terça-feira, 25 de novembro de 2008

A arte do Simulacro


A catástrofe assolou o país durante dois dias. Caiu um viaduto, incendiou-se um posto de combustível, desabaram dezenas de casas, explodiu uma fábrica, descarrilou um comboio, soterrou-se uma escola, despenharam-se carros, deram-se fugas de gás e rupturas de condutas de água, pessoas feridas no chão, rostos de sofrimento,…Corta!!! Já chega!...Terminou o simulacro! … Um simulacro, pá? E vem a malta aqui a esta hora, ao frio, convencidos que o sangue era mesmo a sério, mas afinal é tudo a fingir!? Indignam-se os curiosos que assistem incrédulos às operações de salvamento. Mas o espectáculo foi em grande; rivalizava com qualquer filme de Ridley Scott. Bombeiros, helicópteros, forças militares, ambulâncias, polícias e tudo para salvar malta que… não precisava de ser salva. Falava alguém sobre a importância dos simulacros, para estudar as lacunas da protecção civil em caso de emergência. “Para se perceber como agir em situações reais é necessário fazer simulações, criar situações a fingir…” , “A fingir o catano! Atão e a minha horta? Quem me paga os estragos nos tomateiros?” gritava a dona Idalina depois dos solícitos soldados da marinha lhe terem partido a porta de casa e pisado as hortaliças, para conseguirem chegar ao cenário de derrocada…a fingir. Parece que os rapazes levaram mesmo aquilo à séria e vai disto ó Evaristo, pensando que a idosa era também figurante daquele filme. “Em vez de andarem a pisar tomates, vão mas é apanhar os traficantes de droga na costa vicentina!”, parecia querer dizer a dona Idalina.
Mas de resto a coisa até correu benzito. As pessoas estavam calmas, os polícias estavam calmos, os bombeiros estavam tão calmos que parece que demoraram algum tempo a chegar. Aliás, uma das grandes conclusões do simulacro, foi a grave lacuna associada ao tempo excessivo que os mortos demorariam a chegar ao instituto de medicina legal. Um aspecto verdadeiramente importante, até porque as dezenas de mortos estavam vivos e cheios de frio.
O simulacro representou também uma experiência extraordinária para toda a ladroagem que existia em Lisboa e arredores. É que grande parte das forças de segurança estava distraída a resolver problemas a fingir. “Ó Jota, já sabes, quando a chota for ali ajudar os bombeiros na derrocada do viaduto em Alcântara-Mar, tu atacas na ourivesaria do Lumiar!”…”E se ouvires sirenes, não te preocupes que são os gajos a levar mortos a fingir…”
Gosto muito de ver espectáculos megalómanos de muita luz e acção. E apreciei de sobremaneira toda esta encenação, até porque a conjugação de várias sonoridades de sirenes, do ruído das hélices e todo o colorido das fardas, deixou no ar uma imagem arrebatadora de estoicismo. Só não percebi bem a parte do simulacro. Sinceramente, acho que gastar dinheiro a simular catástrofes, quando o país se encontra mergulhado numa tão grande, seria escusado. Com assaltos a bancos quase todos os dias; acidentes de viação hora a hora; assassinatos várias vezes ao dia; tráfico de droga e de armas em barda; pedófilos a atacar crianças que ninguém quer conhecer; bancários a roubar à bruta; políticos amigos de bancários que roubam à bruta. Então para quê o simulacro? Por causa dos sismos. Têm razão. Para a coisa parecer mais negra, só falta mesmo a terra tremer e abrir brechas, para nós cairmos definitivamente no buraco, embora eu pense que num sismo a sério a malta vai toda sair a correr para todo o lado, se possível para longe das sirenes.
Mas se a catástrofe grassa no nosso quotidiano, então e o simulacro? Não existe uma especialidade em mentir à descarada? A grande novidade reside no facto de habitualmente se usarem simulacros para se esconderem as catástrofes. Aliás, o nosso Primeiro ministro é um mestre na arte de bem simular. Simula licenciaturas, simula empregos, simula competência, simula riqueza, simula ordem, simula julgamentos, simula educação e tudo com muita calma, com muito descaramento. E, se lhe perguntarem como resolveria o transporte dos mortos, diria logo que ninguém morreria, mas no caso (remoto) de isso acontecer, os corpos chegariam à morgue em segundos e, ele próprio, patrocinava funerais com belas coroas de flores para todos.
A grande vantagem de termos à frente do país um tipo especialista no simulacro é que, no caso de surgir um terramoto a sério, ele conseguirá como ninguém, iludir o pessoal de que aquilo, quanto muito, será o resultado de uma má digestão de um qualquer elefante perdido na mata de Monsanto. É caso para Recuperar as palavras de Pinheiro de Azevedo, primeiro-ministro em 75, depois de um quantos petardos lançados num terreiro do Paço a abarrotar de manifestantes em pânico, ele gritava: “O povo é sereno! o povo é sereno!...isto é só fumaça!...”. A essas palavras só faltaria acrescentar: “E já agora tenham cuidado para não pisar a horta da dona Idalina!...”

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Interpretações Galináceas



Já não escrevia há algum tempo. Estive a passar por um período de recolhimento forçado resultante da avalanche de fenómenos paranormais que vão surgindo e a minha capacidade de filtragem ser extremamente limitada. Precisava de tempo para conseguir fazer a minha interpretação dos factos. Estava eu aqui no meu canto, a interpretar sossegadinho, e dou comigo a chocar com a própria da interpretação(?). E esse meu encontro com a “interpretação”, foi para mim um momento feliz; ao nível de um encontro da minha dentição com um prato de favas estufadas. Procurava algo que me pudesse saciar o apetite, sem ter de ficar com um travo de alho colado ao hálito. A “interpretação” deu-me essa sensação de repasto bem nutrido. Descobri que não há melhor forma de acalmar os nossos fantasmas mais corrosivos do que chamar a “interpretação” ao barulho. “Aquele tipo chamou-te ca***ão?”. “Sabes, eu acho que ele me queria chamar Carlitos, mas tropeçou numa pedra da calçada e teve de transformar aquela palavra num som mais próximo de Carlão” . Existe um facto; um tipo insulta outro; O outro, num golpe de mágica, consegue transformar o insulto num elogio, e não tem de andar à chapada. É um indivíduo mais feliz. Esta é a génese da verdadeira interpretação. Perante um facto, cada um o interpreta como quiser. Assim, se existem uns que conseguem pintar o facto de cor-de-rosa suave e apelativo, outros há que, assombrados pela interpretação negativista, começam logo a imaginar que a seguir daquele palavrão o tipo vai puxar das matracas escondidas debaixo do casaco de cabedal e desatar à matracada. Existe no entanto uma interpretação que sempre me pareceu difícil de fazer, talvez baseada na minha ignorância: a interpretação da lei. Sempre pensei que a lei fosse,…lei. Desprovida de equívocos; de subterfúgios; de mais ou menos; de …interpretações. Isto vem a propósito das declarações da ministra da educação que ouvi, entre duas músicas da rádio comercial. (A rádio comercial também tem as suas fragilidades e fracas interpretações)…Então dizia a senhora, que houve uma falha na interpretação da lei…?...Qual lei?...a do estatuto do aluno, que diz no artigo 22 da lei nº 3/2008 , que os alunos que atinjam o limite de faltas, qualquer que seja a sua natureza, terão de fazer uma prova de recuperação na disciplina em causa. “As escolas interpretaram mal lei!”, vociferou sem qualquer tipo de pudor. A interpretação é um dos melhores bodes expiatórios que existem, no fundo, materializada com a velha máxima “vocês é que perceberam mal!”. E eu de facto percebi tudo mal. Percebi mal que fosse preciso um instantâneo e lamentável desperdício de ovos contra o vidro duma limusina, para a lei ser transformada numa espécie de “assim-assim”. Se eu fosse galinha poedeira também teria percebido mal como a trabalheira e a força produzida de rabo voltado para a palha, pudesse ser estragada de forma tão leviana. Também percebi mal o poder que 3 simples omoletas espalmadas num vidro podem ter, quando comparadas com 120 mil professores na rua, que reivindicam a mudança de uma lei que não conseguem entender, nem com muito contorcionismo interpretativo. Deixo aqui a interpretação que faço em relação à importância que as galinhas poedeiras operam na interpretação da lei. Galinhas ao poder, já!...Pensando no panorama político actual,….ao menos tínhamos ovos à fartazana e não era só a gasolina que aumentava; o colesterol também ia por ali acima. E as galinhas tiveram também o dom de me fazer lembrar a excitação do Primeiro Ministro que, de olhos esbugalhados, cacarejava do seu poleiro, que Portugal iria ser em breve um país em que todos teriam acesso…imaginem….vá lá são capazes!....a emprego?....nã!...a bons serviços de saúde?...nãaã!...a salários mais aceitáveis?....nããã!?.... a navegar na Internet a 100 megabytes em todo o lado! Extraordinário! De entre as interpretações possíveis destas palavras, as mais lúcidas andariam na casa do “pirou de vez” ou “depois do Chavez lhe estragar o Magalhães ficou assim aparvalhado” ou então “não há maneira de ficar perdido de uma vez por todas no lago de Maracaibo durante uma prospecção de petróleo?”.
Estava eu aqui a vaguear pela complexidade dos múltiplos processos interpretativos e lembrei-me do Jorge Palma e daquele lamentável concerto que assisti há pouco tempo. O tipo entrou cambaleante no palco e arrotou uma série de baboseiras antes de começar a amarfanhar as canções. E a sua interpretação não poderia ser mais desconcertante, ou direi antes des…governada? Diziam os jornais, que ele estava em estado ébrio, que é uma maneira delicada de dizer que estava bêbado que nem um cacho. Mas, apesar da revolta que eu senti, por ter pago um bilhete para ver um tipo embriagado no palco, nunca em nenhum momento, o ouvi dizer que nós é que tínhamos interpretado mal o que ele estava a tocar. É que o tipo é bêbado mas ainda preserva alguma decência e capacidade de assumir que ele é que conseguia destruir o que tinha produzido. E verdade seja dita, que as suas canções foram bem criadas. E este tipo bêbado, poderia muito bem explicar aos nossos governantes que, pior do que serem incapazes de produzir trabalhos decentes, é acusarem-nos de os percebermos mal. “Shiu pá! Vai mas é beber um vodka e deixa-nos aqui mandar essa da “interpretação” dúbia, a ver se cola!”
Uma palavra final para as galinhas poedeiras, no sentido de ficarem descansadas porque, da minha parte, os vossos ovos serão sempre comidos no prato depois de terem passado pela frigideira e polvilhados com sal, alho e orégãos. Está visto que não me consigo livrar do mau hálito…

