quinta-feira, 20 de setembro de 2007

A senhora do elevador



Aquele elevador está num sítio isolado. Existe outro ali bem perto e mais arejado, mas optei por aquele, porque fica mais perto do estacionamento. Saí do carro à pressa e entrei de rompante no hall de espera do elevador. Deparei-me com uma senhora encostada à porta sem desviar o olhar da mesma nem por um segundo. Achei estranho, mas lá fiquei, com ela, à espera do ascensor . Ao observar com mais atenção notei que, aquele encosto do nariz à porta de metal, transportava uma certa tensão, aliás uma excessiva tensão para estar apenas relacionada com pressa de subir. Pressionei mais uma vez no botão de chamada e, para aliviar a tensão da senhora, disse umas fúteis palavras do tipo “parece que não quer nada connosco”, ao que a senhora (sem retirar os olhos da porta de aço) e com cara de poucos amigos disse a bufar “poooça não há paciência!”. Continuei a achar estranho, mas calei-me. Será que alguma amiga lhe tinha dito que a campanha de saldos terminava dentro de minutos? ou que estaria ali o Cristiano Ronaldo a dar autógrafos? Aquela impaciência e tensão transportava afinal de contas uma sensação de medo. Medo do indivíduo que entrou ali de forma inesperada e abrupta, sem lhe dar tempo de reagir. Ficou enclausurada entre a porta e o peito de um desconhecido, que poderia muito bem ser um violador,… ou pior: um violador e assassino;… ou ainda pior: um violador , assassino e adjunto de secretário de estado. Apeteceu-lhe fugir mas era tarde; e o elevador tardava em chegar, para que ela visse terminado o seu calvário mais rápido. A porta abriu e entrou de forma fulminante para o cantinho do cubículo. Queria aliviar o sofrimento da senhora com um diálogo enriquecedor sobre as condições meteorológicas ou a crise no Médio Oriente, mas fiquei com a plena convicção, que à primeira palavra que emitisse, apanhava logo com a carteira da senhora nas ventas e um pontapé nas partes baixas seguido de um “Socorro!...Gatuno!”. Mantivemo-nos ali num sepulcral e incomodativo silêncio, durante os intermináveis segundos que a subida demorou. Cada um no seu canto da masmorra, esperando pela libertação. Ao sentir-me um homicida depravado, vieram-me à memória, as minhas férias de infância passadas numa aldeia de Trás-os-Montes, onde todas as pessoas se falavam, mesmo sem se conhecerem. Dizia-se “Bom dia!” quando nos cruzávamos com desconhecidos na rua, no campo ou na mercearia , apesar do dia por vezes não estar lá grande coisa. Mas também o sorriso largo não era dispensado para acompanhar o generoso “Bom dia!” . Estava eu entretido com as minhas memórias de sorriso largo e lá estava a senhora com ar carrancudo, pronta para me lançar o spray paralisante nos olhos, ao primeiro movimento suspeito que esboçasse. Mas aquele desconforto serviu para me fazer pensar no absurdo dos tempos urbanos. Dos tempos em que ninguém fala com ninguém, mesmo quando partilha um exíguo elevador; em que todos têm na cabeça a última notícia do jovem que degolou a namorada ou a criança que foi raptada; dos tempos de olhar apavorado por cima do ombro quando se retiram as notas no Multibanco; em que não se deixam as janelas abertas por causa dos ladrões; dos tempos em que não se tem tempo. Estava eu a pensar nos tempos modernos e lembrei-me da púcara(?). A púcara que encontrávamos junto à fonte que trazia água da serra do Marão e que estava ali, para matar a sede a tipos como nós, que por ali passavam durante as caminhadas. De vez em quando, encontrávamos o dono daquelas terras e…do púcaro, que nos presenteava com uma cavaqueira de quem não vê alguém há muito. Alguém que pode escutar os seus desabafos sobre as dificuldades dos cultivos, a frescura da água da montanha ou a sacana da cabra que ainda não voltou do pastoreio.
Finalmente, a porta do elevador abriu e a senhora fugiu disparada para longe das mãos do eventual violador, rumo à libertação. Ao confrontar-me com o seu óbvio alívio, pensei o que teria acontecido se lhe tivesse lançado um efusivo “Bom dia!”. Talvez tivesse a marca da sua sacola estampada na minha testa…

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Quando os homens também choram



