segunda-feira, 27 de abril de 2009

A Identidade do Cidadão


Sempre achei que a identidade era uma coisa importante. Com o passar do tempo comecei a achar que mais importante do que a identidade, seria o bilhete de…identidade. Tive pela primeira vez essa sensação, quando não pude embarcar num avião só porque o dito bilhete tinha terminado o prazo de validade. Ainda tentei explicar à senhora do check in que o bilhete tinha caducado, mas não a própria da identidade. Eu continuava a ser eu, com os mesmos olhos, a mesma boca, o mesmo cabelo,…bom..talvez menos,…os mesmos pais e avós. A senhora foi irredutível e eu perdi o voo por causa daquele reles cartão plastificado. Depois desse lamentável episódio, pus-me a reparar nas vezes em que nos pedem o bendito bilhete e perceber que até poderia ter alguma relevância. Para abrir uma conta, ser sócio do clube de vídeo, pagar uma televisão às prestações, mostrar ao guarda de trânsito, ou seja, faz-se fé num bocado de papel que poderá ser falsificado e ignora-se a verdadeira identidade que nem com muitos liftings pode ser usurpada.
Depois de ouvir repetidamente e de forma quase indignada que os meus filhos não tinham o bilhete de identidade, decidi que deveria zelar para que eles encontrassem a sua identidade. Foram fazer a fotografia “à lá minuta”, disse-lhes até a baboseira do “olhó passarinho!” para que pudessem exteriorizar o seu melhor sorriso (para a identidade aparecer risonha) e lá fomos contentes para o registo civil. Fui-lhes contando que aquilo não custava nada, até iriam borrar o dedo numa tinta preta, facto que deixou o miúdo radiante, com particular queda que tem para a javardice. Chegámos e tirámos a nossa senha. Seria rápido pois apenas tínhamos duas pessoas à frente. Ao esperarmos, íamos percebendo que aquelas duas pessoas, teriam uma identidade algo complexa, pois demoraram um bocadinho mais do que eu estaria à espera, mesmo com uma limpeza apurada do dedo carimbado. Chamaram a nossa senha e impacientemente lancei um “vínhamos tirar o bilhete de identi….” antes de terminar a frase, a senhora respondeu: “já não existe bilhete de identidade !” O quê??? Está-me a dizer que eu perdi o avião por causa da falta de uma coisa que já não existe? Então e a identidade dos meus filhos?...como posso continuar a dizer que não têm o bendito bilhete de identidade? Para já não falar no desapontamento do mais novo por não poder borrar o dedo com tinta preta. “Agora existe o Cartão do Cidadão!” contrapõe a senhora com um ar orgulhoso de quem finalmente enterrou um bilhete decrépito e criou um pujante cartão do futuro. Aliás, não foi por acaso que se substituiu o termo “bilhete” por “cartão”. Um bilhete lembra um ingresso de cinema, um talão de compra do talho, um ticket de comboio, uma passagem de avião,…outra vez a perseguir-me o maldito voo perdido. “Cartão”, para além de rimar com “Cidadão”, lembra o que todos desejamos ter a enfeitar o porta moedas. Uma panóplia de rectângulos coloridos que servem para dar dinheiro e descontos ou perder dinheiro e descontos: cartões de crédito, de multibanco, do continente, da sportzone, do intermarché, das piscinas, do campismo e caravanismo, das pousadas, dos bombeiros, do Belenenses. O cartão representa um espécie de fetiche lusitano. Até há quem defenda que um cartão CaixaGold a reluzir na carteira, poderá constituir um factor facilitador de conquistas amorosas . Eu cá só queria o bilhete de identidade para os miúdos; Mas não podia ser. Teria de ser o pomposo e moderno Cartão do Cidadão. “Então é preciso o quê, para se ter esse cartão?” perguntei cabisbaixo. “É preciso o cartão de contribuinte, o cartão de eleitor, o cartão do utente de saúde, o cartão da segurança social, o bilhete de identidade(?)”. Agora fiquei baralhado. Por um lado, os miúdos não tinham nenhum desses cartões, por outro fundem-se 5 cartões em apenas um(?). Então e o que vai acontecer ao brilhantismo das nossas carteiras, sem a panóplia de cartões a enfeitar? O cartão de cidadão não substitui o cartão Continente? Ah, assim já podemos ficar mais descansados. A senhora procedeu a todo o processo de certificação do cidadão e demorou cerca de meia hora para cada cachopo. Apesar de toda a malta que estava à espera, achar aquilo tempo de mais, eu penso, que para um indivíduo se tornar cidadão até foi muito rápido. Antigamente para se ser cidadão a valer tinha de se ser um tipo asseadinho, cumpridor das regras sociais, ajudar a mãe a lavar a loiça, levar o irmão mais novo à escola, ajudar os colegas de estudo, beber o leite ao pequeno almoço. Agora a coisa parece mais facilitada. Um tipo assina numa máquina, mete o dedo numa máquina, faz um sorriso para uma máquina, diz o estado de saúde e pagamento de impostos à máquina e a máquina trata da nossa cidadania.
Quando a minha mulher se preparava para ser também ela cidadã, a senhora diz-lhe que aquela criança ao colo do senhor tinha prioridade para tirar o cartão de cidadão. Está traçado o caminho do progresso efectivo, onde a cidadania se compactua num electrónico cartão multifunções e, onde existem uns que, por serem levados ao colo, poderão adquirir mais cedo as vantagens inerentes ao cidadão de futuro.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Alerta Amarelo