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

O Bang-bang do Senhor Armando


Há pessoas que nos marcam. E há clichés que nunca pensaríamos usar de forma pública, mas que, por transmitirem tão bem o que sentimos, têm forçosamente de ser utilizados sem qualquer inibição e em escrita bem vincada: Há pessoas que nos marcam!...O senhor Armando é uma dessas pessoas. Para a maioria dos leitores o senhor Armando será alguém desconhecido; para mim não, nem para todos os que, o desconhecendo, o conheciam. O Senhor Armando foi levado por uma daquelas doenças fulminantes, que nos levam as coisas boas com a crueldade de não nos prepararem primeiro. Podiam-nos ter avisado antes, de forma calma e sem dramas; afagarem-nos o cabelo e dizerem entre dentes “olha, prepara-te,…que esta pessoa terá de partir daqui a pouco.”, e seguidamente, encher-nos a imaginação de imagens idílicas da morte, como aquela da estrela no céu representando a alma da perda. E porque escrevo esta crónica? Eu tinha jurado nunca escrever sobre alguém a título póstumo. Não valeria a pena; o visado não iria ler. Escrevo, simplesmente porque muita gente não conhecia o senhor Armando e deveria ter conhecido, mesmo desconhecendo. Todos os dias quando ia buscar a minha filha à escola, esbarrava no seu incondicional sorriso e um vigoroso aperto de mão de quem nunca se queixa da vida. E aquele encontro sempre me parecia fugaz; ocasional; a correr, para meter as mãos na miúda e ir embora. Mas sempre que saía dali, levava debaixo da epiderme aquele sorriso e o calor do cumprimento. Era uma espécie de elixir contra a má disposição que muitos dias nos teima em invadir o espírito. Dizia-se que o Senhor Armando não tinha família, que vivia para o colégio. Mas como um homem assim, não pode ter família? Agora percebo. Ele conseguia fazer de todos nós a sua família. E como pode ser grande a família. Nunca fui a um petisco com o senhor Armando, nem viajei pelo Alentejo dentro do seu citroen; nunca ficámos na conversa até de madrugada, nem bebemos sequer um café juntos e é isso o mais admirável; como uma pessoa que nos toca por tão breves momentos, nos pode deixar uma marca tão grande. De facto, não o conhecia, mas passou-me tudo o que pretendia passar: a simpatia e a positividade perante as agruras do dia-a-dia.
Ouvi hoje alguém dizer “que morreu um senhor que era funcionário do colégio”. O senhor chamava-se Armando e era muito mais do que um funcionário; era parte do colégio. Os cachopos adoravam-no porque ele era licenciado em pedagogia da mais elaborada. Jogava à bola com eles, tocava viola para eles, abraçava-se a eles, contava-lhes histórias e ralhava com eles quando era preciso. Era um professor sem canudo mas cheio de canudo para a coisa.
Estou a escrever esta crónica numa espécie de limbo. Estou triste, mas não posso estar triste, porque o senhor Armando ficaria triste se me visse triste. Tenho assim de fingir que escrevo com alegria, neste momento de enorme tristeza. Ouviu senhor Armando! Eu não estou triste!...estou só a matutar aqui com os meus botões sobre a sua arte de nos animar, de nos tornar pessoas melhores! Hoje tive de explicar ao meu miúdo que já não valia a pena sair do carro a correr para conseguir apanhar o senhor com a sua arma imaginária, antes de ser surpreendido por um Bang-bang seu! Para tornar a coisa mais leve, também tive de lhe passar aquela história de que o senhor agora é uma estrela no céu, à qual poderemos acenar sempre que nos sentirmos tristes.
Pelo sim, pelo não, quando acabar de escrever esta crónica, vou ali fora à procura da sua estrela. Vou acenar-lhe, vou dizer-lhe obrigado e depois, vou espetar o dedo indicador na sua direcção e libertar um sonoro Bang-bang, seguido de uma bela gargalhada.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

O fintinhas

Estou aqui a tentar tratar os dados de um inquérito que tive que realizar junto dos meus alunos. Já passou uma hora e ainda não passei da resposta número três. Vagueava entre as inúmeras respostas sobre o que o aluno costuma comer ao pequeno almoço; se gosta mais de grelhados, cozidos ou fritos, se se acha alegre, triste, agressivo ou preguiçoso; se sai com os amigos ou se joga consola e veio-me à memória o “Frasco”. O Frasco? Eu sei , também me lembrei do frasco de cianeto, como a forma mais rápida de resolver os meus problemas de professor afogado em papelada inútil, mas em primeiro lugar lembrei-me do outro Frasco, o jogador do FCP da época de 80, com o seu bigode farfalhudo e as pernas arqueadas, fintando tudo o que havia para fintar. Ninguém tirava a bola ao homem. Para o Frasco nenhuma finta era demais. Quantos mais jogadores ele driblasse, melhor se sentia. A baliza para ele representava um mero adorno perdido na sua arte de trocar as voltas aos adversários. Basicamente o que faltava ao Frasco era objectividade. Fintava um adversário, estava em frente à baliza e tinha de arranjar mais alguém para passar a bola entre as pernas, porque só assim satisfazia o seu ego de fintinhas inveterado. “Remata agora Frasco!” e o Frasco respondia “Epá deixa-me só ir ali fazer mais uma cueca àquele matulão do holandês, que depois eu remato…”. Tenho a sensação, que o grande drama do Frasco seria não o deixarem fintar todos os jogadores e espectadores antes de chutar à baliza. E aqui continuo eu de volta dos inquéritos, na fase dos programas preferidos dos alunos, a passar para a música preferida dos alunos, para os filmes preferidos dos alunos. Depois é só converter isto em percentagem e já está quase,…. Mas eu sou professor ou aspiro a integrar os quadros do Instituto Nacional de Estatística? Atenção que estes dados são fundamentais para a elaboração do PDC que é parecido com o PCT e estão ambos dependentes do PCE, que por sua vez está em estreita ligação com o PA. Para todos os que não são professores, não se preocupem, porque só os professores é que irão usufruir desta fabulosa multiplicidade de inter-relações em código secreto. Afinal todas as siglas começam por um P, representando sempre um plano ou um projecto; até é fácil de completar. Então e as aulas?...Calma aí que ainda falta colocar o PEI e o RI…o RI? Assim já me estás a baralhar as voltas,…então e o P? Se quiseres, podemos sempre pôr um P antes do RI e sempre lembrará uma apitadela de um árbitro…Priiii! Então e as aulas? …Aguenta aí que estamos a ver se conseguimos encontrar mais algum Planozeco que é para a gente encher bem os dossiers da avaliação. Então e as aulas, Porra? Vês? criaste mais uma sigla começada por P, só não sei o que é o ORRA? Perguntavas tu, das aulas? Há-de arranjar-se aqui um espaço entre a elaboração do PDC, do PCT e das Diagnoses, para preparares as tuas aulitas. Eu quero dar aulas! Deixem-me dar aulas! Aulas! Passem-me o Cianeto!...Eu não quero o outro Frasco, o das fintinhas! Estou farto de fintinhas, eu quero é meter a chicha dentro da baliza! Estou farto de driblar PDCs , PCTs e grelhas de avaliação com muita coluna! Mas há sempre um raio de um Frasco para nos acrescentar mais algum parâmetro para colocarmos em mais alguma coluna!? Ou me deixam dar aulas ou me dão o Cianeto! Toda a malta de fora, estará radiante por finalmente os professores irem ser avaliados à séria. A dar aulas?...Não! A fazer fintinhas. De facto, os professores irão ser avaliados nos mesmos moldes de um trabalhador da Soporcel, ou seja, na produção de muita pasta de papel. “Epá mas a fintinha é útil, adorna muito bem a coisa! Dá outra espectacularidade ao jogo!” “Útil é marcar golo, seu, seu,…Frasco de meia tijela!”. Continuo de volta dos inquéritos e cheguei à parte em que os alunos expressam a sua opinião do que representa ser um bom professor. Em termos de percentagem dará que cerca de 98% considera um bom professor como alguém que estabelece uma boa relação pedagógica com os alunos; alguém exigente e explícito. E as fintas? Ninguém perguntou aos miúdos se não gostavam de fintas? Talvez aqueles 2%? Não?...
Daqui a aproximadamente 4 horas, depois de acabar o tratamento dos dados, irei concentrar-me na elaboração do PDC para poder estabelecer as minhas metas enquanto professor de sucesso. E todas as metas terão de ser quantificáveis, tal qual como na mercearia do Senhor Fonseca. Uns quilos de alunos com positivas, somando aos quilos dos dossiers com papelada, obtém-se a subida percentual e paralela da avaliação do professor, isto sem chegar ao Muito Bom ou Excelente que é só para alguns. Então e as aulas? As aulas, essas, se calhar aparecerão como prioridade, quando surgir o PEF: o Plano da Erradicação dos Fintinhas.

domingo, 28 de setembro de 2008

O Pombo


Um pombo cagou-me no ombro. Eu sei que é uma forma um pouco rude para começar uma crónica, mas na verdade estou a ser delicado, atendendo à reacção que tive quando ouvi o som parecido com o lançamento de um ovo espalmado em cima da minha camisola nova. Poderia romancear a coisa, com uma descrição do género “o voo de uma bela pomba sobre os beirados, em perfeita harmonia com a natureza…”, desculpem mas não consigo pensar em harmonia, depois de ver o meu algodão conspurcado com uma cagadela esverdeada. Olhei para cima, para poder insultar olhos nos olhos a ave, mas já tinha dado à asa; um caso claro de defecação e fuga. Depois de limpar os resquícios da digestão do pombo, comecei a desculpabilizá-lo. Achei logo que seria um borracho em plena actividade lúdica. Penso mesmo que, se eu próprio fosse pombo, me divertiria a bombardear as carecas daqueles seres que não me davam nem uma migalhita. No fundo, uma versão columbófila da traquinice humana do toque às campainhas e fuga. E nós também temos uma arma fantástica para atenuar a nossa revolta. Depois de limpar o dejecto, a minha irmã lançou-me o desafio: “Olha que isso pode ser sinal de sorte! Vamos mas é fazer o euromilhões!”. E lá fomos todos contentes com a certeza de que a cagada nos iria presentear com um generoso reforço da conta bancária. As superstições operam maravilhas; conseguem transformar trampa em esperança. Um tipo entorna vinho na mesa e põe-se logo a tocar com dedo molhado atrás da orelha porque dá sorte…?..., até pode ser, mas têm que explicar com jeitinho à pessoa que vai limpar a nódoa da toalha. Se um indivíduo apanhar com uma ferradura na cabeça, além do hematoma, é sinal de muita sorte, porque poderia partir a cabeça(?)…e só fez um galo. Este atenuar da desgraça com a benfeitoria dá algum jeito. Como a história de que muita cera nos ouvidos é sinal de riqueza,…hã?...diga?…não o estou a ouvir! De facto, com tanta barbaridade que a malta vai ouvindo, só com cera a obstruir a audição, se terá a sorte de ficar na ignorância. O que me custa mais a perceber são as superstições do azar. Aquela do gato preto que se atravessa no caminho, é um claro sinal de discriminação pelo tom do pêlo. A curpa é sempre dos preto pá? De facto, já um pobre de um gato preto, não pode procurar gatas com o cio, que está sempre a receber insultos racistas. E o azar que se tem quando se mata uma aranha em casa? No meu caso, o azar que dá matar aranhas em casa, é sempre compensado com o facto de não ter de tropeçar nas suas teias por todo o lado. Olha ainda agora fiquei com mais um bocadinho de azar, aqui agarrado à meia do pé esquerdo. A superstição de que dinheiro em cima da mesa dá azar, só poderá vir de uma mente etérea, que pensa sempre no lado da espiritualidade para explicar a matéria. Imagina que os alimentos nos caem do céu, trazidos por cegonhas do Quénia e os livros da escola dos miúdos são oferecidos pelo filantropo editor. Ter dinheiro em cima da mesa, é bom sinal: é sinal que se tem dinheiro e mesa.
Bom, mas tudo isto começou com a cagadela do pombo no meu ombro. Andei toda a semana a dizer bem do pombo, que me iria permitir ajudar um monte de malta com a massa do euromilhões e, no dia do sorteio,…nem uma cruzinha,…nem uma estrelinha. Raio do pombo! Apetecia-me subir ao beirado e defecar-lhe em cima da penugem nova, que é para ele ver como é bom p’rá tosse. Epá não podes ser assim tão rancoroso com o pombo, coitado do bicho! A minha indignação, nem é tanto com o pombo, é mais com a superstição associada à cagadela do pombo. Eu até já tinha limpo os dejectos e tudo. O mal foi acreditar que a bosta traz sorte. A minha sorte foi perceber que também existem contradições nas superstições. De uma leitura mais apurada das várias crenças populares, surge aquela que me deixa um pouco mais aliviado mas também baralhado: “Criar Pombos dá azar”. Ora aí está, alguém inteligente. Mas, se criar pombos dá azar, como é que uma cagada de pombo dá sorte? Esta superstição anti-columbófila só pode ter sido criada por alguém que como eu, viu a sua camisola nova conspurcada pelo bomba viscosa mandada lá de cima do beirado. Pelo contrário, a superstição pró-laxante, foi decerto criada pelos próprios pombos, como protesto contra o tipo que não dá migalhinhas e que deve ser o mesmo da camisola conspurcada. Estava eu aqui no jogo supersticioso do gato e do rato, quando percebi que ambas as superstições não têm grande relevância. Na verdade o pombo é um excelente animal; até consegue encontrar o caminho de casa quando o abandonam a milhares de quilómetros. Teria sim relevância se alguém se lembrasse de, inspirado nestas duas superstições aparentemente antagónicas, criar uma em que todos acreditássemos: “Se um dos nossos governantes se atravessar à tua frente é sinal de que irás ter azar nos próximos anos”. É que, à semelhança dos pombos nos beirados, não haverá ser que consiga defecar com tanta perfeição na cabeça dos seus cidadãos.

