domingo, 28 de dezembro de 2014

Meteorologia natalícia



Estava a minha dentição entretida a trucidar os coscorões e todas as iguarias que o metabolismo merece enfardar no dia de natal, quando alguém teve a genial ideia de ligar a televisão. Em uníssono, ouvimos um apelo colectivo: “Esse tipo é que não!...desliga isso, senão a fruta cristalizada não passa no esófago!!” Entre o ligar, o apelo e o desligar, sobraram alguns segundos, suficientes para ficar colada aos nossos coscorões a mítica frase “desde há muitos anos que os portugueses não terão a acumulação de nuvens negras no seu horizonte”.  Várias dúvidas me assaltaram e nenhuma tinha a ver com a carga calórica dos coscorões. A primeira questão prendia-se com o facto de, no dia em que comemoramos o nascimento do menino Jesus, aparecer o primeiro ministro a falar ao país. Não sei se a ideia seria colar-se ao  nascimento do salvador e ele próprio apanhar essa onda deixando no ar a imagem de que também nasceu o redentor económico “sabem, eu não tive uma vaquinha nem um burrinho para me aconchegar o berço, mas tive uns tipos do banco central europeu muito simpáticos que me deram aconchego nos momentos em que eu mais precisei; esses e os chineses que nos compraram a energia; esses e os brasileiros que nos compraram e venderam as comunicações aos franceses; esses e outros que não sabemos bem quem, a que entregámos os correios” . Nasce assim,  Passos como o salvador de todos os nossos pecados da gula, afastando o espectro do terror e da falência. Por falar em falência, “Ó Passos, então e aquela história do BES? Da solidez dos investimentos?” Da regulação fictícia do Banco de Portugal?...”  “Banco? Qual banco?...hoje vim aqui falar de prosperidade!!!...já de propósito, para evitar mal entendidos, troquei um banco de madeira por esta  cadeira vermelha igual à que o pai natal utiliza nos centros comerciais  para vender fotografias aos meninos que se conseguirem sentar ao seu colo.”.
Voltemos à frase meteorológica lançada pelo primeiro ministro sobre a acumulação de nuvens negras no horizonte.  Um claro sinal de que o tipo tem poderes maiores do que o malogrado Anthímio de Azevedo, que só conseguia prever as baixas pressões para um período de 5 dias com alguma segurança. Passos lança-se seguro para a certeza de uma baixa acumulação de nuvens negras nos próximos tempos, ou seja, entre o dia de Natal e as eleições legislativas. É d’homem! Ou antes, é d’homem poderoso! Ou melhor é d’homem poderoso a puxar para o milagroso!
Trincamos o peito do peru ao memo tempo que ouvimos a notícia de que a idade da reforma irá aumentar para os 66 anos e 2 meses. Lembramo-nos da nuvem negra na fase dos coscorões, engolimos o peru à pressa e começamos a fazer a nossa análise introspectiva: “Grande mentiroso!  Então que tudo iria ser melhor; que faria um sol radioso e dá-nos a perspectiva de gozar a reforma a trabalhar?” . “Disseste mentiroso? Não confundiste com poderoso e milagroso? Pensa bem no “oso” que colocas no final do adjectivo.” Na verdade Passos não mentiu, porque domina a metáfora meteorológica como ninguém. Lança a redução da acumulação nuvens negras como uma coisa boa, sabendo que, para um alentejano, assolado pela seca e falta de água, e ansioso por uma bela carrada de chuva e negridão no horizonte, a redução das nuvens revela-se como uma má notícia. A metáfora meteorológica não compromete; a nuvem pode ser má para um minhoto ou boa para um algarvio. “Quem disse que as coisas iriam melhorar?...eu só falei em nuvens negras, mais nada!”. Mais nada?...falou também que “Será o primeiro Natal desde há muitos anos em que temos o futuro aberto diante de nós.”. Aqui já ultrapassa a previsão meteorológica e entra no domínio do consideravelmente estúpido. Talvez por um erro de sintaxe. O nosso futuro sempre esteve aberto diante de nós; aberto e repleto de figuras, cujas competências deveriam estar ao dispor do Instituto do Mar e da Atmosfera e nunca aos comandos da complexa gestão de um país. Se tivesse dito “temos mais futuro aberto diante de nós”,  a coisa já faria algum sentido; de facto percebo que tenho cada vez mais futuro a trabalhar, mesmo que para isso tenha de levar comigo as artroses e o andarilho. 
Acabei agora de consultar a previsão meteorológica  para os próximos dias e fiquei a saber que não haverá nuvens no horizonte. Ufa, ainda bem.  Seremos brindados com um fabuloso frio glaciar para testar as nossas adiposidades. Enquanto a nuvem não vai e o frio não vem, vou continuar agarrado aos coscorões e ao peito de peru, com a certeza de que só abrirei a televisão para conferir os números do euromilhões, que desta vez me lembrei de fazer. Pode ser que o futuro se abra perante nós com a nebulosidade adequada.

sábado, 18 de outubro de 2014

Da Serra Leoa para Portugal...com admiração...

