sábado, 1 de junho de 2013

A fronteira da rede ovelheira

Tenho onze ovelhas a comer a erva do meu terreno. Fiquem os benfiquistas descansados que não se trata de qualquer referência ovina a uma tal equipa bafejada pelo azar dos momentos finais. Até porque ser ovelha não é sinónimo de azar; a não ser quando a metem na carrinha rumo ao matadouro. Por falar em matadouro, afinal já não são onze ovelhas, porque uma teve o azar de embarcar na tal carrinha. Não, e não foi porque se portou mal ou por  ter sido agressiva (parece que existe uma raça de ovelhas paraguaias que costumam investir sobre os donos); o animal estava muito doente e cabisbaixo.
Confinei as bichas a metade do terreno, e elas trataram de meter a sua dentição trituradora em acção, a um ritmo de 50 gramas de feno por segundo, ou seja, muito feno em  pouco tempo. E se a ovelha tem apetite. Parece mesmo ser o seu único objectivo na vida pré-matadouro; “Deixa-me encher o bandulho, porque ao menos, quando me quiserem fazer a folha, terão de acartar com mais uns quilos sobre os costázios”. Basicamente a ovelha come, rumina e dorme. Não joga ás cartas, não comenta a roupa da vizinha, não diz mal do treinador Jesus, não ouve comentadores desportivos. Aos poucos comecei a perceber que nutria algumas afinidades com as bichas: o prazer em dormir e comer (ainda não consigo ruminar) e a apetência  pelo verde como cor dominante. A ovelha está a trucidar o pasto seco e amarelado pelo peso das suas patas e a mandar o olho ao resplandecente verde que lhe acena do outro lado da vedação. Uma verdadeira crueldade. Como  a imagem de um sem abrigo a roer uma côdea seca, encostado ao vidro de uma churrascaria a ver coxas de frango saírem do carvão rumo ao prato de outros. A fronteira definida pela rede ovelheira separa o seco do frondoso, o insonso do temperado, o sensaborão do apetitoso. E é ver as bichas trincando o pasto seco dia e noite, tristes e cabisbaixas, sonhando com o dia em que a vedação vem abaixo e conseguem alcançar o éden vegetal. Percebi ainda melhor essa obsessão pelo verde, quando peguei no serrote e as vi correr desenfreadas rumo à vedação. Será que confundiram o verde do serrote com o verde de uma alface?  Não. As ovelhas percebem que a imagem do serrote, antecede o som do serrote, que antecede o ruído de um ramo cheio de folhas verdes a cair no chão, que antecede  o momento da folha da oliveira a passar pelas suas papilas gustativas. E aí estavam elas todas pimponas a lançar pelas goelas, desenfreados mééés e a esfregarem as patas por um daqueles bitoques em forma de rama. Serrei o ramo e os méééés aumentavam de volume. Arrastei a folhagem para o outro lado da vedação e as bichas acotovelavam-se quais refugiados num campo da Somália e trucidavam-na num abrir e fechar de olhos.  Ao ver aquele cenário, não consegui de deixar de pensar no significado da fronteira entre o seco e o verde. Lembrei-me que aquela vedação poderia representar a linha que separa Portugal dos seus “parceiros” europeus. Nós, umas ovelhinhas famintas rapando a erva seca misturada com grãos de terra, e eles, uns empertigados cavalos puro sangue  que passeiam e largam bosta sobre um prado verdinho, a que o borrego faminto chamaria um figo. Nós, rapando o fundo das contas bancárias para conseguir pagar todas as facturas mensais, e eles, enchendo os depósitos dos Mercedes para rumar às suas casas de férias na Baviera.
Naquela tarde serrei alguns ramos, mas só enviei para a boca das ovelhas alguns deles, não fossem elas habituarem-se ao bem bom do verdinho e deixarem o prado seco para outro ruminantes. Ao fazer uma fogueira com outros dos ramos serrados, senti-me mal. Ali estavam elas de cabeças espetadas na vedação com o olhar colado na rama verde e eu, queimando o seu sonho alimentar. Senti-me um malvado “Merkel” , que grita: “Queriam estas folhas verdinhas no bucho?...vão mas é rapar o pasto seco que paparam em menos de um fósforo!...Quando o pasto seco acabar?...pode ser que vos envie mais uns quantos raminhos de oliveira, mas poucos, para não se habituarem à fartura…”.

A crueldade suprema é que a ovelha vê, pelos buracos da vedação, que logo ali tão pertinho o petisco existe.  E se se erguesse um muro que impossibilitasse a visão do bicho? Ou então uns óculos pintados de verde para que o animal visse o amarelo em tons esverdeados?...Não resulta, porque a ovelha tem olfacto e porque já viu, cheirou e trincou o que existe do outro lado da vedação. O curioso é que a ovelha permanece ali passiva, sem empurrar a vedação, roendo desconsolada a erva seca e o torrão, à espera que alguém lhe lance um raminho cheio de folhas verdes.