domingo, 21 de setembro de 2008

O estreito de Magalhães


“O Magalhães chegou às escolas” Assim de repente, quando ouvi a notícia, fiquei admirado e um pouco emocionado, afinal não era todos os dias que assistiríamos ao renascer do nosso mais corajoso navegador português. Depois fiquei confuso quando completaram com um “agora até os mais pequenos só têm de clicar nas teclas…”. Mas que raio tem o “clicar nas teclas” a ver com Magalhães, conhecido pela arte no manuseamento do leme das suas Naus? Será que o inventor do computador para crianças se lembrou mesmo de Fernão de Magalhães, ou apenas o teria feito em honra de um amigo, um tal de António Magalhães, dono da mercearia, e grande percursor da troca do lápis atrás da orelha, pelo clicar na máquina registadora? Eu inclino-me mais para esta tese, até porque, se o herói Magalhães desconfiasse que deram o seu nome a um objecto de plástico com botões, fabricado nos Estados Unidos, iria ficar um pouco aborrecido. Mas o computador cria nas crianças desde muito cedo a habilidade de navegar e descobrir um mundo sem limites. Pronto, está explicado. O computador representa para a criança de 6 anos, o fast-food da navegação. O lema será: “Navega com facilidade, trabalha sem dificuldade”. É isso que se pretende, facilitar a vida do petiz. A máquina evita que tenha muito trabalho a escrever ou a procurar informação; basta navegar com o cursor, que a coisa fluirá sem problemas. Parece pois, que a navegação é o denominador comum entre o Magalhães e Magalhães. A grande diferença está na trabalheira que o genuíno (o Fernão) teve para descobrir o raio do Estreito que fazia a ligação entre dois continentes. Agora é ver um monte de Magalhãezinhos a navegarem até à Patagónia chilena, apenas com um clique , troçando das longas semanas que o outro Magalhães passou, a tentar sair daquele labirinto gelado e descobrir uma passagem que ninguém sonhava existir. O feito do nosso verdadeiro navegador, nada tem de instantâneo, revela uma perseverança e astúcia, que não se coadunam com um simples clicar no botão do lado esquerdo do rato. E ali está ele, Fernão Magalhães, em frente do tal Oceano, que haveria de chamar de Pacífico, pronto para se lançar à descoberta…Pssst,…Ó Magalhães!...Magalhãaaaees!...sou eu, o Xavier do 2º ano turma B! …Olha Magalhães, se queres descobrir as Molucas, basta colocares aqui em cima na janela do Google, o nome “Molucas” e elas aparecem num instantinho, com mapas e tudo pá! É que isso de te mandares à maluca dá uma trabalheira p’ra chegares à Moluca! Eh, eh, gostastes do trocadilho intelectual que acabei de fazer pá? Mas como Magalhães não sabia o que era o Google, lá foi ele, atravessar o Pacífico durante três meses,… com comida para duas semanas. O Xavier do 2º ano, que sabe procurar no motor de busca, nem sonha o que será ter de comer o couro das amarras ou os ratos do convés para sobreviver ao desafio da descoberta de um novo oceano.; Para a Beatriz do 4º ano é simples navegar, sem ferir as mãos a caçar a vela ou sentir os lábios gretados pela desidratação; para o Jaime do 3º ano é óbvio identificar a Micronésia sem lhe conhecer o cheiro. Para Fernão de Magalhães nada era fácil ou óbvio. Para se ser empreendedor tinha de se suar estopinhas. Magalhães descobriu que a terra era redonda porque levantou a bunda do sofá e foi à luta. Pssst, pssst,….ó Magalhães, sou eu outra vez, o Xavier do 2º ano. Essa coisa da luta é careta; agora é mais wrestling e moches pá! E para mais, eu descobri que a terra era redonda, sem ter de deixar a minha cadeirinha ergonómica a amparar-me o nadegueiro. Bastou ir ao globo tridimensional do Google Earth, e não custou nadinha.
Continuo sem conseguir explicar tão absurda colagem do nome do herói Magalhães a um negócio de bytes-milhões, encoberto por hipotéticos benefícios educacionais. Não quero sequer imaginar que tal associação se possa dever à forma como o navegador morreu na Indonésia, às mãos do cacique Lapu-Lapu. Acredita-se que Fernão de Magalhães cometeu um suicídio; foi ao encontro de uma morte voluntária. O meu temor é que o computador Magalhães, represente também ele o Harakiri do próprio ensino; a facada final na memória que temos de um Homem com as proeminências no sítio certo, dizendo à sua tripulação que aquela era uma aventura pela qual valeria a pena arriscar a vida. Pssst,….pssst, ouve lá ó cronista de meia tijela, aqui o Xavier do 2º ano, não percebeu o que é que tem o Harakiri a ver com o tal do Magalhães??? Diz aqui na wikkipédia que isso era uma coisa dos Samurais…?...onde é que o Magalhães é p’rá qui chamado pá?

sábado, 23 de agosto de 2008

Campismo em quadrupedia


Imbuído de uma enorme nostalgia, dos meus tempos de campista adolescente, da tenda canadiada e do fogão camping gás onde fazia umas arrozadas de salsichas, pensei como seria agradável, partilhar estas minhas remotas vivências campistas com os meus filhotes. Chegámos ao parque de campismo e disseram-nos que apenas existia um espaço para o nosso iglo, ali entre duas tendas familiares. Á medida que a estrutura da nossa tenda de 4 lugares ganha forma, percebemos que o fabricante era definitivamente chinês, uma vez que aquele espaço daria quanto muito para albergar 4 chinezinhos ou uma família de porquinhos da índia. No momento de espetar as espias naquele solo empedernido, falta-nos o que falta sempre ao aspirante de campista: o martelo. Vamos à procura de pedras para bater na espia e encontramos sempre uma que magoa a mão e é pouco eficaz na hora de espetar o ferro no betão. Quando entortamos a quarta espia e partimos a terceira pedra, olhamos para o lado e deparamo-nos com o personagem que dá cabo do nosso ego de campista esporádico. Ali está ele, o campista residente, com um olhar de desdém pelo nosso empenhado esforço no sentido de conseguir cravar as espias. E não há nada mais humilhante do que, depois de nos ver ali algum tempo a de gladiar entre a espia, o calhau e o cordel, nos dizer se precisamos de uma ajuda abalizada. Declinamos de forma educada e continuamos, com alguma dignidade, a nossa luta para deixar a coisa apresentável. O campista residente retira-se para o seu luxuoso abrigo: Uma tenda de fazer inveja ao Sultão do Dubai; com todo o conforto eléctrico de qualquer casa, parabólica e micro-ondas incluídos, o mosaico incrustado no chão, cadeiras de encosto em frente da televisão e sebes bem regadas à volta do espaço.
Nós, tínhamos aquela carapaça de cágado, onde teriam de caber 4 corpos de cágados com toda a roupa e farnel. E é na posição de cágado que temos de entrar nos aposentos e com ela destruir toda a nostalgia da adolescência. Aí percebemos esse lado pernicioso do campismo que nos obriga a um exercício de alternância constante entre o bipedismo e a quadrupedia. Vamos dar um mergulho à praia e…”Onde estão os fatos de banho dos miúdos?”pergunto, “Estão no fundo da tenda ali debaixo das calças e por cima dos casacos!”, entro a rastejar e procuro no meio do monte de roupa onde poderão estar. O monte de roupa cai em cima dos sacos de cama e saio a rastejar com os fatos de banho na boca. “E o protector solar?”. Rastejo novamente e novamente chafurdo naquele amontoado de peças. Saio triunfante, com o troféu 40 UV seguro na mão.
Depois do mergulho na praia, voltamos à carapaça que, depois de ficar todo o dia ali ao sol, se transforma numa espécie de sauna em miniatura. Entramos no forno em quadrupedia para encontrar o champô e as toalhas para o duche. Chegamos ao duche e encontramos uma bicha que vai até aos urinóis. Esperamos que chegue a nossa vez e finalmente lá entramos para o retemperador duche…frio??? Melhor assim que se poupa água. Esfrega rápido o miúdo; esfrega rápido o pai, embrulha na toalha e vá de correr com cabelos ao vento até à tenda em busca do quentinho. Entramos os dois e procuramos a roupa. O monte já passou a colina; chegam as duas cágadas e instala-se um pandemónio ao nível de uma luta na lama numa discoteca em Albufeira. Conseguirmo-nos vestir ali no interior da minúscula carapaça sem dar uma cotovelada ou um pontapé no nariz de alguém, revela-se uma árdua tarefa. Rastejamos a suar para o exterior e cheiramos a arte dos nossos vizinhos residentes. Qualquer campista que se preze tem de ter um grelhador para assar os seus petiscos; Da direita vinha o fumo da bela da sardinha, da esquerda o odor do picante frango na brasa. Estávamos na confluência de cheiros, a comer a nossa lata de atum com batatas pála-pála, sentados numa manta e envoltos em fumo do petisco dos outros. Os outros, sentam-se à mesa e exibem entre os dedos e os dentes, as iguarias das quais nós só sentimos o cheiro.
Chegou à hora da soneca. Conseguimos encaixar os quatro muito a custo e temos de fechar as aberturas por causa das melgas. O termo-acumulador funcionou na perfeição durante o dia e agora, estava ali, em processo de compostagem, com o nariz encostado ao pano lateral da tenda e o cabelo a roçar no que resta da colina de roupa. “Que se lixem as melgas!”. Abri os orifícios e pus a cabeça de fora. Agora sim, está mais fresco. Vou finalmente dormir,…,péra lá que o vizinho está a explicar à mulher os planos para amanhã; o tipo da caravana em frente está a falar numa língua esquisita que deve ser sueco; e oiço também lá longe a rapaziada que chegou agora da nigth. No campismo é assim; o som propaga-se mais fácil, tornando difícil o descanso pleno. É agora!...depois de uma hora a ouvir toda a animação circundante, estou quase a aterrar…isso, num sono profundo,….Dlim,dlão,…dlim,dlão(?). As vaquinhas que pastam junto da vedação onde encostei a tenda, têm badalos, que badalaram a noite toda, badalando-me também o meu estado de vigília,… dlim,dlão.
Com olheiras e picadelas de melgas arrumei as tralhas, e pisguei-me dali na manhã seguinte, pensando como a falta de material e disponibilidade adequados poderão ensombrar as nossas doces recordações. No entanto, a minha memória, está a ver se insiste na partida do campismo; de me obrigar a comprar uma tenda maior, uma mesa com banquinhos e um grelhador, mas tenho quase a certeza de que um dia, ainda me vou lembrar de um tal hotel de 5 estrelas onde passei dias muito felizes na adolescência.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Torcer o Nariz


