quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

A normalidade

“Este tipo é um perfeito anormal” representa uma das pérolas do nosso reportório linguístico geralmente utilizada em momentos de extrema indignação. O “perfeito anormal” está ao nível de outras expressões igualmente contundentes como “besta quadrada”, “grandessíssimo imbecil” ou “enorme cavalgadura”, que fazem parte da nossa identidade, enquanto armas prontas para ser arremessadas quando alguém nos faz a mostarda subir pelas narinas, proporcionando um enorme alívio interior. No entanto, no meio de tanta transformação social, temo que esta adjectivação do “perfeito anormal”, esteja em vias de extinção. Isto, porque percebi que a anormalidade está a infiltrar-se no território do normal, enquanto que factos outrora normais representam agora um nicho de raridade olhado de soslaio. Confuso?..eu também, mas vou tentar desemaranhar este novelo da normal anormalidade(?). Estava a falar com um amigo que, depois de sucessivos contratos anuais ficou a saber que o vão despedir por não poder ficar no quadro da empresa. O tipo aprendeu tudo sobre o ofício; integrou-se na empresa; é um funcionário competente; chegou sempre a horas; saiu sempre depois da hora; realizou todas as tarefas com afinco; mas o contrato acabou e ele terá de ir à sua vidinha para outro lado. Porque para este lado, aparecerá outro novato como ele já foi, para aprender o ofício, para no final de uns poucos contratos o porem também a andar. Quando eu pensava que, depois de ele me contar a sua situação profissional, completaria com um terapêutico “Estes gajos são uns perfeitos anormais!”, limitou-se de forma resignada a dizer “É uma situação normal!”. Uma situação normal??? Quem foi o anormal que disse que isto era uma situação normal? Normal o tanas! Isto é do mais anormal que poderá existir numa sociedade que se pretende desenvolvida. A anormalidade de explorar pessoas como se de pastilhas elásticas se tratassem, daquelas que fazem mal aos dentes e o melhor é colá-las no tampo do caixote do lixo depois de perderem a cor. Caí em mim e olhei mentalmente para aquela enorme fila de jovens desempregados à espera que o meu amigo vá à vidinha dele para outro lado. Estou a vê-los a entrar de sorriso aberto na entrevista mediante a boca voraz do mastigador insaciável . São tantos, mas tantos que se disponibilizam a ser mastigados sem contrapartidas que tenho de me render à constatação do meu amigo: “É uma situação normal”. Mas onde já ouvi também esta expressão? Deixa cá ver…Ah, foi aquela senhora Polícia, responsável pela segurança no último dérbi futebolístico da capital. Perante a pergunta do jornalista sobre o apedrejamento do autocarro do clube visitante por parte dos adeptos anormais, a agente da autoridade responde com um aliviador “São situações perfeitamente normais num evento deste tipo”. Ora aí está, a metamorfose. Quando se pensava que o alívio chegaria com a declaração “A esses perfeitos anormais era dar-lhes umas belas cacetadas no lombo…” , o alívio chega com a transformação dos anormais com calhaus numa mão e very-lights na outra, em seres com comportamentos perfeitamente normais. “Se é normal, então deixa cá ver se desta acerto na carola do Nuno Gomes…”.
Estamos assim convencidos que partilhamos uma espécie de retrete colectiva, onde aliviamos a nossa trampa com um cheiro perfeitamente normal. A diferença é que as fezes orgânicas e o odor por elas produzido são, de facto, saudavelmente normais. A trampa social é que não deveria ser normal. Mas para isso seria necessário que, aos primeiros descuidos, existisse alguém com coragem para dizer “ Ó seu porcalhão, então isso faz-se!?”. Mas é mais fácil assim. A malta faz trampa em sossego porque é perfeitamente normal. E que alívio isso dá. O alívio de saber que é normal um anormal, perdão, uma besta despejar lixo na natureza; que é normal um anormal, perdão, um imbecil espancar a mulher durante anos; que é normal um anormal, perdão, um cavalgadura ser ilibado de um crime que cometeu; que é normal um anormal, perdão, um cachopo faltar ao respeito a um adulto; que é normal um anormal, perdão, um responsável político ver-se envolvido em inúmeras embrulhadas ocultas com um sorriso nos lábios.
O que é anormal, é o senhor António Nobre ter achado na rua um saco com mil euros dentro e o ter ido devolver à esquadra. A notícia bombástica sobre um acto tão anormalmente bizarro esbarrou nas declarações do senhor António que, ao encolher os ombros respondeu “Isso foi o que me ensinaram. Se uma coisa não me pertence, devolvo. Acho normal…”. Também eu acho, mas não achou a entrevistadora ao olhar para o Sr António como se estivesse perante um Lince da Malcata criado em cativeiro. O Sr António representa assim o paradigma vivo do normal anormal, em contraste com o imbecil do calhaus no vidro alheio que encarna na perfeição o modelo anormal normal.
No meio deste caldo pestilento normalizado, o que me deixa verdadeiramente triste, é saber que já não posso mandar com um “grande anormal” como forma terapêutica imediata. Corro sempre o risco de ouvir: “Cretino ainda vá!…Agora anormal,…isso é que não!”.