversário vencido saúda no final o vencedor, um jogo em que cada metro de terreno é ganho através de muita luta, dor e dentes partidos. Será que ninguém vê utilidade pública aqui? Utilidade de educar para a superação, para o esforço, para o “ir à luta”. Não é isto que o país precisa de ver? Não. Porque a maior parte da malta encara o facto de sermos os últimos da Europa como uma sina, um facto inalterável. Aqueles matulões que choraram a ouvir o hino, apesar de saberem que têm poucas hipóteses de vencer, vão à luta, dão encontrões, agarram as pernas dos adversários, espetam-se de cabeça no meio da molhada.
Já eu tinha começado a escrever esta crónica e, por pura e inusitada coincidência, um amigo enviou-me em email, a comparação desse momento sublime e enérgico dos jogadores de râguebi gritando o hino, com o momento apático e flácido dos jogadores da selecção de futebol a entoarem entre dentes a nossa portuguesa. É uma constatação paradigmática: Os que têm toda a gente a torcer e a cantar com eles, os que são vistos na TV, os que ganham balúrdios para darem uns pontapés na chicha ou não cantam o hino ou cantam-no baixinho; aqueles que não ganham um chavo, que ninguém sabe o nome deles, que para os ver tem de se pagar a mensalidade da sport tv, os que apesar de saberem que vão levar umas cotoveladas e placagens, choram como crianças com orgulho e felicidade de serem portugueses.
Tenho de arranjar maneira de ver os restantes jogos da selecção de râguebi, para poder cantar com eles aos berros o hino de Portugal, mas sobretudo para poder chorar com eles, por saber que alguém não baixou os braços antes de conseguir colocar dentro de um rectângulo aquela bola oval.

domingo, 9 de setembro de 2007

Flexi...deslizando


“Boa pai! Mequedonal! Mequedonal! Mequedonal! Um pai que leva os seus rebentos ao Mcdonalds, sabe que a comida é o que menos interessa, senão eles teriam essa expressão de júbilo, sempre que lhes dissesse que iríamos comer uns grelhados à tasca do Isaías. Eles anseiam sobretudo por colocar a mão dentro do pacote do Happy Meal em busca do brinquedo em forma de andróide ou princesa, aquele que adoram quando o vêem, e no dia seguinte já está na boca do cão. Passam assim a curta refeição a tentar perceber como funciona o andróide em forma de bicho, acabando sempre com a dúvida “Ó pai vê aí nas instruções se o dragão manda fogo pela boca ou pelo rabo!?”. Desta vez fui verdadeiramente destemido e levei-os em plena hora e dia de ponta. Comemos lá fora, facto que acelerou ainda mais o processo de fast-aspiração alimentar, uma vez que o parque infantil, estava ali demasiado próximo e apelativo. Deixámo-los ir e ficámos a observar o pandemónio. Naquele reduzido parque labiríntico, estariam uns 30 cachopos (se eram 15 pareciam 30) a correr desalmadamente para cima e para baixo, como se os carros inamovíveis se preparassem para arrancar a toda a velocidade e os deixassem apeados. Dentro do parque, lá no primeiro andar, ouvia-se um grito de miúdo vindo da escuridão tentando afugentar os que conseguiam subir as escadas. Aqueles que superavam o medo, lá mandavam um encontrão na fera e passavam para etapa seguinte, a dos carros suspensos. Dentro de um dos carros vislumbrava-se uma criança grande, talvez grande demais para alguém a tirar de lá à força. Uma rapariga pede para o mastodonte desocupar o lugar e ele lá desocupa contrariado. Desce com toda a sua massa corporal pelo escorrega e atropela um miúdo que se preparava para subir. Uma outra criança cai das escadas cá em baixo. Parece que o tipo dos gritos de monstro não gostou que o tivessem empurrado e empurrou o mais pequeno, quando este estava quase lá em cima.
Dizia-me o meu amigo João que também estava ali com os filhos “Já viste que com a idade destes miúdos, nós brincávamos nos olivais, e eles agora estão enclausurados aqui nesta caixa de plástico todos divertidos?”. Ao ouvir aquelas palavras e ao ver aquele enxame desorientado de cachopos, descobri as grandes virtudes que um espaço daqueles poderá encerrar em termos de formação das novas gerações. De facto, a sociedade portuguesa caminha para um sistema destes; um sistema fechado de exíguos labirintos, carrinhos minorcas e descidas de escorregas que terminam junto de novas e sinuosas subidas. A caixa labiríntica cheia de concorrência, representa a escola ideal como preparação para o panorama competitivo nacional. O panorama dos milhares de jovens em busca do estreito caminho para os poucos empregos, num mundo do salve-se quem puder, se necessário por cima do tipo que manda berros. É também disso que trata a flexisegurança, aquela invenção da malta ter 50 empregos ao longo da vida e dos patrões poderem despedir os empregados se embirrarem com a cor da camisa ou com os pêlos do nariz.
Cá em baixo estavam os outros 25 a jogar à apanhada, mas nenhum percebia quem é que apanhava quem. Tocavam uns nos outros, sem ordem ou coerência e fugiam uns dos outros,…sem ordem e coerência. Corriam era muito. Todos corriam, para todos os lados e o tipo de lá de cima continuava aos berros. No meio das perseguições viam-se uns quantos encontrões e tropeções. Os que se punham mais rápido em pé, subiam mais rápido pelas escadas e enfrentavam de forma mais consistente a besta dos berros. Como lá em cima só haverá lugar para 4, aquele que acaba de entrar, tem de arranjar estratégia de pôr um dos 4 a escorregar. Ou manda um berro maior do que o afugentador acompanhado por um estalo, ou consegue com falinhas mansas convencer o matulão a desocupar a cadeira do veículo, ou se desenvencilha de qualquer forma dos outros 2, que se encontram escondidos nos recônditos do labirinto. Caso não consiga pôr nenhum dos outros a andar, cabe-lhe o caminho do escorrega, ou seja, o da própria flexi-segurança.
Esta é a verdadeira escola. A escola do desenrasca; do mais espertalhuco; do matulão; do tipo dos berros, do que toca antes nos outros, do que manda melhores encontrões. De forma sábia, o sistema de ensino caminha no sentido desta aglomeração. Despacham-se os professores e fazem-se turmas de 35 alunos, para eles começarem a perceber a densidade humana que encontrarão na disputa do primeiro emprego e…seguintes. Abrem-se mais cursos, para que aumentem os indivíduos que jogam à apanhada cá em baixo e os poucos que conseguem lá chegar acima, ao pé do tipo dos berros, têm de ser mesmo os mais fortes, os mais rápidos e os mais desenrascados. Os outros, irão continuar a jogar todos contentinhos à apanhada , esperando que haja uma alma caridosa que cale de uma vez por todas o tipo dos berros, que já ninguém o pode ouvir…