Sentei-me no sofá a ver os Jogos Olímpicos. O meu filho mais novo sentou-se ao meu lado e lançou a pergunta da ordem: “Oh pai, estás a torcer por quem?”. Eu respondi-lhe: “Pela portuguesa.”
“E achas que ela vai ganhar?”
“Parece-me bem que não, mas está a esforçar-se…”
Depois de um breve silêncio, volta à carga
“Mas porque é que ela vai em último?”
Tinha chegado a altura da explicação pedagógica, com ênfase na relativização dos resultados mediante o amadorismo dos nossos atletas; no seu esforço, na sua superação,..
“E as medalhas?...só os outros é que ganham medalhas?”, não desistia o cachopo
E eu pensei… “É lá!...querem ver que tenho aqui um repórter desportivo em potência?”. De facto o tipo reproduzia de forma fiel as palavras da maioria dos jornalistas que cobrem o evento…”então e as medalhas?”. Já acho alguma piada, à cara que os tipos fazem quando, suspendendo a respiração, perguntam “È agora?”….para depois expirar com um fatídico desconsolo “…ainda não foi desta”. Também me dá um certo gozo, quando têm de soletrar amargurados, a trigésima sexta posição que o atleta português ocupou no final. Eu sei que é um pouco cruel, mas os tipos têm de aprender a não ser gulosos. Para se exigir colocar os dentes no petisco, tem de se dar o seu contributo com alguns ingredientes. De entre os campeonatos de futebol da 1º, 2º 3º e distritais, as notícias do judo, do atletismo, da vela, do badminton ao longo do ano, continuam a aparecer, apenas quando um desses atletas semi-amadores consegue a improbabilidade de ganhar uma medalha contra um qualquer Golias profissional. Bom, mas voltemos ao que interessa. Cabia-me a tarefa de explicar ao miúdo que dos 40 em competição só os três melhores ganham medalhas, e que muitos daqueles 37 que não sobem ao pódio, são também os melhores dos seus países.
“Queres dizer que esta atleta que ficou em último é a melhor que temos em Portugal?”
“Sim.”
“Mas porquê?”
Esta mania do “porquê” deixa-me irritado; a coisa poderia ter ficado muito bem com o “sim” e não se falava mais nisso. Agora com a curiosidade exagerada do petiz, ou me pirava dali com uma desculpa estapafúrdia ou teria de explicar ao miúdo que somos um país pequenino, que tem outras prioridades para investir e, outras balelas, que não lhe interessam para nada.
Sentei-me no sofá a ver os Jogos Olímpicos. O meu filho sentou-se ao meu lado:
“Oh pai, há portugueses em prova?”
“Não.”
Como já não tinha o entrave patriótico a atrapalhar, perguntou esperançoso:
“Estás a torcer por quem?”
“Por aquele tipo da Nova Zelândia”
“Então eu também vou torcer por ele.”
Deu-se a partida para a corrida.
“Oh, pai não é ele que está a ficar para trás?”
“Penso que sim.”…
…“Achas que posso torcer antes por aquele americano que vai à frente?”

sábado, 19 de julho de 2008

Comichões

Não sei quem disse que um homem só materializa a sua existência depois de plantar uma árvore, fazer um filho e escrever um livro. Depois de ter plantado algumas árvores, de ter contribuido para a produção de duas magníficas crianças, decidi compilar algumas das minhas crónicas e editar um livro de devaneios. Curiosamente, depois de me olhar várias vezes ao espelho, tentar imitar a voz de um másculo tenor ou de ter espreitado para o interior das calças, não notei grandes alterações existenciais, que corroborassem a teoria de que agora é que sou um homem a valer. Depois de pensar muito, sem grandes respostas, ...mas querem ver que é por causa do trabalho para os conseguir? Nããã... Pensando no trabalho, é curioso como esse três vértices da existência humana o têm incluido na sua génese. O trabalho para se fazer um filho é pouco (e até dá algum gozo), mas o trabalho para o criar é muito; no caso da árvore, existe um certo equilíbrio de esforço: Dá trabalho a plantar e dá trabalho depois de plantar (com as regas e as podas). No caso do livro, a relação apresenta-se algo inversa à da procriação, dando trabalho antes de editar e nenhum trabalho depois da coisa estar feita. Bom mas sem chegar a qualquer tipo de conclusão, a não ser que a existência dependerá de obras bastante mais magnânimes do que estas, aqui deixo a capa do meu livro e o seu prefácio....

A comichão é tramada. Mas aquela era particularmente tramada. Numa comichão normal, apenas tramada, existe um misto de incómodo e de prazer; chateia quando aparece, mas depois de uma boa coçadela, transforma-se em alívio, quase sempre acompanhado por um sonoro e descomprimido ahhhhh. A comichão que me assolava naqueles dias não tinha nada de normal. Não era despoletada pela mordidela de uma pulga, a picadela de um mosquito ou o contacto com uma erva daninha. Não atingia uma área específica do corpo, nem mostrava sinais de abrandamento perante as minhas vigorosas coçadelas. Pus-me a pensar, pensei mais um pouco e cheguei à conclusão que a comichão aparecia quando pensava demais. Estes surtos de urticária neural surgiam sempre que a minha mente decidia vaguear pelos meandros mais intrincados das nossas vivências sociais. Depois de muito penar, lá descobri o antídoto para essa minha irritadiça comichão: a escrita. Nunca tinha escrito nada de relevante até ao dia da primeira comichão mais que tramada. Depois desse dia continuei a não escrever nada de relevante, mas aquilo aliviava o prurido. Era uma espécie de terapia anti-coceira. Foi então que, em jeito de catarse, me pus a escrever umas coisas, sobre coisas que me causavam comichão. E é a magnitude da comichão que decide o tipo de escrita. Se o agente alergénio for de grande porte, a puxar para a sarna, a escrita descamba numa expressão rude de sentimentos do tipo antibiótico de largo espectro. No caso da ténue comichão, do tipo cóceguinha atrás da orelha, basta uma suave escrita “aspirina” para que os sintomas rapidamente se dissipem.
Quando pensei que os meus rudimentares escritos ficassem perdidos algures entre a escrivaninha e os gatafunhos infantis dos meus filhos, alguém leu um desses desabafos e pediu-me para os editar no Jornal Torrejano. E foi assim que dei em cronista. Podia ter dado em coisas piores . Eu acho que depois da minha segunda crónica, já o João Lopes tinha ficado arrependido de me ter endereçado o convite, mas nunca teve coragem de me dizer: “Desculpa lá, mas os teus gatafunhos ficam bem é no meio dos gatafunhos dos teus filhos!”. Então, essa pedra no sapato do JT foi-se mantendo por nove longos anos, durante os quais fui descobrindo o efeito secundário em alguns dos escassos leitores das minhas crónicas: uma terrível e prolongada comichão(?). É verdade, eu deixava de ter coceira porque escrevia, e o leitor passava a coçar-se porque lia. Até que cheguei a este ponto de loucura extrema ao decidir compilar alguns desses devaneios escritos, neste livro de gatafunhos terapêuticos para a comichão.
Ainda pensei em convidar um escritor a sério para fazer o prefácio do meu livro, mas não tive coragem. Por muito menos, já vi grandes personalidades arruinarem o seu aparente inabalável prestígio. Assim, coube-me a mim, apresentar esta obra literária de média…vá… de pouca envergadura, desta maneira algo comichosa.
A forma como as crónicas serão apresentadas, não obedece a qualquer tipo de organização. É que eu nunca fui lá muito arrumadinho, para desgosto dos que comigo convivem. No meio do caos, preocupei-me apenas em colocar para abrir, uma das piores e mais deprimentes crónicas, no sentido de garantir que, à medida que se avança pelas restantes páginas, a qualidade será sempre melhor.
Como última nota, apenas a recomendação para, no caso do leitor sentir em algum momento uma irritadiça comichão, o favor de fechar o livro e esperar que passe sem se coçar muito.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

A ditadura do flash



Fui ao casamento de um amigo. Aliás, só um amigo consegue fazer com que suporte, de ânimo menos pesado, um casamento. Pensando bem, um amigo que se preze, não se casa, só para não ter que fazer os amigos gramar o frete da boda. Bom, mas lá fui, antecipando aquele longo dia sentado à mesa num obsceno exercício de gula, entre 4 pratos e múltiplas batidelas com os talheres nos copos à espera do beijo público dos noivos. Quando quis cumprimentar os noivos, dei de caras com um dos tipos de maior poder na sociedade portuguesa. Não, não falo do Américo Amorim ou do professor Marcelo, mas do fotógrafo do casamento. Barrou-me o caminho com as suas costas, dizendo: “Agora não, que tenho de fazer uma fotografia com o altar ali de fundo!” É, de facto, ele quem manda naquilo tudo; É ele que faz esperar o noivo no altar; é ele que diz ao padre onde se ajoelham os noivos; é ele que decide quando os convidados podem começar a trincar as iguarias. Mas vamos por partes. Primeiro a parte das fotografias da noiva em cima da cama, com o vestido sobre a colcha de renda. A noiva; a noiva com os pais; a noiva com os padrinhos; a noiva com o afilhado; a noiva com a irmã mais velha; a noiva agarrada ao urso de peluche. A noiva trinca um rissol, dá um gole no champanhe… “Isso! de perfil,...deixe os lábios no rebordo do copo!...que foto fantástica com a luz a bater no espumante!” reforça o artista. A noiva apressa-se a sair de casa dos pais. “Um momento! Alguém a segurar no vestido!...assim,… estica, isso mesmo,…agora estica mais para a direita,…isso, mantém,…agora o sorriso… o senhor agora não passa! ninguém passa no portão!…Isso! tudo quieto!.. pronto já está!” . Ao sinal do líder de máquina a tiracolo, toda a malta já pode correr para os carros. A noiva entra no carro. “Não entra ainda! …espera!...quem segura a porta?...tem de ser o pai!...onde está o pai?...agora entra devagar para eu conseguir apanhar todo o momento!”…o momento(?). Sim! O da entrada no veículo antes do enlace. O noivo já espera há meia hora, mas é da praxe a noiva não ser pontual. Porquê? Por causa do fotógrafo. Chega à igreja, o (outro) momento: a saída do carro. “O pai!...atenção ao vestido bem aberto,…bom,… a tapar bem a escadaria!...o pai do lado direito da noiva, isso!...mas com um sorriso senhor António,…afinal é a sua filha que se vai casar, homem!...”. O noivo olha para ela com ar de quem está farto de esperar e ela sorri: “sabes, …o fotógrafo”. O casamento decorre, sempre com a câmara entre o padre e os noivos num frenético alvoroço. A entrega da aliança é feita devagar para que não falte pitada à reportagem fotográfica e videográfica. A cerimónia decorre mais rápido do que previsto; o padre despachou-se; vamos ao que interessa!... ao petisco. Mas, e as fotografias dos noivos em frente ao altar? com os pais, padrinhos, amigos,… Toda a gente sai para a cena do arroz na cabeça e espera cá fora ao sol. Continua a espera…então os noivos? saem ou não saem? …está ali o fotógrafo a disparar mais umas poses “Isso, agora com um beijo na testa!...ali mais junto da sacristia!”. Parece que já vêm os noivos, é agora o arroz, vai ser agora que a malta vai mandar!…Atenção! “Pára!”...grita o homem da máquina… “Só lança o arroz quando os noivos passarem no segundo degrau!”. Então a malta já não pode mandar o arroz quando quer? O arremesso para ser lúdico, tem de ser espontâneo e com força, para se embrenhar no penteado da noiva; não pode obedecer a restrições. “Mas é por causa do efeito estético; a imagem fica mais conseguida”.
No restaurante dá-se a expressão máxima do poder do fotógrafo. Encosta os noivos a uma sebe, bem iluminada pelo sol, e vai disparando ininterruptamente, indiferente ao suor das vítimas e à fome dos convidados das vítimas. Ele domina claramente a situação. 200 pessoas à espera para trincar a vitela assada e os noivos ali com um sorriso nos lábios esperando por mais uns tiros do esquadrão de fuzilamento. Está tudo ali, com vontade de mandar um croquete à cabeça do ditador, mas quando ele se vira, ouve-se alguém: “Eu também quero uma com os noivos!”. Ao fim de duas horas à soleira com o permanente sorriso nos lábios, os noivos sobreviveram apenas com ténues sinais de desidratação e rigidez facial. Os convidados, esses, já tinham enfardado todos os croquetes e rissóis das entradas e nem sequer pensavam já na vitela e no bacalhau com natas. Quando o fotógrafo decide libertar os moribundos noivos à beira da insolação, já só nos apetece o cafezinho.
Ainda não foi desta que consegui chegar à sobremesa. Depois de tanto frito no bucho, fiquei-me pelo primeiro prato. Mas fui ao casamento do meu amigo e aguentei até onde pude. Ele vai perdoar a minha retirada mais cedo do combate; compreenderá as minhas limitações. Agora, no repouso do lar, temo que a qualquer momento surja a pergunta que não terei arcaboiço para responder afirmativamente : “Olha, não queres ver o vídeo do nosso casamento?”.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Se até o chimpanzé percebe...