Eu vi os tipos agarrados a chorar e tive vontade de chorar. Berravam o hino, como se disso dependesse a sua vida e a do seu país. Viam-se as bocas bem abertas, as mãos bem firmes no pescoço do companheiro do lado e as vozes roucas embargadas pela emoção de ser português e estar ali, naquela hora a empunhar orgulhosamente o “Nobre povo nação valente” perante o mundo. Mas eu vi apenas o que me deixaram ver. Eram os nossos primeiros representantes na Taça do Mundo de Râguebi, que se preparavam para jogar. O jogo, esse, não o vi, simplesmente porque o canal público, para o qual todos contribuímos alarvemente, achou que a modalidade não tinha qualquer interesse público(?), bom pelo menos não tanto como a cobertura ininterrupta do caso Madelaine baseada em fontes próximas da polícia e do casal, o concurso Herança de Verão onde uns tipos gamam a massa dos outros ou aquela novela portuguesa representada por actores brasileiros. Continuava com a imagem daqueles matulões chorando convulsivamente e não pude deixar de me sentir orgulhoso ao ver o orgulho que os tipos tinham do país. Mas apesar do sinal de patriotismo, o país parece que não reparou neles. Afinal porque vale a pena reparar nuns tipos que vão lá só para perder por menos de 50 pontos com a Escócia? Afinal somos um país regido pela excelência, onde tudo é soberbo, onde apenas interessa a vitória, estamos habituados a sermos os primeiros em tudo. Será assim desprezível assistir à luta de jogadores para não perder por muitos; nós só conseguimos ver alguém a ganhar por muitos! Talvez por isso o quarto lugar no mundial de atletismo de Naide Gomes ser uma desilusão. “Então e a medalha miúda? Tu não consegues fazer melhor do que seres a quarta melhor do mundo? …que miséria…”. Mas voltemos ao Râguebi e à única selecção amadora entre as 20 melhores do mundo. Aos tipos que se reúnem depois do trabalho para se embrulhar na lama, que perdem fins de semana para jogar em estádios com 20 espectadores, que jogam lesionados para que se consiga chegar lá,…à taça do mundo, para que o país se pudesse orgulhar deles, do seu esforço, da sua dor e da sua voz a cantar o hino. Mas a busca da audiência desenfreada, fez com que o esforço destes atletas, passasse à margem do país. E perdeu-se a oportunidade de dar a conhecer o jogo de Râguebi, um jogo onde se cultiva o espírito de superação colectiva, onde existe um confronto duro mas leal, onde os jogadores não chamam nomes ao árbitro, onde o adversário vencido saúda no final o vencedor, um jogo em que cada metro de terreno é ganho através de muita luta, dor e dentes partidos. Será que ninguém vê utilidade pública aqui? Utilidade de educar para a superação, para o esforço, para o “ir à luta”. Não é isto que o país precisa de ver? Não. Porque a maior parte da malta encara o facto de sermos os últimos da Europa como uma sina, um facto inalterável. Aqueles matulões que choraram a ouvir o hino, apesar de saberem que têm poucas hipóteses de vencer, vão à luta, dão encontrões, agarram as pernas dos adversários, espetam-se de cabeça no meio da molhada.
Já eu tinha começado a escrever esta crónica e, por pura e inusitada coincidência, um amigo enviou-me em email, a comparação desse momento sublime e enérgico dos jogadores de râguebi gritando o hino, com o momento apático e flácido dos jogadores da selecção de futebol a entoarem entre dentes a nossa portuguesa. É uma constatação paradigmática: Os que têm toda a gente a torcer e a cantar com eles, os que são vistos na TV, os que ganham balúrdios para darem uns pontapés na chicha ou não cantam o hino ou cantam-no baixinho; aqueles que não ganham um chavo, que ninguém sabe o nome deles, que para os ver tem de se pagar a mensalidade da sport tv, os que apesar de saberem que vão levar umas cotoveladas e placagens, choram como crianças com orgulho e felicidade de serem portugueses.
Tenho de arranjar maneira de ver os restantes jogos da selecção de râguebi, para poder cantar com eles aos berros o hino de Portugal, mas sobretudo para poder chorar com eles, por saber que alguém não baixou os braços antes de conseguir colocar dentro de um rectângulo aquela bola oval.