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Aparições



Eu sei que não deveria escrever sobre a princesa de Gales. Mas escrevo porque já não tenho pachorra para ler mais nada escrito, nem ouvir mais nada falado, nem ver mais nenhuma imagem da rapariga. Estou a ser perseguido, diariamente, pela sombra da moça e começo a não gostar. Aliás nem ela deveria gostar de tanta barbaridade que se lê, ouve e vê sobre as suas preferências. Liguei o rádio do carro e…”faz hoje 10 anos que a princesa Diana…” apaguei o rádio. Comprei o jornal “Diana : Acidente ou assassinato?”. Mudei o campo de visão e lá estão elas, as revistais sociais repletas de descobertas e novas revelações: “os amores de Diana”; “Diana estava grávida mas não era do Dodi” ; “o príncipe era mau na cama e gostava de outra”; “perseguida pelos papparazi até à morte”; “traição do mordomo”. É de um tipo dar em doido. Mas o que é que eu tenho a ver com a princesa de Gales? O que é que nos interessa saber se era feliz ou triste ou triste e feliz; se comia bem ou mal ou mal e bem; se tinha amantes ou não tinha amantes ou os amantes é que a tinham a ela. Venera-se a divindade da princesa que morreu e lê-se em pulgas a última traição que cometeu, os desequilíbrios emocionais que tinha, a amargura em que vivia, as perseguições de que era alvo. Há qualquer coisa que não bate a bota com a perdi gota. A malta cria e alimenta a imagem da santa criatura, mas rejubila cada vez que dizem que a imaculada princesa até punha os palitos ao seu amado e esbelto príncipe. “Ó vizinha, coitadinha da Diana. Tão boa rapariga, ajudava os doentes, pobres e desfavorecido, e tinha de morrer assim de forma tão estúpida! Sabe….parece que ela e o príncipe, aquilo não andava bem; encornanços e coisas assim, sabe? Até dizem que engravidou de um tipo, mas gostava de outro que se pirou. Mas, ai, era tão linda, coitadinha que Deus a tenha!”.
Tenho de confessar a minha ignorância perante os feitos relevantes da princesa de Gales. Parece que deu visibilidade a causas humanitárias como a campanha contra as minas terrestres e a luta no combate à Sida. Mas quando ouço falar em causas humanitárias lembro-me dos médicos sem fronteiras e dos milhares de voluntários por esse mundo fora, que prescindem de mordomias reais para ajudar a tornar quotidianos de miséria um pouco menos miseráveis. E dez anos depois de muitos desses beneméritos morrerem, muitas das vezes atingidos por balas perdidas,… continua-se a dissecar a vida sexual da princesa do povo. A bem dizer, eles dispensariam essas relevantes coberturas jornalísticas sobre a tonalidade da sua roupa interior.
Agora estou mais interessado em dissecar outra Diana. A Diana Chaves, a nossa versão portuguesa de Diana, a mais solicitada pelos paparazzi nacionais. São anúncios de roupa interior, namoros com Cristiano Ronaldo, novelas bem produzidas , silicone nas mamas, tudo o que o povo gosta. É certo que ainda faltam umas infidelidades pelo meio e relatos de depressões, mas com o tempo lá inventarão qualquer coisa para a moça. Mas o que mais me surpreendeu foram as aparições (?). Não da Nossa Senhora de Fátima, mas da Diana nas discotecas. Até se diz que por cada aparição recebe um generoso Cachet. Só para aparecer; não fazer nada, nem servir à mesa, nem fazer malabarismo com bolas a arder, nem cantar umas musiquinhas, nem revelar segredos escaldantes, nada. Aparece a divindade, todos os homenzarrões se babam, para depois… toma lá a cheta e vai-te embora para outra discoteca, fazer mais uns milagres de veneração masculina.
Estou preocupado com a história da aparição, porque se a moda pega, haverá logo um espertalhão a dizer que viu uma aparição da Diana ,…a de Gales, por cima da casa dele, nos subúrbios de Paris, e que a entrada no seu quintal custará apenas 5 euros para o visitante, com desconto especial para crianças e idosos. Depois a malta pode acender umas velas ali entre o canteiro das rosas e a ameixieira, esperando que ela surja entre o nevoeiro e revele o seu segredo mais bem guardado: Qual o nome do imbecil que lhe fez o último retrato.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Trabalhar para o bronze


Foi com um optimismo renovado que encarei este ano as férias na praia. No sentido de ultrapassar a minha aparente incompatibilidade com a rotina balnear, decidi procurar de forma mais empenhada os prazeres que a praia me poderia oferecer, e lá fui cheio de confiança. Quando o despertador tocou às 7 e meia da matina e me sentei no bordo da cama a tirar a remela do olho, pus-me a pensar: Mas eu não estou de férias? Então,… porque raio estou aqui e não ali deitado com a cabeça no travesseiro? Mas era o espírito negativista a ver se me mandava a baixo, ao qual eu teria de resistir com o pensamento: Que bom que é aproveitar estes dias ao máximo! Fui todo contente abanar os cachopos. Depois de muito abanão, lá acordaram contrariados. Ao presenciar a sonolência infantil questionei-me sobre quem teria pregado esta partida a todas as famílias que vão de férias à praia. Primeiro dizem que o sol faz bem, está carregado de vitamina D, de cálcio, as crianças até crescem mais 5 cm, mas depois descobre-se que faz mal à pele e não podemos apanhar com ele às horas em que deveríamos estar a chegar à praia. Então em que é que ficamos? Faz bem ou faz mal? O sol faz bem com conta, peso e medida dizem os especialistas. Será que a medida dos benefícios dos raios solares tem relação com a medida das olheiras com que um gajo fica depois de 15 dias a levantar às 7 da matina? Não me poderia desviar da minha missão de alto astral e, depois de todos os afazeres de preparação, lá fomos com os inúmeros sacos, toalhas e brinquedos, conseguindo a fantástica “performance” de chegar à praia às nove e cinco. Os poucos que conseguiram uma marca similar, estavam ali como nós, enroladinhos nas toalhas, porque as propriedades medicinais do sol tardavam em surgir por entre a neblina. Ao menos assim também não fazia mal. Afinal o sol parecia querer irromper pelas nuvens e vamos lá despir as camisolas e espalhar o factor 40 pela epiderme, cuja enorme viscosidade, funciona como a melhor forma de atrair grãos de areia, que ficam ali colados na primeira incursão que se faz pelo areal, qual croquete em busca do seu pão ralado. Assim é que não há maneira do sol fazer mal: antes manda-se a argamassa depois reboca-se com o areal. Chegamos assim ao enigma supremo da praia: as virtudes do Banho de Sol. Já observei atentamente toda aquela malta de papo para o ar, quais girassóis em busca do melhor ângulo de incidência dos raios ultravioletas, ali parados, horas a fio, sem qualquer movimento, à espera de não sei bem o quê. Um tipo barra-se com factor 40 para o sol não queimar, e depois mete-se ali…ao sol para se queimar(?). Muitos usarão a expressão trabalhar para o bronze, como justificativo estético. Existe de facto um empenho quase profissional do pessoal do bronze. Mas o frete do trabalho é depois compensado pela aparência mais apelativa com que se fica nos 15 dias seguintes, com a vantagem de todo o pessoal do emprego poder dizer: - Com essa cor, estou a ver que tiveste umas brutas férias à beira mar! Um tipo exibe as férias sem ser necessário dizer nada. Agora o outro infeliz que vai dar uma volta pela Escandinávia, passando por Praga, Bucareste, Viena, Berna, Paris e termina pálido a comer uns torrões em Alicante, é brindado pelos companheiros com comentários entre dentes: - Coitado do António, a avaliar pelo aspecto esbranquiçado, vê-se que nem teve massa para gozar uns belos dias na praia!
Decidi que iria fazer como eles e pus-me ali ao sol a ver o que acontecia. Ao fim de 5 minutos já me sentia na fritura a aloirar. Suava pelo sol na fronha e suava por estar ali sem fazer nada e sem saber bem porquê. Como eu admirava aquela rapaziada que se mantinha ali firme e inerte a bronzear, incólumes a bolas na testa, a areia na cara, ao homem da língua da sogra. Eu não entendia tamanha tortura, mas tentava ficar ali como eles… - Ó pai anda ao banho! Gritava o meu filho impaciente. - Espera um bocado que agora estou aqui a apanhar um bronze!...fez-se silêncio…Estás aí a apanhar o quê? Perguntava-me o sábio petiz com uma expressão de quem poderia completar com um: É aquilo que se apanha comós gambozinos? …Não sabia responder à pertinente questão do meu filho e lá fui à água arrefecer. Parece que a água do mar das praias do norte tem mais iodo para quem… conseguir lá entrar. Temos de interiorizar a imagem do sueco que sai da sauna para os lagos gelados, para que consigamos entrar naquelas gélidas e petrificantes águas. Depois do ultrasónico-mergulho voltamos para a fritura, mas desta vez para ler o jornal, durante 5 minutos, antes do seguinte: -Ó pai anda jogar raquetes! A grande vantagem dos filhos pequenos é que não nos deixam entregues apenas à variação entre a fritura e o (abrupto) arrefecimento marítimo. Mesmo que nos apeteça ler um livro durante a fritura, existe sempre um castelo, um túnel ou uma pista de carros para construir na areia.
Acabei este ano a praia com a amarga sensação, de não ter ainda descoberto a fundo as virtudes dos banhos de sol e rotinas balneares. Mas não pensem que desisti. Apesar de estar no conforto do meu lar a recuperar das minhas férias na praia, tenho sempre a possibilidade de colocar a cadeira de encosto ali bem virada para os raios solares, que pode ser que me dê um dia a tal vontade de trabalhar para o bronze.