O meu carro cheira a leite podre. Quem conhece o meu natural desleixo já deve estar a pensar que me voltei a esquecer das peúgas suadas debaixo do banco ou da casca de banana no porta-luvas. Mas não. O carro tresanda mesmo a leite a puxar assim para o azedo. E é com este odor pouco agradável como fundo, que aproveito para lançar daqui a minha mais profunda homenagem a todos os ecoresistentes deste país, que andam com o carro a cheirar a leite podre e a sacudir varejas do tabliê à procura de ecopontos. Tudo começou com um chimpanzé a explicar como fazer a separação dos lixos. E a campanha publicitária dizia qualquer coisa do género: “Se até o chimpanzé percebe como se faz…”. O anúncio é bem feito; desperta a hominização que existe em cada um de nós. E esse nosso orgulho humano não poderia ficar indiferente ao ser suplantado por um símio que come bananas e amendoins. A confusão entre o balde amarelo, o verde e o azul já não existe, até porque o espectro do bicho peludo a dizer que “até ele percebe”, não me deixa espaço para confessar a minha distracção, de forma totalmente assumida. O que o chimpanzé não percebe é a trabalheira que dá a uma pessoa, despejar o lixo que conseguiu separar em casa. Sim, esta coisa de colocar a lata de Coca-cola na mão do bicho e pô-lo a deitar no balde azul (?)… ou será o amarelo (?), que está ali a dois passos, eu acho que com algum trabalho, até punha os meus cães a fazer. Eu gostaria era de ver o chimpanzé, com o saco cheio de pacotes de leite amassados às costas, conseguir descobrir um ecoponto e depois, ter o engenho para despejar os resíduos lá dentro de forma célere. A campanha começou bem com o chimpanzé a explicar como se faz, mas qualquer esforço de mudança de maus hábitos enraizados, deverá assentar na filosofia da facilitação. Metem-se os sacos na bagageira do carro e vamos à procura dos ecopontos. Quando por fim, lá os encontramos, deparamo-nos logo com esse fabuloso factor facilitador: A abertura. A história do elefante passar pelo buraco da agulha, ensombra o nosso esforço, sempre que queremos empurrar os nossos volumosos pacotes de leite compactados, por aquele orifício…zinho. Aliás o nome “Plasticão” rima na perfeição com o asneiredo que sai da nossa boca, quando estamos a fazer força no fundo do saco para aquilo entrar lá dentro e. verificarmos por fim, que a coisa não entra. Ao retirar alguns pacotes para estreitar o volume, aquele pedaço de leite coalhado espirra em direcção da nossa roupa lavada. Fazemos mais umas rimas e, ao fim de algum tempo, conseguimos empurrar, com a ajuda de todo o nosso peso, os plásticos lá para dentro. Depois das embalagens, vamos buscar o papel para despejar no “papelão”. A luta “orifício pequeno/ volume grande” continua animada. Temos um molho de papéis na mão, vem uma rabanada de vento e vemos os estratos bancários voar na direcção do quintal do lado. Sai outra rima brejeira em honra ao orifício do papelão e vamos apanhar o saldo bancário ao espinho de uma roseira. Por fim, conseguimos apanhar todos os papéis e metê-los no orifício. Coragem, que já só falta o vidro. O Vidrão tem o buraco mais pequeno de todos. Assim à primeira vista parece passar à vontade uma mini de cada vez. É curioso porque o nome “vidrão” (assim como os seus primos anteriores) indicia uma coisa em grande, com uma abertura em grande, para se poder despachar coisas em grande e depois, selecciona criteriosamente todos os invólucros, qual posto fronteiriço entre Israel e a Palestina. Estamos nós a espetar garrafa a garrafa lá para dentro e, ao nosso lado, bem ao nosso lado, está um caixote de lixo vulgar, com uma abertura enorme e vulgar, a chamar por nós. É um teste à nossa consciência; o Lúcifer apontando o caminho da perdição. Não basta dificultar a tarefa, como nos espetam com a opção mais apetecível a acenar bem ali à mão. É como querem impingir-nos um prato de comida macrobiótica, com o odor da feijoada ali encostado ao nosso nariz.
O meu carro continua a cheirar a leite podre. Esqueci-me de despejar à ida para o trabalho e não tive tempo para despejar à vinda. Quase a chegar a casa, tenho outro caixote de lixo grande e lustroso a chamar pelo meu leite coalhado: Aqui! Podes deixar esse cheiro a azedo aqui! É só abrires a tampa e já está! Do que estás à espera? Não sei bem…talvez iludido à espera do dia em que se lembrem de me facilitar a vida. Parece que até o chimpanzé percebe.

domingo, 15 de junho de 2008

A Metamorfose


Fui buscar o meu filho ao infantário. “Temos aqui uma caixinha para levar para casa!...”. Esta frase antecipa um dos momentos mais aguardados por qualquer progenitor: o dia em que o convidam a acolher em sua casa, os simpáticos bichos-da-seda, esses mandrakianos seres que se conseguem transformar em borboletas. Pretende-se que as crianças acompanhem de forma activa esse processo de metamorfose, mas cedo percebemos que vai sobrar para nós. Começa logo, porque a doce criatura é esquisita como raio e só come folhinhas de amoreira(?)… mas,… e aonde é que existem essas amoreiras?, perguntamos convencidos da sua enorme abundância em todos os jardins da cidade. “Amoreiras, ora deixa cá ver,…, existe uma ali p’rós lados do Vale e outra junto àquela rotunda …”. Começamos a fazer contas de cabeça e multiplicamos as centenas de pais, que levaram para casa dezenas de bichos-da-seda, depois dividimos pelas 4 amoreiras que existem na cidade, o que dá assim a grosso modo uma média de muito bicho por cada árvore. Mas não podem ser folhas de alface? De oliveira? De uma qualquer erva daninha? Não!...o bichinho parece que não vai muito à bola com essas folhas; causam-lhe distúrbios no frágil metabolismo. Andamos nós a ensinar às crianças as vantagens de uma alimentação variada, a não torcerem o nariz quando lhes colocamos uns brócolos no prato, a sorrirem perante uma sopa de espinafres e depois pomo-las a satisfazer os caprichos de uma larva esquisita. Mas vale o esforço; afinal o bicho transforma-se em borboleta. Lá me meti no carro e fui à procura de tão rara espécie vegetal. Depois de algumas voltas, encontrei a bela da Amoreira, ou o que restava dela. Parece que outros pais, já se tinham antecipado e deixaram-me uma Amoreira depenada do pescoço para baixo. As folhas que sobreviviam, encontravam-se a uma altura alcançável por um basquetebolista americano ou pelo Tarzan nos seus melhores dias. Assumi desde logo que não tinha molas nas pernas, nem tão pouco a Jane à minha espera no cocuruto da árvore, restando-me a versão “pés em cima do tejadilho do carro” como forma de alcançar tão difícil verdura. Estava eu a resmungar em pontas dos pés em cima da chaparia do veículo, quando passou outro veículo que abrandou a sua marcha. Com duas folhitas numa mão e o ramo seguro pela outra, olhei para baixo e deparei-me com o olhar reprovador do condutor. Sentia-se no ar um “Não tens vergonha? a roubar folhas de uma árvore tão rara…”. Não estou para isto! Um tipo tem de fazer quilómetros para encontrar umas folhas especiais para um estafermo multipatas que não crava os dentes em qualquer repolho; depois tem de se pôr aos saltos para ver se alcança o raio da verdura; e ainda se sujeita ao desdém do senhor do automóvel. Raios partam a minhoca. Mas se ela até se transforma em borboleta…Pronto, está bem. Lá meti umas quantas folhas no saco e levei-as para os meus filhos satisfazerem o apetite daqueles selectos seres. Quando as folhas caíram na caixa, os doces bichinhos da seda que se transformam em delicadas borboletinhas, mandaram-se a elas como um boçal brutamontes da idade média morderia um naco de pernil. Não basta as tipas só comerem folhas de uma árvore em vias de extinção, como não demonstram qualquer tipo de preocupação na preservação dos parcos recursos. Trituram a amoreira quais térmitas trucidando escrivaninhas. Mas deixa lá; até se transformam em borboletas. Depois de assistir ao fugaz e javardo banquete das larvas, lá nos retirámos com a certeza de que teríamos de voltar a depenar a pobre da amoreira a breve trecho. No dia seguinte, os miúdos curiosos espreitaram para dentro da caixa e nada. Nem sinal dos bichos. Só restavam vestígios de folhas trucidadas e muitas caganetas de larva. Será que os bichos-da-seda se transformaram em trampa? Uma metamorfose difícil de explicar às crianças. A caixa tinha ficado aberta. Não pensámos que as lagartas fossem pelas suas próprias patas à procura da amoreira. Até teria um cunho pedagógico, no sentido de perceberem o que as custa alimentar. Foi então que pousou um passarinho junto da caixa vazia. Parecia olhar lá para dentro em busca de algo. Percebemos o destino dos bichos-da-seda. Lamentavelmente existiu outro ser que ignorou as invulgares capacidades do bicho se transformar em borboleta e decidiu transformá-lo em alimento para as crias. Tive de explicar aos meus filhos que, na natureza, também se dão este tipo de cruéis metamorfoses. A lagarta, ao invés de esvoaçar em forma de borboleta, esvoaçaram com ela para dentro do ninho de um insensível pardal.
Parece que depois de ter servido de alimento, a larva decidiu vingar-se e operou uma metamorfose no pássaro que a trincou. A partir de então, foi ver o pardal desesperado esvoaçando por tudo quanto era lado, em busca da folhinha de uma árvore difícil de encontrar.