domingo, 9 de setembro de 2007

Flexi...deslizando


“Boa pai! Mequedonal! Mequedonal! Mequedonal! Um pai que leva os seus rebentos ao Mcdonalds, sabe que a comida é o que menos interessa, senão eles teriam essa expressão de júbilo, sempre que lhes dissesse que iríamos comer uns grelhados à tasca do Isaías. Eles anseiam sobretudo por colocar a mão dentro do pacote do Happy Meal em busca do brinquedo em forma de andróide ou princesa, aquele que adoram quando o vêem, e no dia seguinte já está na boca do cão. Passam assim a curta refeição a tentar perceber como funciona o andróide em forma de bicho, acabando sempre com a dúvida “Ó pai vê aí nas instruções se o dragão manda fogo pela boca ou pelo rabo!?”. Desta vez fui verdadeiramente destemido e levei-os em plena hora e dia de ponta. Comemos lá fora, facto que acelerou ainda mais o processo de fast-aspiração alimentar, uma vez que o parque infantil, estava ali demasiado próximo e apelativo. Deixámo-los ir e ficámos a observar o pandemónio. Naquele reduzido parque labiríntico, estariam uns 30 cachopos (se eram 15 pareciam 30) a correr desalmadamente para cima e para baixo, como se os carros inamovíveis se preparassem para arrancar a toda a velocidade e os deixassem apeados. Dentro do parque, lá no primeiro andar, ouvia-se um grito de miúdo vindo da escuridão tentando afugentar os que conseguiam subir as escadas. Aqueles que superavam o medo, lá mandavam um encontrão na fera e passavam para etapa seguinte, a dos carros suspensos. Dentro de um dos carros vislumbrava-se uma criança grande, talvez grande demais para alguém a tirar de lá à força. Uma rapariga pede para o mastodonte desocupar o lugar e ele lá desocupa contrariado. Desce com toda a sua massa corporal pelo escorrega e atropela um miúdo que se preparava para subir. Uma outra criança cai das escadas cá em baixo. Parece que o tipo dos gritos de monstro não gostou que o tivessem empurrado e empurrou o mais pequeno, quando este estava quase lá em cima.
Dizia-me o meu amigo João que também estava ali com os filhos “Já viste que com a idade destes miúdos, nós brincávamos nos olivais, e eles agora estão enclausurados aqui nesta caixa de plástico todos divertidos?”. Ao ouvir aquelas palavras e ao ver aquele enxame desorientado de cachopos, descobri as grandes virtudes que um espaço daqueles poderá encerrar em termos de formação das novas gerações. De facto, a sociedade portuguesa caminha para um sistema destes; um sistema fechado de exíguos labirintos, carrinhos minorcas e descidas de escorregas que terminam junto de novas e sinuosas subidas. A caixa labiríntica cheia de concorrência, representa a escola ideal como preparação para o panorama competitivo nacional. O panorama dos milhares de jovens em busca do estreito caminho para os poucos empregos, num mundo do salve-se quem puder, se necessário por cima do tipo que manda berros. É também disso que trata a flexisegurança, aquela invenção da malta ter 50 empregos ao longo da vida e dos patrões poderem despedir os empregados se embirrarem com a cor da camisa ou com os pêlos do nariz.
Cá em baixo estavam os outros 25 a jogar à apanhada, mas nenhum percebia quem é que apanhava quem. Tocavam uns nos outros, sem ordem ou coerência e fugiam uns dos outros,…sem ordem e coerência. Corriam era muito. Todos corriam, para todos os lados e o tipo de lá de cima continuava aos berros. No meio das perseguições viam-se uns quantos encontrões e tropeções. Os que se punham mais rápido em pé, subiam mais rápido pelas escadas e enfrentavam de forma mais consistente a besta dos berros. Como lá em cima só haverá lugar para 4, aquele que acaba de entrar, tem de arranjar estratégia de pôr um dos 4 a escorregar. Ou manda um berro maior do que o afugentador acompanhado por um estalo, ou consegue com falinhas mansas convencer o matulão a desocupar a cadeira do veículo, ou se desenvencilha de qualquer forma dos outros 2, que se encontram escondidos nos recônditos do labirinto. Caso não consiga pôr nenhum dos outros a andar, cabe-lhe o caminho do escorrega, ou seja, o da própria flexi-segurança.
Esta é a verdadeira escola. A escola do desenrasca; do mais espertalhuco; do matulão; do tipo dos berros, do que toca antes nos outros, do que manda melhores encontrões. De forma sábia, o sistema de ensino caminha no sentido desta aglomeração. Despacham-se os professores e fazem-se turmas de 35 alunos, para eles começarem a perceber a densidade humana que encontrarão na disputa do primeiro emprego e…seguintes. Abrem-se mais cursos, para que aumentem os indivíduos que jogam à apanhada cá em baixo e os poucos que conseguem lá chegar acima, ao pé do tipo dos berros, têm de ser mesmo os mais fortes, os mais rápidos e os mais desenrascados. Os outros, irão continuar a jogar todos contentinhos à apanhada , esperando que haja uma alma caridosa que cale de uma vez por todas o tipo dos berros, que já ninguém o pode ouvir…