segunda-feira, 30 de julho de 2007

O triângulo perfeito

Já tinha interiorizado que iria para férias sem levar na memória qualquer tipo de lembrança desagradável, mas a imagem do tipo persegue-me para onde quer que vá. No entanto, decidi que desta vez não iria bater tanto no desgraçado, coitado, que está sempre a ouvir apupos de todas as esquinas, becos, ruas, drogarias, escolas, hospitais,…Aquele som do Buuuuu, não lhe larga os tímpanos e a carroçaria do seu Hiper-Mega-Ego blindado. Mas se um apupo incomoda muita gente, ao nosso primeiro-ministro incomoda muito mais. Penso que o indivíduo que apupa tem uma especial predilecção por quem gosta menos de ser apupado. Desenvolve um sistema olfactivo de detecção do “medo de apupo” e ataca repetidamente em som estridente, até a vítima fazer aquela cara de indignação e dizer que não entende nada daquilo, que deve ser para os tipos que estão do outro lado da rua. Quando eu pensava que já não era possível, finalmente o Primeiro Ministro teve um rasgo de inteligência e pensou: Se não podes vencer os apupos,…pira-te deles! E assim foi. Depois da monumental vaia durante a escolha das 7 maravilhas de Portugal, cuja intensidade e duração mediu meças com a imponência do mosteiro dos Jerónimos, decidiu entrar num período de quarentena de apupos. Assim, começou por inaugurar uma ponte sem aquela minoria de desordeiros e destabilizadores nas suas costas, pagos para estarem ali a gritar impropérios perfeitamente descabidos. Só os ministros, apoiantes de gravata e barreiras policiais estariam presentes. Foi um sossego; a sua voz ecoava doce e cristalina, sem a interferência de um Bu, um Filho da…; um Vai p’ra casa ladrão.
Depois foi àquela escola, dar conta do plano tecnológico, em férias(?). Mas, a esse pormenor, que descartava a rebeldia dos rapazolas malcriados e dos Professores ainda mais desordeiros, juntou uns alunos bem educadinhos, de forma totalmente espontânea e nada planeada. Chegou assim, triunfante à sala de aula virtual, acompanhado pela sua ministra e mais directa concorrente para o concurso do mais apupado, sem ouvir um único Apupo(?); a mais ténue vaia; o mais singelo “chega seu traste!”. Nada, só sorrisos, sobretudo do tipo que ia atrás, o tal que vendeu as máquinas ao ministério. O maldito e escarafunchador repórter tinha logo de perguntar ao aluno que estava ali sentado na carteira, de que tratava aquela aula, em tempo de férias, ao que ele respondeu qualquer coisa do género: “Não sei de nada disto! Disseram aos meus pais para eu vir aqui fazer uns sorrisos e eu vim; até pensei que era para tirarem fotografias para uma revista ou um casting para as Chiquititas!”. Quando o desordeiro do jornalista perguntou ao governante porque tinham pago ao miúdo para sorrir e fingir que estava ali atento à matéria, o governante foi totalmente imprevisível e disse que aquela organização não era nada com ele que não sabia de nada, mas que ia ver o que se passava. O tipo não pára de nos surpreender. Depois deu em percorrer a sala, metendo conversa com os miúdos, revelando o seu enorme potencial pedagógico e jeito intrínseco para lidar com a rapaziada. Então? Como te chamas? Agora diz-me lá ó Ruben se não achas que estas aulas virtuais são muito mais engraçadas do que as outras onde não se carrega em qualquer botão? Pois achas, vês?! É mais fácil não é? Olha até eu sei como isto se faz! É só pegar no rato e fazer a correspondência entre esta figura e a palavra que a representa! Estava a ver esta aula frutuosa e deu-me a nostalgia dos tempos em que ensinava o meu filho, aos 3 anos, a fazer aquelas difíceis correspondências com o marcador “carioca” . E por falar em nostalgia, a jornalista pergunta de novo ao Primeiro-Ministro se este não sente saudades dos quadros a giz e dos professores a ensinar, ao que ele responde prontamente: O futuro está p’rá frente! Já viu um professor desenhar com um giz, um triângulo tão perfeito quanto este que o computador faz? Não, pois não? Depois de calar o apupo da jornalista, pôs-se a pensar: Tão perfeito como o triângulo do ecrã, só as minhas respostas na ponta da língua, a minha capacidade de liderança e a civilização que eu irei criar, de preferência sem apupos e jornalistas por perto.

terça-feira, 10 de julho de 2007

Ajunta!...Ajunta!



Um professor sem a laringe foi considerado apto pela junta médica para dar aulas de Filosofia numa escola secundária. Se começássemos assim uma conversa com um amigo receberíamos logo a resposta “Seu brincalhão…, estás sempre na reinação” . Se eu acrescentasse que, depois do cancro e da remoção da laringe, o professor não foi apenas a uma junta médica, mas a várias e todas elas o consideraram apto para leccionar, o meu amigo não poderia deixar de responder acompanhado por um ar jocoso “Epá deixa-te lá disso, existem petas bem pregadas, mas com esse exagero ninguém acredita em ti!”. Só quando lhe puxamos pelos colarinhos e lhe dizemos com a nossa melhor colocação de voz … “É VERDADE!!!” é que ele nos começa a levar a sério. Eu acreditei logo à primeira, porque já conhecia as capacidades desses implacáveis personagens. Há uns anos, ao acompanhar a minha mãe, paraplégica, professora de Educação Física, que se preparava para pedir redução ao fim de muitos anos a dar aulas em cadeira de rodas, tomei consciência da extrema amabilidade como foi recebida: “a senhora é mesmo paraplégica?...” com uma cara de que faltaria ali acrescentar “…ou foi alugar essa cadeira de rodas ali nos chineses só para nos enganar?”. À minha mãe também apetecia responder “Não; sabe, é que eu tenho um gosto especial por actividades radicais com veículos rolantes. Há indivíduos que curtem o Skate, outros curtem as biclas e eu curto as cadeiras de rodas, dá para fazer mais manobras”.
Não sei como é feita a selecção dos tipos da junta médica, mas deve ser das provas mais duras que existem. Começam logo por incutir nos candidatos a máxima “O tipo que está à tua frente mente de forma descarada e não merece clemência”. Se ao fim de todos os inquéritos e atestados se descobrir que o tipo afinal não está a mentir, então troca-se pela outra máxima “o tipo que está à tua frente não mente de forma descarada e tu vais ajudá-lo a encontrar e a desenvolver o seu outro lado” . Um professor que não consegue falar, pode perfeitamente desenvolver outras capacidades como a comunicação telepática, através de ondas magnéticas, como forma de potenciar as aprendizagens dos seus alunos. Se os alunos não percebem patavina, terá de se esforçar mais um bocado e encontrar outras formas de comunicação; talvez através da mímica filosófica(?) . Mas quando eu penso nas provas de selecção do candidato a inquiridor da junta médica, existe uma imagem que não me sai da cabeça: a do jogador de Râguebi. Para além da cara de mau que tem de fazer para o seu opositor e do pescoço musculado que assusta qualquer criancinha ao pequeno almoço, tem de assumir a postura do “Aqui ninguém passa! Nem que seja o Papa, o Xanana ou a princesa das Astúrias. Vai tudo ao chão! ” E é assim que o verdadeiro avaliador da junta deverá agir. Sem compaixão; com dureza; pronto para aplicar a placagem no momento certo. Não importa que seja cego, surdo, mudo, paraplégico, esquizofrénico. Ou estão a mentir e são agarrados; ou não estão a mentir e…são agarrados na mesma, apenas com a diferença de lhes fazerem uma festinha no couro cabeludo depois de os mandar ao chão. - Vá, agora que já percebeste que não passas daqui, vai lá para o teu cantinho e não voltes a tentar a gracinha! A ideia base subjacente ao avaliador é a de que o indivíduo que está ali a pedir reforma antecipada ou redução de serviço é sempre a do malandro que se quer escapulir com a bola nas mãos (na versão desportiva); do malandro que se quer escapulir sem pagar a conta na discoteca (na versão nocturna); do malandro do bezerro que se quer escapulir da pega de caras (na versão tauromáquica). Em qualquer delas o denominador comum é “Malandro que se quer escapulir” dito em tom agressivo e despoletador de um sentimento de repulsa que convém manter, para aplicar o golpe sem arrependimentos. A própria designação “A junta” tem uma carga colectiva inerente a todos os exemplos dados. Quer os jogadores de Râguebi, quer os seguranças da discoteca, quer os aspirantes a forcados utilizam uma expressão em tudo similar que visa a união do grupo em torno no mesmo objectivo bloqueador e que diz “Ajunta, ajunta, q’é pró malandro não fugir!”
E lá vai mais um malandro à junta médica da caixa de aposentações. - Está aqui a dizer que o senhor, depois do acidente de viação, ficou sem ver, sem falar, sem andar e sem um braço. É verdade? Ainda mexe o dedo indicador? Vá-se lá embora malandro, e ponha esse dedinho a trabalhar que há muitas coisas úteis que pode fazer com ele…

