segunda-feira, 30 de julho de 2007

O triângulo perfeito

Já tinha interiorizado que iria para férias sem levar na memória qualquer tipo de lembrança desagradável, mas a imagem do tipo persegue-me para onde quer que vá. No entanto, decidi que desta vez não iria bater tanto no desgraçado, coitado, que está sempre a ouvir apupos de todas as esquinas, becos, ruas, drogarias, escolas, hospitais,…Aquele som do Buuuuu, não lhe larga os tímpanos e a carroçaria do seu Hiper-Mega-Ego blindado. Mas se um apupo incomoda muita gente, ao nosso primeiro-ministro incomoda muito mais. Penso que o indivíduo que apupa tem uma especial predilecção por quem gosta menos de ser apupado. Desenvolve um sistema olfactivo de detecção do “medo de apupo” e ataca repetidamente em som estridente, até a vítima fazer aquela cara de indignação e dizer que não entende nada daquilo, que deve ser para os tipos que estão do outro lado da rua. Quando eu pensava que já não era possível, finalmente o Primeiro Ministro teve um rasgo de inteligência e pensou: Se não podes vencer os apupos,…pira-te deles! E assim foi. Depois da monumental vaia durante a escolha das 7 maravilhas de Portugal, cuja intensidade e duração mediu meças com a imponência do mosteiro dos Jerónimos, decidiu entrar num período de quarentena de apupos. Assim, começou por inaugurar uma ponte sem aquela minoria de desordeiros e destabilizadores nas suas costas, pagos para estarem ali a gritar impropérios perfeitamente descabidos. Só os ministros, apoiantes de gravata e barreiras policiais estariam presentes. Foi um sossego; a sua voz ecoava doce e cristalina, sem a interferência de um Bu, um Filho da…; um Vai p’ra casa ladrão.
Depois foi àquela escola, dar conta do plano tecnológico, em férias(?). Mas, a esse pormenor, que descartava a rebeldia dos rapazolas malcriados e dos Professores ainda mais desordeiros, juntou uns alunos bem educadinhos, de forma totalmente espontânea e nada planeada. Chegou assim, triunfante à sala de aula virtual, acompanhado pela sua ministra e mais directa concorrente para o concurso do mais apupado, sem ouvir um único Apupo(?); a mais ténue vaia; o mais singelo “chega seu traste!”. Nada, só sorrisos, sobretudo do tipo que ia atrás, o tal que vendeu as máquinas ao ministério. O maldito e escarafunchador repórter tinha logo de perguntar ao aluno que estava ali sentado na carteira, de que tratava aquela aula, em tempo de férias, ao que ele respondeu qualquer coisa do género: “Não sei de nada disto! Disseram aos meus pais para eu vir aqui fazer uns sorrisos e eu vim; até pensei que era para tirarem fotografias para uma revista ou um casting para as Chiquititas!”. Quando o desordeiro do jornalista perguntou ao governante porque tinham pago ao miúdo para sorrir e fingir que estava ali atento à matéria, o governante foi totalmente imprevisível e disse que aquela organização não era nada com ele que não sabia de nada, mas que ia ver o que se passava. O tipo não pára de nos surpreender. Depois deu em percorrer a sala, metendo conversa com os miúdos, revelando o seu enorme potencial pedagógico e jeito intrínseco para lidar com a rapaziada. Então? Como te chamas? Agora diz-me lá ó Ruben se não achas que estas aulas virtuais são muito mais engraçadas do que as outras onde não se carrega em qualquer botão? Pois achas, vês?! É mais fácil não é? Olha até eu sei como isto se faz! É só pegar no rato e fazer a correspondência entre esta figura e a palavra que a representa! Estava a ver esta aula frutuosa e deu-me a nostalgia dos tempos em que ensinava o meu filho, aos 3 anos, a fazer aquelas difíceis correspondências com o marcador “carioca” . E por falar em nostalgia, a jornalista pergunta de novo ao Primeiro-Ministro se este não sente saudades dos quadros a giz e dos professores a ensinar, ao que ele responde prontamente: O futuro está p’rá frente! Já viu um professor desenhar com um giz, um triângulo tão perfeito quanto este que o computador faz? Não, pois não? Depois de calar o apupo da jornalista, pôs-se a pensar: Tão perfeito como o triângulo do ecrã, só as minhas respostas na ponta da língua, a minha capacidade de liderança e a civilização que eu irei criar, de preferência sem apupos e jornalistas por perto.

terça-feira, 10 de julho de 2007

Ajunta!...Ajunta!



