terça-feira, 23 de outubro de 2007

Ouvi dizer...


Sempre tive vontade de escrever uma crónica baseada no boato. Afinal se todos os dias vemos informação sustentada em boatos, porque não poderei também eu, explorar o meu próprio boato. Infelizmente, associou-se ao boato uma imagem depreciativa, uma espécie de falsidade expressa na frase “Isso são só boatos, foi tudo inventado para denegrir a imagem do homem! Então não se vê logo que não é pedófilo?…; que os rapazolas que saíram de casa dele em tronco nu, eram entregadores da Pizza Hut?”. Mas o boato ou rumor como lhe queiram chamar, não tem de ser necessariamente falso. É apenas uma notícia não confirmada. Pode ser ou não falsa. Pois bem, estava eu a ver televisão na horizontal e, ao fim de 10 minutos, já estava como sempre fico depois de ver televisão na horizontal: a dormir profundamente. Tinha começado a sonhar com informações não confirmadas, mas eram boas informações. Às tantas comecei a ouvir o som estridente da televisão embrenhado no âmago dos meus boatos mentais. A minha mulher tinha aumentado o som para ouvir um debate sobre a pobreza. Como os meus sonhos em forma de boato estavam a correr às mil maravilhas (estava a sonhar com um tipo a sussurrar: “ouvi dizer que o deficit vai acabar…), não houve som estridente ou pobreza que pusesse fim a este saboroso e enriquecedor rumor. A partir daí, se me mantivesse a dormir, só criaria boas notícias não confirmadas. Entre o boato e o debate, de longe o primeiro. Ainda levei uma cotovelada acompanhada de um “não queres ouvir?”, mas deixei-me estar a roncar, preferia esperar para …ouvir dizer na manhã seguinte.
Na manhã seguinte, ouvi dizer (ora aqui está o boato!) que a determinada altura, no tal debate, que não ouvi e como tal não posso confirmar, um tipo disse acerca da pobreza, que um dos sinais para se saber se o indivíduo é pobre, é o facto de não ter computador em casa(?). Pode ter jipes, os dois filhos a estudar em escolas particulares, cães a comer ração da Eukanuba, mas se não tem computador…é pobre! Parece que… (outro boato encoberto pelo “parece”) os tipos da Caritas e outras obras sociais ainda tentaram demover o senhor contando-lhe das sopas dos pobres e ajudas domiciliárias, mas o senhor continuava na sua ideia de que “sem computador um tipo está a uma passo de se lançar da ponte Dom Luís com um tijolo agarrado aos pés” . Decidi inventar o meu próprio boato, e parece que o senhor disse para o representante da Caritas: “Mas antes de dar a sopa ao mendigo perguntou-lhe se ele tinha computador em casa? É que se tem, não come sopa!” Aliás, como grande obra de fundo, Ouvi dizer que está já em marcha a distribuição de computadores (onde já ouvi isto?) por todos os sem abrigo das ruas de Lisboa, no sentido de fazer com que deixem de ser …pobres. Então e a sopita?...Tem computador?...Não come!...Não tem computador?...Então tome lá a canjinha! Parece que no tal debate também se disse que os pobres, para manter o status, quando tinham algum dinheiro estoiravam-no em tudo menos em bens essenciais. Compravam para se sentirem menos pobres. Ouvi dizer que num casebre no meio da serra do Caldeirão, o filho perguntou ao pai: “Oh pai! É hoje que temos arroz para o jantar?...ao que o pai responde: “Meu estafermo!...Não vês que antes desses luxos alimentares temos de comprar um LCD para pôr ali à frente daquela janela que não tem vidro, que é para ver se tapamos as corrente de ar, pá?!”. Depois de tomar conhecimento destas informações não confirmadas sobre a pobreza extrema em Portugal, cheguei à escola e um amigo contou-me que tinha visto uma reportagem na televisão sobre uns miúdos no Gana que são vendidos pelos pais aos pescadores locais, para serem mantidos em regime de total escravidão, trabalhando 14 horas por dia. Comem uma refeição diária e, para além de pescarem desalmadamente, têm como função ir desprender redes no fundo do lago infestado de crocodilos, a uma velocidade que lhes permita sair de lá com todos os membros. Estava eu a ouvir falar da pobreza em Portugal,…dos pobres que compram roupa de marca para manterem o Status e de repente dou por mim a ouvir falar de outros pobres que vendem os filhos de 4 anos por 30 euros para serem comidos por crocodilos. Ouvi dizer que o tal senhor do debate, se apressou a ir à estação de informação que publicou essa notícia das crianças pobres ou das pobres crianças do Gana e em tom frenético lhes perguntou: E digam-me lá!....os miúdos?...Têm computador?....