terça-feira, 27 de maio de 2008

O barril de crude


Fui assaltado. E o azar foi de tal maneira grande, que esta semana já fui assaltado 5 vezes(?). O curioso é que em todas as vezes que fui roubado, parece que já tinha a sensação de que me iriam meter a mão no bolso; uma espécie de premonição. Então se sabias que te iam roubar, porque razão te foste meter na boca do lobo?...porque o malandro do meu carro não anda sem gasolina!...E é assim que eu me sinto sempre que levanto o manípulo do gasóleo: um pobre tipo a ser roubado à descarada. Estava eu a recompor-me desta sequência de roubo por esticão, quando ouvi a notícia do investimento dos postos de gasolina em sistemas mais eficazes de segurança contra ladrões(?). E eu achei fabuloso. Melhor do que isto, só a revelação do gangue do narcotráfico da Cova da Moura em pretender apetrechar-se com um sistema revolucionário anti-roubo da sua mercadoria. Os tipos que me roubam todos os dias vão instalar um sistema de protecção contra… roubos.
Parece que andam por aí uns indivíduos encapuzados de arma em punho a assaltar gasolineiras. É lamentável, ainda para mais usando a violência. Esses imbecis não aprendem nada com quem realmente sabe do assunto. Não é preciso carapuço, nem tão pouco uma arma apontada à testa. Basta clicar na tecla e passar a coisa de 1,30 para 1,33 euros; e repetir essa operação durante vários dias seguidos. Alguma malta nem percebe; mas como é muita malta, os cofres das gasolineiras percebem na perfeição. Se o assaltado começar a dar por ela, fala-se da escalada do preço do barril de crude, treta que dá para um tipo se resignar. Mas estes assaltantes com nível, para além do poder de persuasão, têm também a seu favor a arma da persistência. O vulgar gatuno entra de rompante dentro da loja, empunhando uma shot gun e diz para esvaziarem rapidamente a caixa, pondo-se em fuga, caso oiça as sirenes do alarme. O gatuno do gasóleo, ri-se quando lhe gritam ao ouvido “Seu ladrão! eu,eu,eu, nem sei o que te faça!....”. Depois do ladrão o chacotear com uma grande gargalhada, responde-lhe com um lacónico: “P’ra começar o que tu podes fazer é dar mais 20 cêntimos por cada litro. Depois, se refilas muito, amanhã pagas mais 50 cêntimos!...queres dizer mais qualquer coisa?...queres ir para casa a pé?”. E para um cidadão urbano, o “ir para casa a pé” é quase tão mau como “levar uma coronhada no toutiço” . São essas as alternativas oferecidas pelos assaltantes. É com alguma repulsa, que eu próprio, apesar de tentar contrariar essa tendência, me sinto quase à beira de esboçar um ténue sinal de complacência para com os tipos que roubam as gasolineiras. Mas não! Não posso compactuar com a ideia do “ladrão que rouba ladrão…” a assaltar a bomba e embrenhar-se na floresta de Sherwood para distribuir o fruto do roubo com os seus amigos pobres. Nenhum roubo justificará outro roubo, …, desculpem lá mas lá estou eu outra vez a cair na tentação de pensar no Robin Hood como herói da minha juventude.
Parece que algumas gasolineiras, vão passar a uma nova estratégia, baseada no assalto sem subterfúgios. Como já perceberam que podem assaltar à vontade com os pategos, vão mais longe e pretendem prolongar o seu gozo, colocando nos seus postos de abastecimento enormes outdoors com a inscrição “Nós roubamos como ninguém”. O cliente irá abastecer, sabendo que está a ser roubado, sem correr o risco de lhe dizerem que a culpa é do barril de crude. A opinião favorável dos pategos é unânime: “Estes gajos roubam, mas são sinceros! Um tipo assim já sabe as linhas com que se cose”. Já viram algum ladrão dizer: “Coloque aqui as notas neste saco, para ajuda das vítimas do tornado do Mississipi !”? quanto muito um “Enche já essa mer…, senão levas um balázio na fronha!”…é mais sério, não está a enganar o funcionário vendendo-lhe a ideia de que não é um cavalgadura.
Acompanhando essa estratégia do roubo à descarada, as gasolineiras vão mudar a imagem dos seus postos. Os bonés dos funcionários vão ser substituídos por máscaras encapuçadas e, nas bombas, estarão inscrições sugestivas do género: “Mão ao ar… e a outra na mangueira”; “A bolsa ou a penantes”; “Abasteça já, porque amanhã vai ser pior”.
Mas não me sai da cabeça o sistema de segurança anti-roubo que os tipos que nos roubam todos os dias vão instalar. Nós é que somos roubados, caramba. Temos de criar o nosso próprio sistema anti-roubo. Um sensor aplicado no veículo que, quando o sinal da reserva acende, se oiça uma voz: “Atenção! É hora de regressar a casa o mais rápido que conseguir!”. No caso do carro não conseguir chegar a casa e se comece a engasgar com falta de combustível, outra voz se fará ouvir: “Atenção! É hora de regressar a casa a pé, o mais rápido que conseguir!”…é que poderá sempre existir uma bomba de combustível pelo caminho, que o faça cair em tentação...de ser roubado sem remissão.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

O Depósito do nosso contentamento



Comemorei o dia 25 de Abril a meter gasolina em Espanha. Também eu pensei que não seria muito patriótico, num dia tão representativo para nós portugueses, estar ali a encher os bolsos dos espanhóis. De mangueira na mão e a ver o líquido castelhano escorrer para o gargalo do depósito do meu carro, senti que deveria estar, ao invés, a escutar uma melodia do Zeca Afonso com um cravo na lapela e exaltar gritos de liberdade. E a agravante de tudo isto é que não meti gasolina de forma circunstancial por estar a passear em Espanha. Fui propositadamente a Espanha para encher o depósito num acto premeditado e sem escrúpulos. Mas que terra de Espanha visitaste?...Nenhuma! Passei a fronteira, abasteci e vim-me embora todo contente. E isso ainda é mais grave. Depois de atraiçoar a pátria eu ainda vinha contente. Tentava purgar a minha culpa “Bem vistas as coisas, com a gasolina 30 cêntimos mais barata, já me dá para dar umas voltitas ali pelo Alentejo à borla…”, mas a culpa continuava a perseguir-me. Enquanto pressionava no manípulo da mangueira com algum constrangimento, aproveitava para olhar para trás. Via uma fila de carros, todos portugueses, à espera, para também eles encherem os seus depósitos; chegavam cada vez mais e mais. Atenuavam um pouco o meu fardo. Já não me sentia tão só. E depois comecei a vê-los entrar na estação de serviço a abastecer que nem uns alarves de tudo o que os seus braços conseguiam abraçar. “Eu ao menos só encho o meu depósito. Agora estes tipos, no dia 25 de Abril, traírem o país desta forma, grandes malandros!...” sentia-me quase absolvido perante a gula desenfreada dos meus compatriotas. Gritava um para a mulher “Ó Matilde já viste aqui um saco de 20 quilos de batatas por 6 euros?”… “E as cebolas?...” É incrível, até por uma saca de cebolas estes indivíduos se vendem aos espanhóis. Ainda por cima no dia 25 de Abril? “Eu ao menos é só gasolina…” , vem a minha mulher muito contente acenando com um gel de banho na mão que custava metade do preço do que em Portugal e tive de lhe dizer “Leva!” . E já agora aquelas bolachas de 1 euro e os chocolates Milka que lá são um balúrdio e aqui em Espanha só custam… “Leva!”. Saímos de lá com os braços cheios de pequenas coisas que valiam a pena, o depósito cheio de gasolina que valia a pena e na mala do carro esteve perto de entrar aquele saco de 20 quilos de batatas …que pena eu não o ter levado. A minha consciência?...nada que um breve cantarolar de uma música do Zeca não redimisse. Mas ao invés de trautear qualquer melodia interventiva como forma de terapia redentora, deixei a minha mente vaguear por factos muito concretos : “Mas porque raio os espanhóis ganham quase o dobro do que nós e pagam menos pela gasolina , pelas batatas, pelo gel de banho e pelos chocolates Milka?” Não encontrando uma resposta concreta para estes factos concretos apenas me ocorreu um sentimento “Que se lixe!”. Ainda bem que tinha ido abastecer a Espanha naquele dia 25 de Abril. Que bem me sentia depois de ter enchido o depósito com menos uns valentes euros. E que bem se deve ter sentido a Matilde ao descascar aquelas batatas. Passei assim o peso das minhas dúvidas para os tipos que taxam os combustíveis em Portugal de forma alarve e até me apeteceu musicar um poema de Ary dos Santos . Voltei a Portugal e, lá do alto do Marvão, olhando para as ameias construídas sobre aquele abismo de rocha, pensei na trabalheira que um grupo de empreendedores portugueses tiveram para nos proteger dos invasores espanhóis. Uma curiosa ironia; agora somos nós, que invadimos Espanha em busca de víveres mais baratos.
Foi sem grandes preocupações energéticas que percorri muitos quilómetros no Alentejo. Ao encher o depósito do meu deslumbramento com o cheiro da paisagem alentejana, ia pensando que não se pode ter tudo. Eles Ganham mais e pagam menos, e nós,…bom,…nós temos o Alentejo para nos encher o ego. Shiuuuu, não contes a muita gente, mas parece que os espanhóis estão a comprar o Alentejo. Com alguma sorte, pode ser que quando plantarem os seus olivais, também coloquem postos de combustível na banda de cá ao preço da margem de lá. E já agora não se esqueçam das batatas, das cebolas e dos chocolates Milka.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Um Regalo


Li no Jornal Torrejano uma nota de indignação manifestada por um senhor perante a nossa revolta enquanto professores no panorama actual. Escrevia ele que sempre trabalhou no duro e nunca teve as nossas abissais regalias. E eis que, qual cruzado a dar no toutiço dos infiéis, chegou finalmente alguém com coragem para retirar as tais regalias desses malandros, que esbanjam o dinheiro dos nossos impostos e não fazem quase nada. Ora aí está uma mente lúcida! A função dos bons governantes não é criar mais regalias, mas sim retirá-las. Há que nivelar as regalias, para a malta não se queixar. E se não é possível nivelar por cima, nivela-se por baixo que está muito bem. Até acho que eu próprio daria um óptimo governante; hoje fiz a experiência de dar menos ração aos meus cães e eles nem se queixaram muito. Isso de tirar privilégios instalados até parece fácil…O caminho terá forçosamente de passar por esta ideia chave: “Queres regalias? O Tanas!” . Estou a imaginar o inquérito a preencher pelo candidato a um emprego onde aparecerá naquele campo das doenças: 1. sofre de epilepsia?, 2. tem problemas de visão ou audição? 3. deficiências respiratórias? 4. Tem sífilis? 5. Aspira a algum tipo de regalia?. No caso do infeliz responder positivamente à última questão recebe o carimbo com “O Tanas” estampado. Mesmo aquele indivíduo mais maneirinho que responde com um pouco ambicioso “Se possível…sabe… gostaria de ter uns diazitos de férias, mas poucos está claro…” lá via o seu formulário ser borrado com o implacável “ Tanas” do carimbo. Será esta a sociedade que nos espera, em que todos sonham com um emprego onde possam usufruir do menor número de regalias possível. O trabalhador ideal dá o litro 60 horas por semana, não tem férias para ir apanhar uma corzita à praia da Vieira e apenas se queixa daqueles que trabalham menos horas e têm mais dias de férias. Trabalha que nem um moiro e fica extremamente contente se, os que são menos moiros, ficarem tão moiros quanto ele. Caminhamos na direcção da moirice colectiva; uma massa de moiros que não descansa e que não descansa enquanto não tiver a seu lado todos os que tinham algumas regalias. Aliás a palavra regalia, soa tão mal nos ouvidos de um moiro como a voz esganiçada da Catarina Furtado soa nos meus. Basicamente o moiro é um invejoso do catano. Entre darem-lhe mais dois dias de férias ou retirarem quatro dias de férias a um privilegiado, prefere claramente a segunda opção. No entanto, existe algo que eu ainda estou a ver se entendo. Supostamente, com tanto moiro a produzir, com tanta regalia retirada aos quase moiros, seria suposto que se estivesse a gerar mais riqueza. E eu pergunto: para que é tanta riqueza? Se os moiros não se importam de ser moiros e forçam os quase moiros a ser moiros, quem usufrui da produção?...do tempo livre?...do repouso?..do dinheiro?..das reformas mais cedo?....Estão a pensar em quem?...
Mas o golpe de génio foi de quem pensou em retirar as faraónicas regalias dos professores. Os chorudos ordenados, o interminável tempo de ócio, a progressão automática, as turmas pequenas, os alunos que estão lá para aprender. O professor que não se revolta por lhe retirarem regalias, será um indivíduo conformado. E a grande vantagem da transformação de professores em seres resignados e apáticos, é que também ensinarão os seus alunos a ser resignados e apáticos, ou seja, moiros em potência. E é disso que esta sociedade necessita. Da proliferação de cada vez mais moiros resignados a uma sorte de trabalharem que nem uns condenados para conseguirem sobreviver…sem regalias.
Hoje a minha mãe viu a enormidade que teria de pagar de IRS. Ficou a perceber que perdeu as enormes regalias por ser deficiente motora. Estarão a esta hora muitos moiros esfregando as mãos de contente e comentando com o colega moiro do lado: Estava a ver que nunca mais retiravam as regalias a estes malandros que vivem às custas do nosso trabalho. Se não têm dinheiro para pagar os impostos como nós, vendam as cadeiras de rodas, despeçam a empregada, esqueçam a reabilitação, não tomem medicação, fiquem na cama! Querem regalias? O Tanas!...quanto muito um “regalo”,…daqueles espanhóis mais baratuchos. Olha, até pode ser um dos toiros em miniatura que fazem muuuu quando lhe apertam o dorso. É que o bicho pode ser pequeno mas não é lá muito resignado...