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Aparições



Eu sei que não deveria escrever sobre a princesa de Gales. Mas escrevo porque já não tenho pachorra para ler mais nada escrito, nem ouvir mais nada falado, nem ver mais nenhuma imagem da rapariga. Estou a ser perseguido, diariamente, pela sombra da moça e começo a não gostar. Aliás nem ela deveria gostar de tanta barbaridade que se lê, ouve e vê sobre as suas preferências. Liguei o rádio do carro e…”faz hoje 10 anos que a princesa Diana…” apaguei o rádio. Comprei o jornal “Diana : Acidente ou assassinato?”. Mudei o campo de visão e lá estão elas, as revistais sociais repletas de descobertas e novas revelações: “os amores de Diana”; “Diana estava grávida mas não era do Dodi” ; “o príncipe era mau na cama e gostava de outra”; “perseguida pelos papparazi até à morte”; “traição do mordomo”. É de um tipo dar em doido. Mas o que é que eu tenho a ver com a princesa de Gales? O que é que nos interessa saber se era feliz ou triste ou triste e feliz; se comia bem ou mal ou mal e bem; se tinha amantes ou não tinha amantes ou os amantes é que a tinham a ela. Venera-se a divindade da princesa que morreu e lê-se em pulgas a última traição que cometeu, os desequilíbrios emocionais que tinha, a amargura em que vivia, as perseguições de que era alvo. Há qualquer coisa que não bate a bota com a perdi gota. A malta cria e alimenta a imagem da santa criatura, mas rejubila cada vez que dizem que a imaculada princesa até punha os palitos ao seu amado e esbelto príncipe. “Ó vizinha, coitadinha da Diana. Tão boa rapariga, ajudava os doentes, pobres e desfavorecido, e tinha de morrer assim de forma tão estúpida! Sabe….parece que ela e o príncipe, aquilo não andava bem; encornanços e coisas assim, sabe? Até dizem que engravidou de um tipo, mas gostava de outro que se pirou. Mas, ai, era tão linda, coitadinha que Deus a tenha!”.
Tenho de confessar a minha ignorância perante os feitos relevantes da princesa de Gales. Parece que deu visibilidade a causas humanitárias como a campanha contra as minas terrestres e a luta no combate à Sida. Mas quando ouço falar em causas humanitárias lembro-me dos médicos sem fronteiras e dos milhares de voluntários por esse mundo fora, que prescindem de mordomias reais para ajudar a tornar quotidianos de miséria um pouco menos miseráveis. E dez anos depois de muitos desses beneméritos morrerem, muitas das vezes atingidos por balas perdidas,… continua-se a dissecar a vida sexual da princesa do povo. A bem dizer, eles dispensariam essas relevantes coberturas jornalísticas sobre a tonalidade da sua roupa interior.
Agora estou mais interessado em dissecar outra Diana. A Diana Chaves, a nossa versão portuguesa de Diana, a mais solicitada pelos paparazzi nacionais. São anúncios de roupa interior, namoros com Cristiano Ronaldo, novelas bem produzidas , silicone nas mamas, tudo o que o povo gosta. É certo que ainda faltam umas infidelidades pelo meio e relatos de depressões, mas com o tempo lá inventarão qualquer coisa para a moça. Mas o que mais me surpreendeu foram as aparições (?). Não da Nossa Senhora de Fátima, mas da Diana nas discotecas. Até se diz que por cada aparição recebe um generoso Cachet. Só para aparecer; não fazer nada, nem servir à mesa, nem fazer malabarismo com bolas a arder, nem cantar umas musiquinhas, nem revelar segredos escaldantes, nada. Aparece a divindade, todos os homenzarrões se babam, para depois… toma lá a cheta e vai-te embora para outra discoteca, fazer mais uns milagres de veneração masculina.
Estou preocupado com a história da aparição, porque se a moda pega, haverá logo um espertalhão a dizer que viu uma aparição da Diana ,…a de Gales, por cima da casa dele, nos subúrbios de Paris, e que a entrada no seu quintal custará apenas 5 euros para o visitante, com desconto especial para crianças e idosos. Depois a malta pode acender umas velas ali entre o canteiro das rosas e a ameixieira, esperando que ela surja entre o nevoeiro e revele o seu segredo mais bem guardado: Qual o nome do imbecil que lhe fez o último retrato.