quarta-feira, 4 de julho de 2007

A bola é quadrada


Passeava os meus filhos pelas ruas de uma localidade no norte do país em busca de alguma diversão que extrapolasse os cansativos escorregas, baloiços, cavalinhos com molas e afins. Ouvimos um ruído vindo de longe que parecia um jogo de futebol. Num campo pelado ali ao pé jogavam duas equipas de Juvenis. Ao aproximar-me do local, ia pensando que os miúdos iriam gostar de ver a rapaziada ali a divertir-se aos pontapés na chicha em alegre confraternização. Assim que chegámos, uma das equipas sofre um golo. Fo***! Car***! a culpa é tua seu filho da P***! Minha o ca***! A culpa é do ca*** do guarda-redes!...No meio daqueles pornográficos diálogos infanto-juvenis, a minha filha perguntou-me de forma ingénua: Oh pai, o que é que os meninos estão a dizer? Poderia ter mentido e dizer que aquilo era um léxico próprio do futebol; uma linguagem técnica para dizer “põe a bola no meio campo e vamos lá jogar”;…mas saiu-me a verdade: Asneiredo! O que os meninos estão a dizer é asneira, filha! Mas…estão todos a dizer a mesma coisa!? Voltava à carga. O que vou dizer à miúda? Pensei ao olhar para aquele cenário. Todos os jogadores, mas todos sem excepção estavam aos berros obscenos uns com os outros, levantando os braços e arregalando os olhos de fúria. Será que lhes tiraram a play station? Ou que lhes roubaram o álbum dos “d’zrt”? ou então que lhes partiram o telemóvel de terceira geração? Não. Apenas sofreram um golo. Continuei a ver o jogo, mesmo sabendo que estaria a sujeitar os meus rebentos a um espectáculo deprimente com possíveis consequências nefastas na sua formação. Mas estava curioso para saber no que aquilo poderia dar. A bola vai a meio campo e lá começam eles, pontapé na bola, pontapé no pelado, pontapé na canela, pontapé na gramática. O “mister” de uma das equipas coça as partes baixas ao mesmo tempo que grita: Ó Zé mexe-te fo***! Vai ao homem, vai ao homem! Cospe no chão, vira-se para os atletas no banco e desabafa “Cum Ca*** aquele gajo não joga nada!”. Entre dois berros e duas cuspidelas fuma um cigarro. Um dos seus atletas manda um empurrão no adversário o árbitro marca falta. O quê? Ó sôr árbitro,…você precisa de óculos! No meio de toda aquela asneirada, saía-lhe esporadicamente um “João, abre o jogo, olha o ponta de lança!” Esta parte do diálogo era só p’ra enganar; um cliché para dar ar que percebe alguma coisa daquela coisa. A sua equipa está a ganhar e ele diz por gestos para o guarda-redes queimar tempo. Tocam no guarda-redes ao de leve e ele cai no chão contorcendo-se de dores. O massagista entra; o mister sorri para o seu banco e levanta o polegar. O guarda-redes levanta-se combalido mas já está aos saltos e a correr. A bola vai para o banco, o mister pega-lhe vem um jogador adversário puxa-lhe a bola ele não lha dá; o jogador empurra-o e manda-lhe um pontapé. Vem o árbitro e o polícia acalmar os ânimos. O mister diz: apanho-te lá fora seu ca***ão! A minha filha continuava a insistir: ó pai, aqueles senhores são um bocado malcriados, não achas? Eu já não achava nada…estava mudo e atónito. Afinal só queria ver um jogo de juvenis com os meus filhos e estava a assistir a uma espécie de batalha campal. Para minha maior admiração, a batalha não era apenas travada dentro do campo. Um “Fo***” saiu mesmo ali ao pé de mim. Era um pai revoltado por não passarem a bola ao filho. Lancei o meu ouvido pela assistência e lá vinham mais “Ca***s” , “Ca***ões”; “se tocas no meu menino eu “fo***-te todo”; “manda uma caveirada nesse ordinário que tem a mania que joga à bola”. Eram os pais das crianças(?). As mesmas que se estariam a divertir a jogar à bola e os progenitores exprimiam o seu contentamento com pequenas asneiritas sem importância. As crianças continuavam à canelada, à cotovelada, à cabeçada…nas cabeças dos outros, e de vez em quando um pontapé na bola. Passava naquele momento um angariador de verbas para o “futebol da pequenada” dizia ele. Tinha um miúdo ao colo segurando uma caixa onde os espectadores contribuíam para que o futebol das camadas jovens se desenvolvesse. Eu não tinha dinheiro comigo, logo não contribui. Ainda bem. Se tivesse posto moedas naquele mealheiro da “formação” ainda hoje me estaria a penitenciar. Punha dinheiro na caixinha para que as crianças formassem melhor o seu vocabulário rudimentar e desenvolvessem técnicas mais eficazes de deixar os adversários no chão agarrados às canelas. No meio de todo aquele espectáculo deprimente, tive pena do pobre do árbitro e respectivos fiscais de linha que, mesmo perante o cenário deplorável e insultos repetidos, conseguiam manter uma pose de quem estaria a arbitrar a final da liga dos campeões. Mas apesar de algo chocado, deu para ficar com uma perspectiva melhor dos jogos da super-liga. Os momentos em que o jogador se dirige para o árbitro e a câmara regista em slow motion a mandíbula para cima e para baixo percebendo-se que sai algo do género “seeeeuuuu caaaraaa de caaaa*****””, tem a devida sequência do excelente trabalho que é desenvolvido nas “camadas jovens”. É um processo de coerência a longo prazo. Nos infantis aprendem a dizer fo***, para quando chegarem aos seniores conseguirem articular três palavras “fo***-te seu ca***ão”.
Termino este meu testemunho com a basilar frase do Professor António Sérgio: “O Futebol Reproduz e Amplia as Taras Sociais.”