quinta-feira, 6 de março de 2008

Movimento Pela Propagação da Virose


A minha mulher disse-me que “andava” com um vírus esquisito. Se eu fosse um tipo ciumento, ainda poderia fazer perguntas confrangedoras do género “quem é esse tipo?”, “não tens vergonha?”, “e ainda por cima um indivíduo esquisito?” , “ao menos tem bom hálito?”. Ela descansou-me acrescentando: “Dói-me o corpo todo e tenho arrepios de frio!”. Depois de me elucidar, saiu e foi dar aulas…(?). “Mas vais dar aulas nesse estado?” perguntei incrédulo. “Vou!” respondeu de forma seca. “Mas espera aí! Não faz nexo. Não estás em condições…”, fui interrompido por um “Entre dar aulas e passar todo o meu dia no centro de saúde para me passarem um atestado médico…”. Hesitei. Fez-se uma pausa, e lá foi ela cambaleante e trémula para a sua paliativa leccionação. Na manhã seguinte o vírus parecia ainda mais alegre e a portadora ainda mais atordoada. Depois de vomitar, desmaiar e ter batido com a nuca na mesa da cozinha, a vítima lançou o desabafo: “olha tenho um galo relativamente grande na cabeça, estou a ver tudo à roda e passa-me aí as calças para eu ir dar aulas”…?...Desta vez, eu tinha de me impor e gritei: “Ai isso é que não vais!”. Felizmente ela estava demasiado débil para ripostar. Depois de a levar ao centro de saúde percebi que ela teria alguma razão quando me pediu as calças para ir dar aulas. Mandaram-na para o hospital por não haver médico disponível e, depois de 3 horas na urgência, lá voltou ao centro de saúde para solicitar o tal do atestado médico. Esperou mais 3 horas com o vírus pululando de alegria por estar ali em ameno convívio com outros primos virais e, lá conseguiu mendigar o papel que o médico passou em 30 segundos. E eu pus-me a cismar na mente iluminada que criou esta obrigatoriedade. Só um ser assolado pela acção de um vírus raro e fulminante se lembraria desta lei, de apenas ser possível obter um atestado médico válido num centro de saúde. Sim, porque os ditos centros, antes desta inteligente medida, funcionavam céleres e fluidos. Estavam mesmo a precisar de mais uns milhares de viroses em ameno convívio nas salas de espera. E foi nesse momento que percebi que se calhar tudo isto fazia parte de um plano estratégico, mais profundo. Vamos lá ver se entendemos o raciocínio. Muito se tem falado do complexo sistema de avaliação a que se vão sujeitar os professores. No entanto, existe mais um parâmetro que poderá ser acrescentado nas fichas de avaliação designado por “Propagação Viral” . Assim, um professor que queira obter a classificação de “excelente”, vai ser avaliado pela forma como propaga vírus aos seus alunos e depois os recupera. Antes de tudo, criam-se condições facilitadoras para o professor ir dar aulas doente. A perspectiva do dia inteiro em busca do atestado num centro de saúde, juntando à penalização avaliativa no caso de faltar mesmo na posse desse atestado, por si só, motivarão a que o professor partilhe o seu estado gripal com os alunos sem grandes problemas. As grelhas criadas para quantificar essa capacidade do professor propagar eficazmente o seu vírus à classe discente, consagrarão três momentos fundamentais: 1. O acto da propagação; 2. O resultado da propagação; 3. a Recuperação da propagação. No ponto um, irão ser medidas as formas encontradas pelo professor para propagar a doença aos seus alunos . As classificações variam entre o fraco espirro sem alvo específico, até ao forte ataque de tosse direccionado para as vias respiratórias do aluno quando este abre a boca. O ponto dois é dos mais objectivos e fáceis de avaliar. Basta a contabilização dos alunos que ficarão em casa doentes depois da acção planeada do professor. Assim, um professor verdadeiramente competente, aspirará a arrumar pelo menos mais de metade da turma numa só semana. Um professor que não possua a capacidade de espirrar decentemente para o caderno dos alunos e não consiga propagar o seu vírus a um único corpinho, deverá escolher outra profissão, porque a docência não é feita para tipos sem fôlego. Mas o professor brilhante, será aquele que para além de tossir à bruta para cima dos alunos, de pôr de cama mais de metade deles, conseguir colocar em prática planos de recuperação eficazes para a enfermidade de cada um deles. Temos assim, no terceiro ponto de avaliação de competências, a nota mais fraca, para um professor que apenas pergunta de forma displicente ao aluno se está melhor e a nota mais elevada para aquele que vem munido com uma mochila de primeiros socorros e se prontifica a espalhar uma pomadinha de Vick Vaporub na peitaça do aluno. A médio prazo, a escola pública, caminhará na senda do conceituado MIT (Instituto Tecnológico de Massachusetts), nomeadamente na descoberta e tratamento de múltiplas estirpes virais e bacterianas. Isto porque o professor irá ser avaliado também pela magnitude da patologia que guarda dentro de si e a sua resistência à mesma. Assim, não poderá ter a mesma nota, um professor que aguenta a dar aulas um insignificante adenovírus durante 4 dias, àquele que suporta um mês de pneumonia sem se queixar. Para o professor que consiga criar dentro de si uma nova variante de vírus ou bactéria, existirá uma pontuação extra, por entrar no domínio da inovação.
Depois de um dia de convalescença na calma revigorante do centro de saúde, a minha mulher lá foi leccionar no dia seguinte. Ao resistir a mais umas quantas aulas com o vírus a fazer tropelias no seu sistema imunitário, pensou se não haveria forma de acrescentar na grelha de avaliação, um parâmetro da “Propagação do Vírus aos responsáveis pela Propagação do Vírus”. Talvez aí não tivesse de se preocupar tanto em colocar a mão à frente da boca sempre que soltasse um espirro mais intenso. Pelo sim pelo não, já temos um frasquinho de Vick Vaporub aqui em casa…

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Pelo canto do olho


A natação é das actividades mais estranhas que existem. O que nos dá a nós, seres terrestres, a mania para nos metermos com as ventas no líquido e esbracejar que nem uns condenados de um lado para o outro? O mais bizarro é assumirmos que até nos dá algum prazer aquele aparentemente desconexo esforço aquático . No outro dia deu-me para nadar, e lá fui eu ao castigo. A água estava um poucachinho a puxar para o frescote e tive de acelerar a braçada logo desde o início optando pela canseira em vez do enregelamento. A arfar e com a cara na água, pus-me a pensar como é possível encontrar um motivo de entretenimento numa actividade que nos faz apanhar frio nos artelhos e nos obriga a manter o olhar no azulejo azul durante a maior parte do tempo. Pensei, pensei e cheguei à conclusão: não penses mais nisso e põe-te mas é a nadar! Mas nem só de azulejo vive o nadador. O nadador anseia pelos ténues momentos em que consegue pôr um olho de fora, em busca de ar e imagens novas. São pequenos momentos de luz que surgem após vários períodos de trevas. Esta alternância entre a imagem turva e a luminosidade, será similar ao que sentiria alguém que visse o filme “Branca de Neve” de João César Monteiro entrecortado por anúncios de carros desportivos. A pasmaceira versus o entretenimento. O grande mal é a pasmaceira representar o dobro do tempo do entretenimento.
Bom, mas voltando às minhas esforçadas braçadas, lá continuei empenhado e, depois de dez piscinas a esbracejar, a saída do olho da água vislumbrou nas cadeiras da bancada um casal de namorados adolescentes. À falta de um anúncio de carros, de um jogo de futebol, de umas Cheerleaders com as proeminências aos saltos, restavam-me aqueles personagens para quebrar a monotonia do fundo azul. Como apenas os conseguia ver por breves períodos ao fim de 50 metros, dei comigo a fazer conjecturas de como os iria encontrar após duas passagens. E não era um exercício de Voyerismo tarado; era antes, um exercício antropológico do comportamento humano em situação de pré-acasalamento. Na primeira passagem estava cada um na sua cadeira agarrados …pela boca . Na segunda, ela estava por baixo e ele por cima, ambos agarrados pela boca e fazendo afagadoras festas no couro cabeludo do parceiro. Na terceira passagem,… não percebi bem aquilo(?). Pus a hipótese, para salvaguardar a privacidade do casal, de fechar o olho durante a breve passagem pela emersão. Não consegui. A curiosidade pelo desfecho da novela falou mais forte. Na quarta vez que o meu olho contactou com o casal, a coisa felizmente estava mais amena. O rapaz, fatigado, deitou-se com a nuca no colo da moçoila, que se entretinha a espremer o pus das suas borbulhas. Na quinta passagem, voltei a não entender aquele exercício de contorcionismo. Tinham voltado à carga em grande. De quem era a cabeça de quem, de quem era aquela mão agarrando a coxa do outro, de quem era o pé no ar?...Será que eles aguentam aquilo muito tempo? Tinha de ver se aquilo terminava sem nenhum ferimento e nadei mais rápido. Eu vi logo. Não suportaram aquilo mais do que duas piscinas e o rapaz voltou a deitar-se em cima do colo da moçoila enquanto esta mandava um sms à mãe, provavelmente a dizer que estava a fazer os TPCs com uma amiga. Quando voltei ao azulejo e à minha reflexão pensei: Espera aí, e se fosse a minha filhinha que estivesse ali com aquele marmanjo ao colo? Fiquei danado e nadei ainda mais rápido. O malandro, ali a aproveitar-se dela; e ela deixa??? Ela que está ali também a espremer-lhe o acne e a fazer festinhas na crista do galináceo? Já estava a ser preconceituoso e … “Não sejas assim tão retrógrado! Tens de acompanhar a modernidade, compreender a exteriorização desinibida do amor!...” Mas não consigo deixar de pensar naquele tipo que irá buscar a minha criança adolescente com a sua moto e a crista levantada, que lançará uma frase do género: Ó cota, diz aí à tua miúda que estou aqui à espera dela p’á levar à discoteca? ...O quêêêê?...Os meus pensamentos sobre tal cenário não os posso exteriorizar aqui,…mas não eram muito católicos. Nadei ligeiro para ver o que aquele crápula estava a fazer à pobre da miúda. Mas é a miúda que está agora em cima dele, espalmando-o contra a cadeira?...Não pode ser. Seria o cloro a enevoar a visibilidade, e qual torpedo, dei em bater pernas freneticamente para tirar o tira-teimas sobre a forma utilizada pelo malandro para aprisionar ali a pobre rapariga indefesa. Quando o meu olho saiu da água em busca da resposta, não viu nada. Rodei o periscópio e continuava sem nada ver. Já não estava ali ninguém. Senti um alívio enorme por ter terminado o indecente assédio à frágil menina. Mas senti sobretudo, uma enorme dor de braços por ter nadado tão rápido naquele dia.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Tem de ser...