“Querido não achas que levamos roupa a mais? Afinal vamos só passar 3 dias fora!....” o marido preocupado responde “Não vês que eles deram alerta amarelo?...mete mas é mais duas camisolas de lã e um kispo para a chuvada que aí vem!”. Quantos de nós não nos revemos no pobre do marido que condiciona os seus actos de acordo com as previsões meteorológicas. “Marcaste hotel no Algarve? Então não viste que os tipos davam um temporal acompanhado de maremoto na costa sul?”; Mas esses gajos da meteorologia não têm mais nada que fazer senão atazanar-nos os planos? Deixem-nos ir à vontade de férias, na doce ignorância, depois lá, logo se verá. Se chover, compramos um chapéu de chuva de 2 euros aos vendedores de rua que também têm de ganhar a vida. Mas pior do que os meteorologistas para nos lixar o ócio, apareceram agora uns tipos da protecção civil, um organismo que foi criado para lidar com as situações de emergência, coordenando os meios operativos existentes,….?..... Fazes o quê? Coordeno! Sempre tive uma certa admiração pelos indivíduos que coordenam. Constróis casas? Não, coordeno a construção!; Dás aulas? Não, coordeno os professores!; Serras lenha? Não, coordeno a serração.; Apanhas ladrões? Não, coordeno a polícia! Apagas fogos? Não, coordeno a distribuição dos aviões alugados a preço de ouro! Qualquer trabalhador que se preze não pode pôr as mãos na massa sem antes arranjar alguém que coordene as suas acções. Será até de certa maneira constrangedor se, ao perguntarem a um electricista se não tem ninguém a coordenar as suas montagens eléctricas, ele responder que não…Não? Então e os perigos? Os choques? Quem coordena esses arrojadas acções com o busca-pólos em cima do escadote?
Mas voltemos à protecção civil e à coordenação que fazem dos meios de emergência e das nossas férias. Os tipos, como perceberam que é difícil coordenar situações de emergência, resguardam-se na prevenção e fazem eles muito bem. “Ó Isabel, põe aí mais um gorro e um par de luvas que isto do alerta amarelo não é para brincadeiras!”.
Esta coisa dos alertas, foi um golpe de génio. Pôr a malta alerta, é despertar um estado de vigília permanente. Promover a desconfiança, o receio, a atenção, ou seja, afogar-nos no desconforto antes mesmo de levar com chuva na cachimónia. Como a ordem de alerta dada pelo major (o coordenador) ao sentinela da noite de um quartel rodeado por uma multidão de inimigos talibãs. O que pensa o sentinela? Que provavelmente se adormecer estará lixado e se não adormecer …lixado estará. Pelo sim pelo não, não vai conseguir adormecer, porque a levar um balázio ao menos que seja acordado. E é assim que nos sentimos quando vamos uns dias de férias ensombrados por o alerta agoirento pairando sobre as nossas aspirações de dias de descontracção. Vamos contraídos, envoltos em cachecóis e impermeáveis, esperando o pior dos vendavais, o mais ignóbil dilúvio. “Mas já viste o sol que está? Eles não diziam que…”, pergunta a mulher de forma optimista, “Espera que o pior ainda está para vir, mantém-te alerta!” contrapõe o pragmático marido.
No gabinete do coordenador da protecção civil, a conversa desenrola-se: “Não achas que exagerámos um bocadinho com o alerta? Afinal só dão aguaceiros e uns ventitos…”, “Shiuuu, cala-te! Não viste como ia ardendo toda a reserva do Gerês no mês passado? Foi porque não lançámos nenhum alerta!...ou lançámos?...mas de que cor?...”. Também quem se lembrou de pôr amarelo ao alerta? Amarelo não intimida; é alegre, radioso, até lembra o sol iluminando malmequeres. Já agora um alerta cor-de-rosa para nos avisar de uma breve brisa marítima. O alerta vermelho faz mais sentido. Lembra-nos sangue, tragédia, fogo, Benfica, enfim, imagens pouco apelativas e mais consonantes com cenários de flagelo.
“Mas ó Manuel, já estamos quase no último dia de férias e ainda não pingou…”, o Manuel continua firmemente convicto “Vais ver que vamos apanhar a intempérie na viagem de regresso a casa e ainda ficamos presos no caminho…”
As expectativas do céu amarelado não se confirmaram e o casal regressou a casa com um sol radioso, apenas interrompido por uns pingos ali perto de Mealhada, que serviu de pretexto para mandar os dentes a um naco de leitão. Chegados a casa, ao tirar do carro toda a tralha que tinham levado para combater as condições de inverno rigoroso previstas, o Manuel de forma resignada perguntou: “Achas que o coordenador é daltónico?”
Acabo de escrever esta crónica a ouvir a chuva que cai lá fora, e os pingos que caem cá dentro por causa do dilúvio da tarde. Será que o coordenador lançou um alerta amarelo para hoje e eu não ouvi?....