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Atchim


A rinite alérgica é das doenças que mais narizes incomodam nas sociedades modernas. Basta haver um malvado agente que despolete irritação nas pilosidades da narigueta, para a malta começar aos espirros e a produzir viscosidades do trato respiratório com aspecto pouco dignificante. Parece, no entanto, que os autarcas e empreiteiros encontraram a solução para tão dramático problema de saúde pública. Ao ouvir falar repetidamente da febre dos fenos, decidiram cortar o problema pela raiz…dos fenos. Se são os fenos que incomodam as nariguetas da rapaziada vamos mas é tratar deles! E assim, onde existe vestígio de erva em tons esverdeados, lá vão eles solícitos, com as suas ferramentas de exterminação, dar cabo da génese deste flagelo social do espirro. Mas a acção destes benfeitores vai para além da simples destruição do prado verdejante; assume contornos da mais eficaz profilaxia. Corta-se a erva, e depois entra a escavadora para esburacar à procura de possíveis raízes. Para além disso, e porque há sempre uma raízita ou outra que se consegue esconder no meio do lamaçal, espetam-lhe com cimento e tijolo por cima, várias vezes até perfazer os cinco andares, que é para não existir a mais ténue hipótese da cabeça do feno espreitar em busca do sol e fazer das suas. Para ver como os tipos não são para brincadeiras, consta-se que já foram criados Departamentos de Detecção da Erva Daninha (DDED), compostos por funcionários de prospecção do tipo “olheiros” para descobrir qualquer vestígio de cabelo de erva a irromper pelos solos. Quando isso acontece, chamam a brigada anti-espirro que, munida de gruas, escavadoras, betoneiras e muito cimento fazem um trabalho bem…rebocado. Atentemos ao caso de Torres Novas e a esta imagem que aqui vos deixo; o fabuloso prado que vislumbramos sempre que descemos da quinta do Negréus rumo ao colégio Santa Maria. Sempre perguntei de forma interior: Até quando gozarei desta esplendorosa paisagem campestre?...Ali no canto direito da fotografia aparece a resposta: “Até hoje!... seu romântico da treta!”. Vê-se de forma quase imperceptível uma grua, daquelas que só aparecem para acartar com muito balde e cimento, para cima de muito tijolo e viga. Na maior parte dos casos estabelece-se uma relação directa entre o tamanho da grua e a magnitude do mamarracho. E como era grande aquela grua…
E aí está a nossa cidade no rumo do progresso. E o grito é: Abaixo a erva, viva o tijolo; Fora o espirro, venha o condomínio! E essa coisa da falta de espaços verdes são tudo balelas de maldizer. Então a malta não fez rotundas verdejantes cheias de flores sazonais para serem arranjadas com frequência, regadas muitas vezes e cagadas por cães com regularidade? E são daquelas flores que não causam comichão na narigueta de ninguém!
Agora parece que também se descobriu que o pó de tijolo pode causar alergia, e os nossos responsáveis autárquicos decidiram cortar o mal pelo…pó, e vá de mandar os campos de ténis pró galheiro, que é para as poeiras aprenderem a não se meterem nos narizes alheios. E então os 100 miúdos que utilizam regularmente esse espaço? Pergunta o chato ao responsável. Shiuuu, que ainda não acabei de explicar! responde o responsável ao chato. Esta medida de fundo visa acabar de vez com possíveis pingos nas pontas dos narizes, com o barulho ensurdecedor das bolas a bater nas raquetes e para além disso, aproveitamos, e montamos no local, o palco para as festas da cidade! Nunca ninguém teve rinite alérgica a ouvir música alta, a beber umas bejecas e a fumar umas ganzas! Este homem é um génio (pensa o chato)…Mas e os miúdos…Deixe-se lá disso seu chato do camano! O que são 100 cachopos a correr atrás de bolas amarelas quando comparados com os milhares de gajos que vamos ter ali aos saltos e aos berros em frente ao magnífico palco, durante…uma semana!? Olhe diga aí aos miúdos que venham beber umas imperiais e se deixem dessas mariquices com raquetas! Mas o senhor não disse aos miúdos que lhes iria construir outros campos antes de mandar estes às malvas? …Shiuu seu chato dum raio! Olhe bem que eu até me proponho a fazer no local das bancadas, um restaurante com vista panorâmica para esta magnífica…piscina(?); sim essa obra esplendorosa ali mesmo a tapar esse inestético e emporcalhado rio, desenhada por visionários arquitectos, aconselhada por reputados engenheiros, feita por grandes gruas e paga por enormes chatos como você! Este homem é um génio (pensa o chato…pagador) .
Parece que agora, um tipo do Departamento para a Detecção de Ervas Daninhas (DDED), ao passar ali pelos terrenos dos Mesiões começou a espirrar de forma compulsiva e constatou que aquela plantação não vivia em harmonia com o seu frágil sistema olfactivo. Levou os lamentos alérgicos até aos responsáveis, que logo se prontificaram a mandar uma brigada “construir” ali uma mata municipal. Um enorme espaço verde anti-alérgico com pequenas construções no meio, das quais fazem parte uns apartamentos (com poucos andares está claro) e um restaurante com vista panorâmica sobre uma magnífica… piscina (onde já li isto?) que terá um sistema ecológico de enchimento, com o aproveitamento hídrico das cheias que por ali passará todos os anos. E já agora que estamos a falar de meter água,… desculpe lá se pareço um bocado chato, mas então… e os miúdos do ténis?...…Aaaaatchiiiiim!

domingo, 10 de junho de 2007

Vai uma bananinha?



Comemoramos hoje dia 10 de Junho o dia de Portugal e achei por bem escrever qualquer coisa relacionado com o tema. Depois de pensar algum tempo sobre a nacionalidade, a pátria, os símbolos, lembrei-me de… bananas(?). É que estava já com alguma larica de tanto pensar, que fui à cozinha e, ao olhar para as várias opções alimentares, decidi-me pelo ataque à banana. Estava aqui a comer a minha bananinha e a pensar como é bom comer bananas. Começa logo por ser fácil de descascar. Não é necessária faca nem martelo para se conseguir alcançar o conteúdo. Depois, o que se come é doce, generoso e palpável. Atentemos ao caso da romã. Para se conseguir ingerir uns vestígios desse fruto temos de cuspir centenas de pevides. Não é rentável; não sacia o apetite; o trabalho é muito e o resultado gustativo é pouco. A banana pode ser abordada sem qualquer tipo de inibição, uma vez que não tem qualquer pevide ou caroço para ficar presa no dente ou na glote. Come-se e pronto. Outro dos aliciantes da banana é que não se faz grande porcaria a comer. O diospiro por exemplo é muito doce e agradável, mas ficamos sempre com a sensação de nos terem espetado com um bolo de anos alaranjado na cara e nas mãos. Mas o que é que a banana tem a ver com o 10 de Junho? Aparentemente nada. Mas como me apeteceu comer o fruto enquanto me preparava para escrever sobre tão simbólico dia, achei que não deveria ignorar este sinal e tratar de descobrir na banana a essência da nacionalidade. Ao lançar um olhar mental sobre o património nacional consigo ver o sol encoberto pelas nuvens, o mar encoberto pelas montanhas, e o progresso encoberto pela…banana. Acabei de comer a banana e de repente senti-me eu próprio uma banana. Um verdadeiro processo simbiótico difícil de explicar. É difícil pensar com algum optimismo na causa nacional, quando nos sentimos bananas nas mãos (e no prato) dos nossos insaciáveis governantes. E porquê bananas? Porque eles fazem o que querem e não têm qualquer entrave à sua acção. Não existe um caroço ou pevide que lhes incomode a mastigação. Percebi agora a expressão “és um banana” atribuída a alguém que não dá luta; é esta a característica da banana: fácil de abrir e fácil de mastigar sem oferecer resistência. Com tanto absurdo que vamos vendo já seria altura de esboçarmos uma ténue reacção, um leve grito de revolta, …mas nada. O mais curioso é que os nossos governantes não se limitam a comer a banana à bruta; parece que gostam daquela receita de a esmagar com o garfo, pôr-lhe açúcar por cima, para aí sim comê-la à bruta. Parece que estou a ver um ministro para o outro: - Oh colega, não acha que já é demais! Já lhes congelámos as carreiras, já lhes reduzimos os serviços de saúde, já lhes aumentámos os impostos, e agora isto!?...os tipos vão-se passar! Ao que o outro responde: - Já agora deixa ver até onde estes bananas aguentam! E não é que eles aguentam muiiiito. Basicamente somos um povo de tipos porreiros; aquela designação de brandos costumes assenta-nos que nem uma luva. Também que país consegue fazer uma revolução de cravos? Qualquer revolução que se preze tem de ter uns tiros e umas lambadas. Nós até inventámos a canção da “Grândola Vila morena povo da fraternidade” e vá de fazer festinhas e dar abraços fraternos aos tipos que nos querem devorar. Isso mesmo! A avaliar pelas sondagens (sempre feitas de forma isenta) o governo voltaria a ganhar com maioria. Os bananas não se limitam a ser passivamente ingeridos, como demonstram a sua fraternidade e generosidade para com lateirão que o comeu, pondo à sua disposição mais uns cachos de primos e amigos. Só estou um pouco curioso para saber qual o açúcar que me vão pôr antes da garfada final…
Os nossos vizinhos espanhóis que não são de se deixarem esmagar no prato, quando se pegaram fizeram logo uma guerra civil das mais sangrentas da história mundial. Se lhes dissessem que um ministro arranjou um diploma esquisito e coisa e tal, que lhes iam dar cabo da qualidade de vida, desatavam logo a dar cabo da qualidade de vida dos governantes. Isto porque os tipos são ossos duros de roer enquanto nós somos bananas fáceis de comer. Será por isso, que Espanha já seja uma das maiores economias mundiais? Nããã! Eu, como português genuíno que sou, não defendo medidas extremas. Apenas gostaria que a banana que há em cada um nós, desse lugar, por uma vez na vida, a um fruto mais difícil de preparar e ingerir. Gostaria que tivéssemos um pouco de Romãs ou vá lá de… melancias, que dessem algum trabalho a quem as prepara e transmitissem algum cuidado a quem as mastiga.
Ao ver as imagens das comemorações do dia de Portugal, do orgulho de todos aqueles personagens de bandeira a tiracolo, dos discursos de ocasião sobre as grandes qualidades do povo português, e do facto de estarmos cada vez mais na cauda da Europa alegres e contentes, não pude de deixar de me lembrar do momento em que abri o caixote do lixo e lancei despreocupadamente a casca da banana que tão facilmente comi.