Um amigo emprestou-me um livro de Luis Veríssimo, cronista brasileiro, que animou os meus momentos de tédio. Numa das suas crónicas, ele descreve um encontro com alguém que não se conhece mas cuja simpática abordagem nos deixa sem coragem de assumirmos a total incapacidade de o reconhecer. Ao longo da conversa, o amnésico sofre de um arrependimento profundo por não ter dito logo no início que não conhecia o seu “comparsa”, revelação que se vai tornando cada vez mais improvável de se concretizar à medida que o diálogo progride. E esta progressão transforma-se num surto de proporções totalmente imprevisíveis em termos de final, mas claramente previsível quanto à magnitude do constante tiro no escuro.
Depois desta crónica pus-me a pensar nas tristes figuras que podemos fazer nos encontros esporádicos de rua. Pensemos, por exemplo, nas repetidas situações em que encontramos alguém que conhecemos mas não sabemos o que dizer. Veja-se bem a estupidez associada a esta sequência de diálogo:
- Há quanto tempo pá!
- Pois é!
- Então, como é que isso vai?
- Vai andando!
- Tem de ser, não é!
- É a vida!
- Pois é...
- Então vá...
- Tchau!
Se analisarmos estes sons percebemos a completa figura de parvos que conseguimos fazer em tão curto espaço de tempo. O mal está precisamente em querer dizer tão pouco e tão rápido, para nos vermos livres daquele pesadelo. Mas o pesadelo agudiza-se... quanto mais rápido um náufrago quer nadar, mais rápido vai ao fundo. A conversa inicia-se com um fulgurante “há quanto tempo pá”. Apesar do outro geralmente perceber que está implícito o tempo verbal “não te via”, a característica sintética da afirmação poderia dar azo a outras interpretações. Se fosse uma conversa de taxistas por exemplo, poderia entender-se de outra forma: há quanto tempo não és assaltado pá! Ou conversa de pescadores : há quanto tempo não vimos um bom cardume de chaputas pá! Ou entre senhoras finas: há quanto tempo não vêm cá os fotógrafos da caras pá...pá ou direi antes quiqui?
Depois deste dúbio início surge o “Pois é!”. O “pois é” constitui uma espécie de apoio linguístico incondicional. Diz-se “pois é” como se poderia dizer “porra”; sai-nos pela boca sem darmos por isso; é um tique, um automatismo. É uma praga verbal ao nível do “portanto”, do “efectivamente” ou do “tás a ver”. Aplica-se distraidamente e é simpático. Faz o outro pensar que concordamos com ele, quando na realidade apenas dissemos qualquer coisa para substituir o silêncio. Responde-se “pois é” quando a professora de matemática nos questiona se entendemos a explicação sobre os logaritmos; responde-se “pois é” a um discurso de Jorge Sampaio sobre o dever cívico. É um termo agradável mas perigosamente inconsciente. Corre-se o risco de se responder afirmativamente a algo que deveríamos negar. Pensemos se ao invés se ter iniciado a conversa com um “há quanto tempo” tivesse começado por “andas com a minha mulher!?” , o desconfortável que seria para ambos um distraído “pois é”.
No meio de todo este pântano de equívocos existe a ilha redentora do “como é que isso vai?”. É a única questão que não soa mal. E tal acontece por causa do “isso”. Mesmo que não se veja a pessoa há muito tempo, se não se particularizar, não existe margem de equívocos. O “isso” é abrangente, não compromete. Confrangedor será perguntar-se “como é que a tua tia vai?” e termos de ouvir “a minha tia morreu há 8 anos” . Quando perguntamos “como é que isso vai” podemos esperar dois tipos de respostas. O chato, que encara o “isso” como toda a sua vida afectiva, profissional e social, obriga-nos a permanecer passivos ouvintes durante 2 horas ; o simpático, responde simplesmente “vai andando!”. Apesar de poder parecer uma associação com um qualquer exercício de pedestrianismo, ao responder-se “vai andando”, não se comete um grande equívoco, isto porque concede ao “como é que isso vai” a característica dinâmica do “ir” a qualquer lado.
Chegamos às duas pérolas do absurdo comunicativo: o “Tem de ser” e o “É a vida”. Não faz nexo respondermos com um “Tem de ser...” a alguém que nos diz contente que a sua vida “vai andando!”. “Tem de ser” soa a penitência, a obrigação de trabalhador contrariado. É aplicável a perguntas como “ainda vais ter de cavar todo este batatal?”, “vais-te levantar às 5 da manhã?” ou “vais ver televisão a noite toda?”. Não se responde à questão “vais de férias à Patagónia?” com um “Tem de ser!”. Como se não bastasse esta total verborreia, o outro reage ao “tem de ser” com “É a vida!”. É a vida? De mal a pior... pressupõe-se que a vida apenas nos traz momentos de “tem de ser”. Não! A vida não tem de ser; a vida vai sendo. Reparem bem como uma conversa que se pretendia bem disposta e descontraída se transforma num muro de lamúrias, ainda por cima sem razão aparente. Afinal “isso” até ia “andando” mas o “tem de ser” e “é a vida” deitam por terra toda a alegria...,bom...nem toda,... isto porque surge o “Então vá...”. O “então vá” é o “gongo” que nos salva do imbróglio aparentemente insolúvel. É o convite para encerrar a conversa; a deixa para virarmos as costas e esquecermos aquele traumático momento. O “então vá” deveria ter sido dito logo após o “há quanto tempo”. Juntava-se a saudação à despedida, evitando-se qualquer paragem na caminhada, mas sobretudo o prolongamento de algo que nunca se deveria ter iniciado. Correcto seria começar a conversa por um “Desculpa lá mas não sei o que te dizer e antes que comecemos ambos a fazer figuras tristes ... então vá!”. Seria rude, mas sincero; seria antipático, mas frontal. Não conseguimos. A sina do ser social será a de conviver com esta total incapacidade de abolir aquele sorriso amarelo acompanhado do “pois é”.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Palhacinhos...


“Olhe, não quer ajudar as crianças desprotegidas?... A pergunta é feita para um tipo não conseguir fugir. Se respondo “Não” é o mesmo que dizer que “não quero ajudar as crianças desprotegidas”, sou um crápula insensível, digno de ser votado ao desprezo público e deixar a consciência entregue a uma carga de 6 sacos de cimento. Se respondo sim, lá tenho de comprar mais um daqueles bonecos de borracha que ficam sem braços à primeira esticadela e que custam 5 euros. Mas é por uma boa causa,… O pior é que a qualquer lado que vá, lá estão mais boas causas para a malta despender umas massas para a protecção de alguém desprotegido. Antigamente sabíamos que existia a Caritas, a Unicef, a Liga Portuguesa contra o cancro, a Cruz vermelha, que até tinham umas latas onde púnhamos a moedita e recebíamos um autocolante na lapela. Era um peditório anual e já estávamos à espera, contribuindo sem reservas. Agora, multiplicam-se organizações de recuperação de tóxico-dependentes, de protecção de menores, de vítimas de furacões, de sapadores de bombeiros, de portadores de doenças raras, de refugiados em África. E agora já não acham muita piada à moedita; agora é mais nota, senão ainda fazem aquela cara de quem está perante um crápula quase sensível mas forreta. A solidariedade é louvável desde que nos deixe respirar um bocadito entre cada contribuição. Na semana passada penso que todos os voluntários dos peditórios combinaram entre si, e, decidiram perseguir-me até à exaustão contributiva. A qualquer loja que fosse, qualquer esquina que virasse, qualquer café que frequentasse, lá estavam eles com bonecos, porta-chaves, blocos, prontos para receber um contributo a favor de uma qualquer causa nobre. Nem no descanso do lar estava a salvo de um toque de campainha e da frase já batida “Não quer ajudar…..?”.
Entrei numa loja, e reparei numa senhora com um nariz de palhaço a pedir a sua contribuição a um casal desprotegido. Afastei-me um pouco, mas fiquei atento à abordagem insistente da senhora. Entre “sorrisos de crianças”, “apoio voluntário”, “oferta solidária”, o casal lá conseguiu ripostar com um “hoje não obrigado!”. A senhora com nariz de palhaço virou-lhes as costas e olhou para outra senhora que passava, fazendo aquela cara de reprovação onde transparece a expressão “olha-me bem estes malandros, que vêm aqui estoirar dinheiro em fatos de treino e não têm uma nota para dar ao palhacinho!” . E o sentimento de culpabilização é tão grande, que eu próprio comecei a pensar “pois é, não custava nada dar uma notita à senhora do nariz vermelho,…” quando caí em mim e percebi “se calhar os tipos estão a ser perseguidos por palhacinhos há uma semana, tal como eu; e estão fartos, tal como eu”. A senhora estava agora livre para um novo ataque e eu, vi-me ali desamparado, à mercê da sua implacável abordagem. Tinha três hipóteses: ou ia ter com ela , dava-lhe a nota em jeito de Hara-kiri e despachava logo a questão; ou passava eu ao ataque com um “Não posso contribuir e veja lá se tira essa bola ridícula do nariz”; ou optava pelo caminho da fuga airosa camuflada entre duas secções de roupa desportiva, esperando que o seu faro felino tapado pelo bola vermelha não descobrisse o cheiro da presa em perigo. Optei pela fuga airosa, para não correr o risco de me sentir um crápula insensível e forreta, porque naquele dia eu não conseguiria dizer que sim, nem que não, a uma senhora simpática com nariz de palhaço.
Mas se existem peditórios organizados por instituições de solidariedade social, também proliferam aqueles realizados por entidades de solidariedade… individual. Estou-me a lembrar daqueles personagens que nos vêem vender pensos rápidos. Mas porquê pensos rápidos? Por serem úteis? Deixa cá ver,…eu não uso um penso rápido há,… ora bem, …mais ou menos… 30 anos. Depois a escolha nem é muito inteligente; augura um sentimento de flagelação a quem os compra do tipo “Ó senhor, compre estes pensos, que vai precisar deles quando tropeçar no degrau do passeio ali da frente e fazer uma ferida na cabeça!...”. De qualquer das formas, pela multiplicação de tanto palhacinho à espera da nota, qualquer dia aparece, com a lata ao pescoço, um voluntário da Associação de Vítimas dos Peditórios, entidade que visa recuperar indivíduos que se empenharam financeiramente para responder ao empenhamento manifestado por todos os palhacinhos à cata do ofertório. Esses indivíduos necessitam de uma terapia específica no sentido de os conseguir pôr a dizer “Não! Hoje não contribuo mais! Deixem-me em paz!...E já agora, não acha que esse nariz lhe dá um ar um pouco ridículo?”
Lembrei-me agora daquele senhor velhinho, sem nariz de palhaço, com corpo magro e rugas vincadas por uma vida dura. Lembrei-me agora da cara de felicidade e do abraço que deu ao meu filho quando recebeu aquela lata de atum, o chocolate com nozes e um pacote de leite. Aí, sem intermediários mascarados, podemos sentir genuíno alcance de uma insignificante acção solidária...