Um professor sem a laringe foi considerado apto pela junta médica para dar aulas de Filosofia numa escola secundária. Se começássemos assim uma conversa com um amigo receberíamos logo a resposta “Seu brincalhão…, estás sempre na reinação” . Se eu acrescentasse que, depois do cancro e da remoção da laringe, o professor não foi apenas a uma junta médica, mas a várias e todas elas o consideraram apto para leccionar, o meu amigo não poderia deixar de responder acompanhado por um ar jocoso “Epá deixa-te lá disso, existem petas bem pregadas, mas com esse exagero ninguém acredita em ti!”. Só quando lhe puxamos pelos colarinhos e lhe dizemos com a nossa melhor colocação de voz … “É VERDADE!!!” é que ele nos começa a levar a sério. Eu acreditei logo à primeira, porque já conhecia as capacidades desses implacáveis personagens. Há uns anos, ao acompanhar a minha mãe, paraplégica, professora de Educação Física, que se preparava para pedir redução ao fim de muitos anos a dar aulas em cadeira de rodas, tomei consciência da extrema amabilidade como foi recebida: “a senhora é mesmo paraplégica?...” com uma cara de que faltaria ali acrescentar “…ou foi alugar essa cadeira de rodas ali nos chineses só para nos enganar?”. À minha mãe também apetecia responder “Não; sabe, é que eu tenho um gosto especial por actividades radicais com veículos rolantes. Há indivíduos que curtem o Skate, outros curtem as biclas e eu curto as cadeiras de rodas, dá para fazer mais manobras”.
Não sei como é feita a selecção dos tipos da junta médica, mas deve ser das provas mais duras que existem. Começam logo por incutir nos candidatos a máxima “O tipo que está à tua frente mente de forma descarada e não merece clemência”. Se ao fim de todos os inquéritos e atestados se descobrir que o tipo afinal não está a mentir, então troca-se pela outra máxima “o tipo que está à tua frente não mente de forma descarada e tu vais ajudá-lo a encontrar e a desenvolver o seu outro lado” . Um professor que não consegue falar, pode perfeitamente desenvolver outras capacidades como a comunicação telepática, através de ondas magnéticas, como forma de potenciar as aprendizagens dos seus alunos. Se os alunos não percebem patavina, terá de se esforçar mais um bocado e encontrar outras formas de comunicação; talvez através da mímica filosófica(?) . Mas quando eu penso nas provas de selecção do candidato a inquiridor da junta médica, existe uma imagem que não me sai da cabeça: a do jogador de Râguebi. Para além da cara de mau que tem de fazer para o seu opositor e do pescoço musculado que assusta qualquer criancinha ao pequeno almoço, tem de assumir a postura do “Aqui ninguém passa! Nem que seja o Papa, o Xanana ou a princesa das Astúrias. Vai tudo ao chão! ” E é assim que o verdadeiro avaliador da junta deverá agir. Sem compaixão; com dureza; pronto para aplicar a placagem no momento certo. Não importa que seja cego, surdo, mudo, paraplégico, esquizofrénico. Ou estão a mentir e são agarrados; ou não estão a mentir e…são agarrados na mesma, apenas com a diferença de lhes fazerem uma festinha no couro cabeludo depois de os mandar ao chão. - Vá, agora que já percebeste que não passas daqui, vai lá para o teu cantinho e não voltes a tentar a gracinha! A ideia base subjacente ao avaliador é a de que o indivíduo que está ali a pedir reforma antecipada ou redução de serviço é sempre a do malandro que se quer escapulir com a bola nas mãos (na versão desportiva); do malandro que se quer escapulir sem pagar a conta na discoteca (na versão nocturna); do malandro do bezerro que se quer escapulir da pega de caras (na versão tauromáquica). Em qualquer delas o denominador comum é “Malandro que se quer escapulir” dito em tom agressivo e despoletador de um sentimento de repulsa que convém manter, para aplicar o golpe sem arrependimentos. A própria designação “A junta” tem uma carga colectiva inerente a todos os exemplos dados. Quer os jogadores de Râguebi, quer os seguranças da discoteca, quer os aspirantes a forcados utilizam uma expressão em tudo similar que visa a união do grupo em torno no mesmo objectivo bloqueador e que diz “Ajunta, ajunta, q’é pró malandro não fugir!”
E lá vai mais um malandro à junta médica da caixa de aposentações. - Está aqui a dizer que o senhor, depois do acidente de viação, ficou sem ver, sem falar, sem andar e sem um braço. É verdade? Ainda mexe o dedo indicador? Vá-se lá embora malandro, e ponha esse dedinho a trabalhar que há muitas coisas úteis que pode fazer com ele…