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Sopas em descanso


Falaram-me do Congresso das Sopas em Tomar como um evento a não perder. Empurrados pela saciedade incontrolável da minha mãe por esse alimento líquido lá fomos... À entrada de Tomar começaram as Bichas. Não das solitárias mas daquelas com muitas pessoas a ver o traseiro das outras. A bicha não é mais do que o início de um ajuntamento; empata o nosso tempo; faz-nos pensar que estaríamos muito melhor em casa a comer umas morcelas debaixo do alpendre. Mas imbuídos do espírito persistente lá fomos (lentamente) para o local do repasto. Ao chegar, não queria acreditar na magnitude daquele ajuntamento. Gente por todo o lado, aos magotes e todos se encaminhavam para a exígua ponte que conduzia ao éden das sopas. Fui para a bicha da bilheteira com a permanente sensação de que me iria arrepender do acto. Dei 8 euros por cada bilhete, consumando-se o caminho sem regresso: a enorme bicha dos condenados a uma sopinha. Uma hora depois, os portões abriram. Finalmente a bicha passava de estática a dinamicamente estática. Algum tempo depois,...entrámos, recebemos as tijelas, olhámos à nossa frente e vimos aquela massa compacta de gente a gladiar furiosamente em frente das panelas . A questão seria descobrir a melhor maneira de furar na multidão para conseguir levar sopa à nossa tijelinha. Nestes locais deveria ser feita uma selecção dos mais aptos para a luta. Apenas deveriam entrar indivíduos com mais de metro e noventa ou 80 quilos de peso, com excelentes qualidades de pugilista e ter na sua árvore genealógica um malabarista do circo de Monte Carlo. A minha mãe é paraplégica, a minha mulher mede 1metro e cinquenta, a minha filha tem dois anos e eu não cumpria nenhum dos requisitos exigidos. A nossa equipa jogava em clara desvantagem. Na primeira incursão da minha mãe à banca mais próxima da entrada, percebeu-se que não haveria tréguas de qualquer espécie. A fúria pelo caldo estava ao nível da distribuição de ração num campo de refugiados no Ruanda. Empurrão daqui, chapada dali, pontapé dacoli, cuzada dacolá, tudo servia para eliminar os adversários. Não havia ordem de chegada ou ticket de marcação, tudo valia. Só os mais fortes sentiriam o sabor daquela sopa de peixe. Se a cadeira de rodas era um handicap naquele combate pela selecção natural, o metro e cinquenta da minha mulher apenas lhe permitiria passar debaixo das pernas de um qualquer daqueles tijolos do enorme muro erguido à sua frente. Sobrava eu que entretanto andava a perseguir a minha filha no meio do labirinto de coxas. Passei ao ataque em nome da sobrevivência! munido de duas tijelas fui em busca de víveres para os meus. Sem piedade, transformei-me num implacável caçador de sopa naquela selva sem lei. Da minha caçada resultaram 4 sopas para cada um, nada mau atendendo à agressividade das feras concorrentes. Como ferimentos de guerra apenas a lamentar vestígios de sopa da pedra nas calças e nas sapatilhas.
Enquanto tentava ingerir apressadamente a minha sopa, olhei para aquele cenário apocalíptico e vi as pessoas bem dispostas. Não fazia nexo. Comecemos pela sopa, aquele alimento que nunca se pede no restaurante e se evita repetidamente em casa, ser capaz de gerar tão desmesurada cobiça. Depois, a quantia desembolsada, que faria supor uma refeição de qualidade. Sugar a sopa à pressa e em andamento até a banca seguinte, equilibrá-la numa só mão sem deixar cair o copo de vinho e adoptar uma postura de permanente vigilância contra encontrões alheios, é tudo menos uma refeição de qualidade . Depois de 4 sopas e 48 apertões, estava farto. Pelo contrário, toda aquela gente só sairia dali depois de rentabilizar bem o investimento, ou seja, após a ingestão de 8 qualidades de caldo verde, 7 de sopa de peixe, 12 de sopa da avózinha, 6 de sopa de cação. Tudo a que tinham direito...até a azia.
Saí aliviado e descobri que a grande virtude daquele evento foi exactamente o alívio que senti por ter saído. Esta experiência também me facultou a certeza de que, os 8 euros da próxima edição do congresso das sopas, serão reservados para um descontraído almoço num qualquer restaurante, pensando em todos os coitados que estarão a levar encontrões enquanto eu saboreio sentado a minha sopa de legumes.

Problema de lateralidade

Hoje apetece-me escrever sobre política. Até aqui tudo normal, não fosse o facto de não perceber nada do tema. A minha dificuldade de compreensão da política deve-se basicamente a um problema de lateralidade. Passei toda a minha vida a ouvir falar de esquerda, direita, direita e esquerda que fiquei sem saber bem em que parada militar me encontrava. Sei que a esquerda está para a direita como o alto está para o baixo, o gordo para o magro, o cabeludo para o careca, o escuro para o claro ou o frio para o quente. As dúvidas surgem quando os extremos assumem características amovíveis e se cruzam. É o aparecimento do meio termo. Queres ser gordo ou magro? – bom,...nem muito gordo nem muito magro,... assim,assim! O “assim assim” é uma conjugação utilizada para quando não se sabe ou, se se sabe, não se quer saber. Quando se aponta o dedo a alguém e se dispara : - aquele gajo é de esquerda! , os sentimentos dividem-se e diferenciam-se ao longo dos tempos. Antes do 25 de Abril, era o mesmo que dizer que “aquele gajo comeu a mulher do vizinho, é um comuna!”; Durante o 25 de Abril, quereria dizer “aquele gajo deu de comer a 500 criancinhas, é um herói”; Há poucos anos essa afirmação representaria “aquele gajo escreve ou pinta, é um intelectual”; nos nossos dias, a mesma frase significaria “aquele gajo está a coçar as traças que tem nas costas, é um coitadinho...”. É o risco de se optar por um dos dois lados da barricada. Existem os que escolhem o frio, os que optam pelo quente, os que uma vez são frios e outras vezes são quentes e os que ficam pelo morno. Foi a pensar no morno, que se ergueram os dois maiores partidos políticos portugueses. Um diz que é de esquerda, outro mais à direita, mas ambos mais ou menos no centro, que é o local onde o vulgar cidadão se gosta de situar. Até as crianças têm essa noção do equilíbrio bem explícita na resposta à estúpida pergunta: - gostas mais da mamã ou do papá? Ora bem... a mamã dá-me a papa e faz-me festinhas quando me porto mal; o papá dá-me pastilhas elásticas e leva-me a passear de bicicleta...eu gosto mesmo é dos dois. É a resposta politicamente correcta. Só quando um dos dois é uma besta, é que o filho terá coragem de optar. Na política, os partidos assumidamente de direita ou de esquerda, só ocuparão um dia o poder se o país chegar a um estado de caos. Sobretudo tiveram azar, porque alguém chegou à cadeira do centro antes deles. E como quem vai ao ar perde o lugar, lá foram eles,... cada um para o seu canto da sala, esperar que um dia a professora repare neles.
Penso que a maioria dos cidadãos prefere o “tépido” por falta de conhecimento preciso das ideologias políticas, facto perfeitamente compreensível pelo fenómeno “camaleónico” que assalta a maioria dos partidos, senão vejamos: Para o partido do poder, as obras são muitas, os avanços são significativos, as reformas são imensas e o crescimento é enorme. Para o principal partido da oposição as obras não existem, os avanços são fictícios, as reformas permanecem na gaveta e o crescimento é inverso. Os outros partidos esbracejam mas ninguém os ouve. Quando muda o poder, todo o discurso permanece o mesmo, independentemente da ideologia. A aferir pela quantidade de desertores de partidos de esquerda para os de direita e vice-versa, a lateralidade ideológica vagueia de acordo com a cor da vegetação. Sinto-me como um turista português nas ruas de Londres, onde tudo funciona ao contrário, a direita é a esquerda, a esquerda a direita, a direita e a esquerda mais ou menos no centro(?). Muito pessoalmente penso que isto de direita, esquerda e centro é uma grande treta.
A política deveria ser baseada mais no acto de bem governar e menos na arte de bem representar...partidos e sobretudo não perder tempo com questões de lateralidade. Os “jobs” deveriam ser dados aos “boys” pela competência e não pela fidelidade ao partido. Daí que o cenário político seria muito mais credível... sem partidos. Que bom seria votar para as legislativas no José Francisco para a pasta da cultura, na Maria Antonieta para o ministério da saúde ou no Joaquim Manuel para o pelouro das finanças. Pessoas independentes com formação específica, com ideias claras sobre a acção a desenvolver e que na sua actividade profissional tivessem revelado sucesso e capacidade empreendedora. Pessoas que cumprissem horários, que apresentassem obra feita, que assumissem insucessos, que não fizessem promessas irreais, que fossem boas gestoras dos recursos existentes....Pura utopia!
Hoje era o dia em que me apetecia escrever sobre política, mas já não me apetece. Como tal, não me resta outra alternativa senão apagar o computador e sair por esta porta que tenho do meu lado esquerdo,...ou será do direito?...

