sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Fadinha dos Dentes



O meu filho ainda acredita na Fadinha dos Dentes. Acredita piamente e sem reservas. Acha que depois de ser ver privado da dentição, deverá haver alguma alma que o possa ressarcir de tão traumático dano. O dente cai, coloca-o debaixo da almofada e no outro dia o milagre da transformação acontece: o incisivo ensanguentado dá lugar a uma saqueta de cartas Yu-Gi-Oh. Desta vez a coisa não se deu bem assim. A Fadinha teve alguma dificuldade em descobrir as cartas com nome oriental e foi adiando a magia. Todos os dias, o miúdo espreitava para debaixo do travesseiro e nada. A Fada tinha-se esquecido do seu pedido. Expliquei-lhe que talvez não conseguisse encontrar essas cartas e ele, num acto desesperado, reescreveu o seu pedido dizendo “Querida fadinha, se não arranjares as cartas Yu-Gi-Oh, podes meter debaixo da almofada outra coisita qualquer…”. Aquilo emocionou-me. Revelou que o miúdo nem é muito exigente; só queria que o milagre acontecesse, fosse com cartas ou com …uma coisita qualquer.
Estava a ver na televisão um debate sobre a dívida pública. Parece que o país pede por hora ao Banco Central Europeu qualquer coisa como 2,5 milhões de euros, o que dará a arredondada quantia de 60 milhões de euros por dia. Toda a malta ficou admirada com esta dívida brutal e eu não percebo bem porquê. Nós somos o paradigma do país do fiado. Qualquer portuga que se preze tem de dever alguma coisa a alguém. A casa, o carro, a mercearia, as jóias, o plasma, a máquina fotográfica. Assentamos no princípio do “Leve já e pague depois”. O grande drama é quando já se levou e não se consegue pagar. Existem municípios portugueses que se orgulham da obra que empreenderam e depois devem 6.000 milhões de euros a… alguém. E aqui é que entra a história da Fadinha do Dentes. A crença de que surgirá uma criatura mágica que tratará de pagar o que nós devemos. Ao comum cidadão essa crença cairá por terra quando deixar de pagar a prestação e o banco lhe ficar com a casa. Já os grandes devedores, alimentaram a ideia de que alguma fadinha aparecerá algum dia para pagar as dívidas obscenas que foram contraindo. Essa crença também assalta os credores que acreditam receber o dinheiro antes da sua empresa ir à falência. “Epá, hoje consegui um negócio fabuloso com a Câmara Municipal! Vou fornecer gasolina aos tipos nos próximos 20 anos!”…”Mas os gajos já te pagaram os 100.000 euros que te devem?”… ”Não, mas acredito que brevemente venha uma fadinha e mos ponha à noite debaixo do travesseiro”. A ideia de que alguém pagará a nossa dívida é algo que me deixa também com uma certa esperança. Fui no outro dia às compras a um hipermercado e depois do valor que me pediram, tive uma enorme vontade para dizer que a 6ª senhora da fila é que pagaria a minha conta. E o país funciona agora assim. Gastam-se quantias megalómanas esperando que o último tipo da fila pague. Antigamente existia a ideia peregrina de se fazer obra apenas com o dinheiro que se tinha. Agora faz-se obra à custa do dinheiro que outro tem. A par desta notícia dos 60 milhões de dívida por dia, vem a outra de que já ninguém nos empresta dinheiro a não ser o BCE com juros de 4%, que quererá dizer que a fadinha dos dentes terá de pagar mais 2,4 milhões em juros, por dia. As outras instituições financeiras já adoptaram a personagem do Zé Povinho “Queres fiado? Toma!” . À medida que o país vai ficando cada vez mais desdentado, a fadinha dos dentes tarda em colocar o presente debaixo do travesseiro, mesmo que seja apenas uma coisita qualquer. E já que a fada não aparece o que se faz? Arrancam-se os molares sem anestesia…é p’ra desgraça é p’rá desgraça. Daí a despesa pública ter aumentado 2,7%, mesmo depois de todos os aumentos de impostos, despedimentos e congelamentos de carreiras. É que ainda há muito BMW série 7 para abastecer os ministérios… O tipo sabe que a inflação em 2013 terá de aumentar 4%, quando se descobrir que a Fadinha não existe; o tipo sabe que o país vai dar o berro e nem dinheiro haverá para uma saqueta de cartas Yu-Gi-Oh, e o tipo vem dizer “Não é necessário entrar em alarmismos!...”. A minha fadinha dos dentes é o FMI, para vir mandar um pontapé nos dentes do tipo, para ver se o tipo se cala, que já não há pachorra.
O me deixa mais transtornado é que os últimos tipos da fila da caixa, aqueles que terão de pagar todas as imbecilidades que toda esta corja política cometeu ao longo dos anos, poderão ser os meus filhos. A minha quota parte de responsabilidade, foi ter alimentado a história da fadinha dos dentes, colocando debaixo do travesseiro uma saqueta de cartas Yu-Gi-Oh. O Miúdo escreveu um bilhete que colocou na mesinha de cabeceira no dia seguinte: “Obrigado pelo presente, Fadinha dos Dentes”. O Meu filho tem 7 anos...