quarta-feira, 4 de julho de 2007

A bola é quadrada


Passeava os meus filhos pelas ruas de uma localidade no norte do país em busca de alguma diversão que extrapolasse os cansativos escorregas, baloiços, cavalinhos com molas e afins. Ouvimos um ruído vindo de longe que parecia um jogo de futebol. Num campo pelado ali ao pé jogavam duas equipas de Juvenis. Ao aproximar-me do local, ia pensando que os miúdos iriam gostar de ver a rapaziada ali a divertir-se aos pontapés na chicha em alegre confraternização. Assim que chegámos, uma das equipas sofre um golo. Fo***! Car***! a culpa é tua seu filho da P***! Minha o ca***! A culpa é do ca*** do guarda-redes!...No meio daqueles pornográficos diálogos infanto-juvenis, a minha filha perguntou-me de forma ingénua: Oh pai, o que é que os meninos estão a dizer? Poderia ter mentido e dizer que aquilo era um léxico próprio do futebol; uma linguagem técnica para dizer “põe a bola no meio campo e vamos lá jogar”;…mas saiu-me a verdade: Asneiredo! O que os meninos estão a dizer é asneira, filha! Mas…estão todos a dizer a mesma coisa!? Voltava à carga. O que vou dizer à miúda? Pensei ao olhar para aquele cenário. Todos os jogadores, mas todos sem excepção estavam aos berros obscenos uns com os outros, levantando os braços e arregalando os olhos de fúria. Será que lhes tiraram a play station? Ou que lhes roubaram o álbum dos “d’zrt”? ou então que lhes partiram o telemóvel de terceira geração? Não. Apenas sofreram um golo. Continuei a ver o jogo, mesmo sabendo que estaria a sujeitar os meus rebentos a um espectáculo deprimente com possíveis consequências nefastas na sua formação. Mas estava curioso para saber no que aquilo poderia dar. A bola vai a meio campo e lá começam eles, pontapé na bola, pontapé no pelado, pontapé na canela, pontapé na gramática. O “mister” de uma das equipas coça as partes baixas ao mesmo tempo que grita: Ó Zé mexe-te fo***! Vai ao homem, vai ao homem! Cospe no chão, vira-se para os atletas no banco e desabafa “Cum Ca*** aquele gajo não joga nada!”. Entre dois berros e duas cuspidelas fuma um cigarro. Um dos seus atletas manda um empurrão no adversário o árbitro marca falta. O quê? Ó sôr árbitro,…você precisa de óculos! No meio de toda aquela asneirada, saía-lhe esporadicamente um “João, abre o jogo, olha o ponta de lança!” Esta parte do diálogo era só p’ra enganar; um cliché para dar ar que percebe alguma coisa daquela coisa. A sua equipa está a ganhar e ele diz por gestos para o guarda-redes queimar tempo. Tocam no guarda-redes ao de leve e ele cai no chão contorcendo-se de dores. O massagista entra; o mister sorri para o seu banco e levanta o polegar. O guarda-redes levanta-se combalido mas já está aos saltos e a correr. A bola vai para o banco, o mister pega-lhe vem um jogador adversário puxa-lhe a bola ele não lha dá; o jogador empurra-o e manda-lhe um pontapé. Vem o árbitro e o polícia acalmar os ânimos. O mister diz: apanho-te lá fora seu ca***ão! A minha filha continuava a insistir: ó pai, aqueles senhores são um bocado malcriados, não achas? Eu já não achava nada…estava mudo e atónito. Afinal só queria ver um jogo de juvenis com os meus filhos e estava a assistir a uma espécie de batalha campal. Para minha maior admiração, a batalha não era apenas travada dentro do campo. Um “Fo***” saiu mesmo ali ao pé de mim. Era um pai revoltado por não passarem a bola ao filho. Lancei o meu ouvido pela assistência e lá vinham mais “Ca***s” , “Ca***ões”; “se tocas no meu menino eu “fo***-te todo”; “manda uma caveirada nesse ordinário que tem a mania que joga à bola”. Eram os pais das crianças(?). As mesmas que se estariam a divertir a jogar à bola e os progenitores exprimiam o seu contentamento com pequenas asneiritas sem importância. As crianças continuavam à canelada, à cotovelada, à cabeçada…nas cabeças dos outros, e de vez em quando um pontapé na bola. Passava naquele momento um angariador de verbas para o “futebol da pequenada” dizia ele. Tinha um miúdo ao colo segurando uma caixa onde os espectadores contribuíam para que o futebol das camadas jovens se desenvolvesse. Eu não tinha dinheiro comigo, logo não contribui. Ainda bem. Se tivesse posto moedas naquele mealheiro da “formação” ainda hoje me estaria a penitenciar. Punha dinheiro na caixinha para que as crianças formassem melhor o seu vocabulário rudimentar e desenvolvessem técnicas mais eficazes de deixar os adversários no chão agarrados às canelas. No meio de todo aquele espectáculo deprimente, tive pena do pobre do árbitro e respectivos fiscais de linha que, mesmo perante o cenário deplorável e insultos repetidos, conseguiam manter uma pose de quem estaria a arbitrar a final da liga dos campeões. Mas apesar de algo chocado, deu para ficar com uma perspectiva melhor dos jogos da super-liga. Os momentos em que o jogador se dirige para o árbitro e a câmara regista em slow motion a mandíbula para cima e para baixo percebendo-se que sai algo do género “seeeeuuuu caaaraaa de caaaa*****””, tem a devida sequência do excelente trabalho que é desenvolvido nas “camadas jovens”. É um processo de coerência a longo prazo. Nos infantis aprendem a dizer fo***, para quando chegarem aos seniores conseguirem articular três palavras “fo***-te seu ca***ão”.
Termino este meu testemunho com a basilar frase do Professor António Sérgio: “O Futebol Reproduz e Amplia as Taras Sociais.”