terça-feira, 5 de junho de 2007

O Nó da Gravata




Anda toda a gente à procura dos responsáveis pela crise. Pessoalmente acho que o principal responsável pela crise… já morreu. Aliás como convém porque assim posso responsabilizá-lo à vontade que, em princípio, não sofro qualquer represália ou tentativa de contestação. Pensando bem, tanto faz, porque com a justiça que temos, posso acusar publicamente quem me apetecer, que o mais certo é continuar na minha pacata vidinha no meio das couves e hortaliças. A descoberta do “bicho mau” assenta na conjugação de duas vivências pessoais díspares e conflituosas. O uso frequente do fato de treino versus a esporádica frequência de casamentos e cerimónias afins. O facto de ser professor de Educação Física, confere-me o privilégio de passar grande parte da minha semana vestido com fato de treino, para os invejosos e queixinhas, uma espécie de pijama. E percebo que sou um privilegiado quando tenho de ir a um casamento. Na fase de vestir a indumentária para a dita cerimónia festiva, pergunto invariavelmente: - Quem foi o cavalgadura que inventou esta coisa que nos estrangula o pescoço e o bem estar? E cheguei assim à génese da crise. Como é possível a malta andar bem disposta e tirar rendimento do trabalho com uma gravata enfiada no pescoço? É óbvio que o país tem de estar de rastos. Não sei se já repararam, mas para qualquer lado que nos viremos, estão todos de gravata enfiada no pescoço com ar triste e deprimido. Mas a culpa nem é do criador da gravata. Até penso que ele a inventou como objecto punidor do raça da cadela que passava a vida a fugir para o quintal do vizinho sempre que lhe dava o cio. Então ele meteu o primeiro tecido que tinha à mão enrolado à volta do pescoço da bicha para ela aprender a não ser desavergonhada e esquecer de uma vez por todas o garboso pastor alemão. A responsabilidade maior foi do vizinho, o dono do pastor alemão, que tinha a mania da moda e começou a dizer que aquele tecido até dava um ar elegante e distinto ao animal e que ia fazer a experiência nele próprio. Achou chiquérrimo. O dito foi passando de boca em boca e chegámos assim aos nossos dias, aos políticos, aos empregados de balcão, aos seguranças, aos apresentadores de noticiário e até, vejam só, aos futebolistas(?). Aliás não haverá nada mais deprimente do que ver um jogador da bola habituado a dar canelada, cuspir no chão, chamar nomes ao árbitro, coçar as partes baixas, dentro de um blaser com o nó da gravata na pescoceira tentando aparentar um ar respeitável. Se calhar o objectivo é comprimir o tipo de tal maneira, que quando ele se libertar da armadura e vestir os leves calções, corra muito mais dentro do campo. Assim à primeira vista ainda não notei resultados visíveis.
Mas o que me espanta é que, ao longo dos anos, não houve ninguém que questionasse este princípio aceite que a gravata é útil e fica bem. É útil para quê? Só se for para quando não houver guardanapos depois de comer o bacalhau com natas no banquete matrimonial; Para o rendimento no trabalho? Se um homem está desconfortável, como pode render mais? Perguntem a um bancário sobre a primeira coisa que faz quando chega a casa e vejam lá ele diz. Se não disser que vai fazer uma mija porque estava muito aflito, responderá que despe o fato e a gravata, para se sentir mais à vontade(!). Então que raio de país é este que não percebeu que um tipo mais à vontade rende muito mais e um tipo de gravata só poderá render menos? E quem é que disse que a gravata ficava bem? Mas como pode um homem ficar bem se se sente tão mal? A subversão associada ao uso da gravata, para além do fenómeno da auto-flagelação implícita, está na uniformização. O fato e a gravata massificam aparências; tolhem a originalidade. Penso nos personagens “sombra” que acompanham os tipos importantes. Atrás de um ministro estão sempre 50 indivíduos todos eles engravatados que oscilam de acordo com as movimentações do chefe. O ministro dá dois passos à direita e toda aquela massa sombra dá dois passos à direita; o ministro olha para o céu e todos olham para o céu; o ministro pede para o ajudarem a fazer contas e todos têm um ataque de tosse, o ministro dá uma bufa e todos põem a mão no nariz.
Agora puxem pela cabeça e pensem quem toma as verdadeiras decisões do futuro do país. Eu sei que estão a pensar nos empreiteiros, mas façam um esforço e pensem nos políticos. E agora executem um exercício panorâmico para ver como estão vestidos os indivíduos na assembleia da república. Isso mesmo, os do cantinho esquerdo, apesar de ninguém querer saber deles, estão felizes e contentes; os restantes estão amargurados e revoltados. A razão, aí está ela…a gravata no pescoço e os uniformes cinzentos escuros. Se quem manda no país está reprimido e amargurado dentro das constrangedoras vestes, as probabilidades de nos conduzirem em direcção à depressão são muito maiores.
É chegada a altura de desfazer de uma vez por todas o equívoco lançado pelo vizinho do dono da cadela com o cio e dizer que a gravata, para além de não ser especialmente estética (apesar de já terem inventado umas com o rato mickey e o pato donald), é mais compatível com o canto da boca cheio de gordura do que com o trabalho efectivo. Como tal, senhores: é hora de retirarem as gravatas, arregaçarem as mangas, para ver se a malta perde de uma vez por todas esta sensação de quem tem uma gravata apertada à volta do pescoço.

terça-feira, 29 de maio de 2007

O nosso Kangchenjunga mensal

À Rita e ao Pedro pelas muitas escaladas aos Kangchenjungas que têm no currículum...



Enquanto esperava para levantar dinheiro numa caixa Multibanco, estava entretido a ver umas imagens de João Garcia no topo do pico de Kangchenjunga, a 3ª montanha mais alta do mundo, a agradecer o apoio do banco que lhe patrocinou tão relevante façanha. Levantei a massa, e, ao olhar para o talão do saldo disponível, fiquei a cismar no tipo lá em cima com a respiração ofegante e com cara de quem já respirava um arzito menos rarefeito. E pus-me a pensar na enorme aventura que representa, depois de olhar para o talão do saldo disponível, arranjar forma de chegar ao fim do mês respirando um ar minimamente oxigenado. Não menosprezando a difícil subida a picos míticos como Evereste, Annapurna, K2, Kangchenjunga, a montanha que a maioria dos portugueses tem de escalar entre dois vencimentos está bem ao nível das anteriores. Epá, não achas que estás a exagerar um bocadito? Então não viste que o nosso mais distinto escalador até congelou os dedos e o nariz ao subir o Evereste devido ao frio extremo! É verdade, sim senhor, mas também nós vimos congeladas as nossas…progressões e provisões, com a agravante de não percebermos bem as razões da mudança para um estado sólido mais inerte. Ao menos o alpinista sabe que foi do frio, agora a malta vê a massa congelada mais dois anos, porquê? porque o ministro acordou com um torcicolo? porque teve de nomear mais umas comissões para avaliar outro local para o outro aeroporto? porque alguém disse mais uma graçola sobre o diploma do primeiro ministro? Não sabendo as causas, não temos maneira de nos protegermos contra este tipo de congelamento; não há luva, casaco ou gorro que nos valha.
Estou agora a matutar sobre o acampamento base que os alpinistas utilizam para adaptação e aclimatização. Vão subindo e descendo até se adaptarem à falta de oxigénio na alta montanha. Os aventureiros da escalada quotidiana, assim que põem a vista no ordenado, começam logo a escalar rumo ao “entesamento” sem tempo para aclimatização. Parece que existem seres ocultos, esperando ansiosamente por esse dia, no campo base, para nos tirarem o oxigénio sem sequer termos tempo de chegar ao campo 1 de adaptação. Casa, luz, água, escolas, telefone, comida, e mais comida, ténis para o filho que jogou demais à bola e rebentou os que tinha semi-novos, o imposto, o outro imposto, o seguro,…já nos falta o ar e ainda não chegámos nem a metade da subida. Então e os riscos de avalanche, a queda em buracos ou a derrocada de pedras a que estão sujeitos os alpinistas? Haverá maior avalanche que um tipo, depois de já ter conseguido pagar muitas das contas a essas sugadoras entidades, partir a embraiagem do carro?...também nunca percebi porque é que as embraiagens se partem sempre na fase em que um indivíduo está quase teso. Cair num buraco?...será depois de ter pago a embraiagem ao mecânico aparecer-lhe uma dor insuportável no dente do siso e ter de ir a correr para o dentista. Derrocada de pedras? Que tal depois de pagar a conta no dentista, chegar a casa e verificar que o esquentador deu o berro?...depois do esquentador estar operacional e já dar chama, a nossa chama está nas últimas, pronta a sumir-se de vez. Ainda nos faltam 8 dias para receber e já começámos a comer as latas de feijão frade que tínhamos guardado para uma emergência. Andamos muito devagar de carro para não gastar gasolina e estamos fartos de ouvir o filho repetir a frase mais batida: “pai, quando tiveres dinheiro podes-me comprar aquela tartaruga ninja?...”
Ao contrário de muitos alpinistas que chegam aos grandes picos com a ajuda de oxigénio artificial, João Garcia continua a sofrer da sua privação para os alcançar, aliás, tal como nós. Existem momentos no mês em que gostaríamos de nos virar para a nossa companheira de escalada e pedir-lhe oxigénio, sem corrermos o risco dela nos responder: O quêêê?...Ah,ah,ah! Ela está ali, a 8 dias do final da escalada, tão ofegante quanto eu, em busca de um pouco de oxigénio. Quando chegamos finalmente ao cume, ao dia do vencimento, sabemos que não podemos baixar a guarda, apenas contamos com umas quantas bombadas de oxigénio regenerador para, logo ali, iniciar a próxima subida.
Fui levantar dinheiro no Multibanco e tinha gostado de ver ali, depois do João Garcia anunciar a sua aventura, o António Joaquim, operário fabril, que recebe 400 euros ao mês empunhar a bandeira portuguesa e dizer ofegante: Consegui sobreviver a mais uma aventura, das doze escaladas que me propus conquistar este ano! Agradeço ao banco que patrocinou esta minha sensação de falta de ar permanente com as suas taxas de juro bonificadas. Espero brevemente pela vossa próxima ajuda, olhem, podem começar por aquela de cobrar taxa por cada operação no Multibanco…a ver se consigo aguentar mais tempo sem oxigénio.

segunda-feira, 28 de maio de 2007

Sair para fora cá dentro


Num destes fins-de-semana fora de época, decidimos rumar até ao algarve, essa região bem nacional onde o sol e as praias nos garantem momentos bem passados. Quando chegámos ao empreendimento onde ficaríamos alojados, verificámos um movimento pouco usual para uma época supostamente baixa. Aquilo parecia Oxford Street em dia de saldos no Arrods. Ingleses radiantes por todo o lado. A velhinha com a pele cor de lixívia e um corte “pente quatro”, o casal de “lagostins” que não sabia que o sol existia e queimava tanto, ou os putos bem comportados daqueles que não fazem birras nem atiram baldes de areia ao ocupante da toalha ao lado, todos eles estavam lá!
Logo na primeira noite saímos em direcção à rua principal para ver a animação nocturna naquelas paragens. À nossa frente ia um casal de ingleses já idosos conversando descontraidamente quando, qual filme de aventuras, salta do escuro uma criatura esguia com voz de grilo afónico, desbobinando em cima deles no espaço de 5 segundos toda a ementa do restaurante dos seus pais, com ingredientes e tudo. Ao mais comum dos mortais, aquela abordagem seria suficiente para originar um espancamento imediato à agressora ou 2 enfartes de miocárdio consecutivos. Aqueles idosos mantiveram-se inalteráveis e responderam com um delicado “tank you, we allredy eat”. Ficámos atónitos. Como é possível, aqueles senhores depois de serem “esfaqueados” por um estridente e inesperado “Hillo” e agredidos por 37.768 palavras em inglês sem vírgulas no meio, retribuirem com um agradecimento em vez de um estaladão. À medida que caminhávamos, assistimos a mais 3 assaltos ao simpático casal, todos eles vindos de “carraças” contratadas pelos restaurantes, que, tal como mosquitos que nos acordam às 4 da manhã com o seu agradável zumbido junto aos nossos ouvidos, nos apetece espalmá-los entre o chinelo de quarto e a parede. Apesar de todos os defeitos, esses seres repugnantes tinham a capacidade de seleccionar criteriosamente o tipo de cliente. E a ordem que teriam dos donos seria: “ó meu, eu só quero aqui malta da grana, topas? tudo o que seja português, marroquino, ou guineense não interessa! Eu só quero “steaks”, daqueles que confundem as notas de 5 com as de 50! O que é certo é que, mesmo que estivéssemos embrenhados no meio de 30 ingleses, disfarçados com bigodes e cabeleiras loiras, de meias de lã e chinelos, éramos descobertos e votados ao desprezo.
Procurávamos um restaurante onde pudéssemos comer um bom peixe assado na brasa.. À medida que avançamos, rapidamente descobrimos que dificilmente nos desenvencilhamos sem a ajuda dum dicionário de bolso. Os nomes dos restaurantes, transburdando de latinidade, perspectivavam uma busca dolorosa: “Jack’s grill”, “Irish Spot”, “Rick’s place”, “Frog’s”, “Garage”, “Mary Anns”, “Cross road”. Quanto às ementas, essas sim tinham todas um cunho bem lusitano : “Bacon and eggs”, “Full english breakfeast”, “roast chicken”, “chips and salad”, “apple pie and cream”, “special spare ribs”.
Depois de comermos um hamburguer, decidimos ir averiguar os programas de animação nocturna que os bares e esplanadas nos ofereciam. Então vejamos: para os mais desportistas ...“Tonigth at 10 pm football - England v Germany”; para os apreciadores de boa música ao som de bandolim...“Live music with Tom McLoughlin”; para os candidatos a cantores... “Karaoke - english and american music only”.
Porra! então e nós? não temos uma noite da água pé, um jogo de futebol entre o Tavira e o Quarteirense, ou um Karaoke com músicas da Agatha e dos excesso? Que discriminação vem a ser esta?
Depois de sentirmos uma revolta patriótica por descobrirmos que os ingleses tinham colonizado uma parte do nosso país, descobrimos que nem era tão mau assim. Afinal estávamos noutro país sem termos pago a passagem de avião, o aluguer do carro e a estada no hotel. Podíamos comer comida inglesa, ouvir música inglesa, falar a língua inglesa, bastando para tal percorrer 300 km num ferrugento citroen AX.
Quem deveria estar furioso, seriam todos aqueles britânicos que, ao pagarem uma passagem de avião, alugado o carro e pago a estada no hotel, em busca de uma nova gastronomia, de uma nova língua, de uma nova cultura, chegam à conclusão saíram de casa para chegar a... casa(?). And this explendid sun? Quanto ao sol,... bom,... que tal um “holofotezito” escondido no canto do quarto e um cenário artificial com traineiras e varinas? Sairia decerto bem mais barato. Mas não!...
...We love Portugal! Mas vocês não estão em Portugal seus ignorantes! como podem dizer que gostam de uma coisa sem a conhecerem? Para conhecerem Portugal vão ter que sujar as vossas delicadas mãozinhas com a gordura de uma sardinha assada, de beber um vinho Vidigueira sem o objectivo de se engrossarem, de trocar os passos ao tentar aprender dançar o corridinho, de fazer um esforço para perceber a nossa estranha linguagem, enfim, de se abstrair um pouco da cultura egocêntrica onde foram criados e se abrir a novas culturas numa atitude de clara humildade. Só assim, poderão dizer aos amigos, quando chegarem a casa, que conheceram uma região daquele pequeno país peninsular junto ao oceano atlântico, que para além do sol, tinha outros aspectos interessantes.
No final do fim de semana entregámos as chaves do apartamento à senhora da recepção que, curiosamente, foi bem mais simpática do que no dia da chegada. A resposta dada a um “Adeus” português era igual ao “Hello” inglês;...estranha coincidência(?).
Decidimos regressar no nosso Ax pelo interior alentejano, para melhor apreciar os montes multicolores próprios da época. Quando parámos num café para desentorpecer e ouvimos falar alentejano, sentimos uma alegria imensa por finalmente passarmos a fronteira para o nosso país. Aquele “atão compadre”, cheirava a casa e garantia-nos que aquela pessoa à nossa frente, de boné na cabeça e patilhas prolongadas, jamais libertaria um “Hello, how are you!”.