Somos um dos três países mundiais com maior competência no sector. Fiquei estupefacto com a fabulosa notícia. Nós, que perdemos tempo com fatigantes lamúrias e maledicência barata, aprendemos hoje que fazemos parte de uma restrita elite na vanguarda do conhecimento. Pensarão os leitores de que sector se trata, e não adianta perderem tempo a divagar pela pesca, agricultura, economia, justiça e irem logo directos para a área da saúde. Descobrimos que estamos na vanguarda da despistagem do vírus mais falado no momento: o ébola. Mas não confundamos despistagem com …despistagem. A despistagem da qual falamos não termina com o chassis do carocha amolgado na cortiça de um sobreiro; trata-se sim da investigação laboratorial que atesta se o líquido do frasquinho tem vestígios do tal vírus mortal. E sermos um dos três países de referência na despistagem do ébola, resulta em quê?...na escolha dos nossos laboratórios como local privilegiado aonde chegarão amostras de todo o mundo em busca de diagnóstico. Um orgulho nacional. Finalmente o reconhecimento exterior pelos nossos serviços. Numa altura em que tanto se fala de exportação, era disso que nós precisávamos: de importar o vírus ébola. Estava longe do nosso território, mas nós fizemos questão de o chamar para pertinho de nós. Não sei bem como conseguimos ser escolhidos no meio de tantos, mas aproveitemos para cumprir essa função com brio e dedicação. A senhora do laboratório dizia que se despedia dos filhos e encarava a estóica tarefa como um combatente na linha de fogo, sem pensar numa bala perdida, numa luva furada, numa galocha rasgada. À primeira vista, poderíamos esperar a importação de outro tipo de serviços e bens como barcos de pesca noruegueses, organização suíça, tecnologia japonesa, economia alemã, pizzas italianas…o quê?...essas já importámos?... fiquemos pela economia. Mas importamos o Ébola e exportamos o diagnóstico para todo o mundo; um serviço público de valor humanitário. Poderíamos ter ficado na vanguarda das análises do colesterol, da glicemia, da Alina Aminotransferase , mas nós gostamos de fazer as coisas em grande (eu sei que a última designação técnica soava a algo grandioso mas não é nada de especial) e apostámos num vírus que tem uma taxa de mortalidade de 70%, ou seja, mata comó caneco. Não questionamos porque razão são só três os países de referência para a análise do ébola (não sei quais são os outros dois, mas não devem ser os alemães que já têm a economia, nem os noruegueses que já têm os barcos de pesca...), e encaramos a tarefa com o empenhamento e o desprendimento do montanhista que escala nos Himalaias, do pára-quedista que se atira do avião, do piloto que acelera a 300km/h antes da curva, do canoísta que enfrenta os rápidos do rio Zambeze. Recebemos o frasquinho vindo da Serra Leoa em busca de respostas e seremos nós os portadores das mesmas. Temos esse poder entre mãos, esse e o frasquinho que não pode cair ao chão. E é no fio da navalha, com a adrenalina a pulsar nas veias, que trabalhamos em prole dos outros; uma tarefa de pura abnegação. O fato foi bem vestido, as luvas bem colocadas, os óculos acondicionados, as galochas coladas às canelas, a análise realizada, a desinfecção concretizada, os resultados obtidos. E eis que chega o culminar magnânime desta tarefa: a comunicação ao doente se este tem ou não tem o vírus. No caso da análise ser negativa, o doente saltará de alegria e jamais se esquecerá dos portadores da boa nova e ainda acabará a comer sardinhas nas docas de Peniche. No caso da existência do vírus se confirmar , teremos a dolorosa tarefa de dizer ao doente que apanhou ébola e, no caso dele perguntar pelo outro diagnóstico, o da cura, conseguirmos dizer-lhe que: “Cura, cura, ainda não se descobriu,…, mas parece que os americanos estão a testar um medicamento que pode ser que faça qualquer coisinha…”. A nossa tarefa restringe-se pois à despistagem…sim, a despistagem: a do carocha que se estampa contra o sobreiro. Chegamos ao local com a fita métrica debaixo do braço e, depois de várias medições e análises, afiançamos o diagnóstico com propriedade: “O senhor tem a chaparia do seu Volkswagen em estreita comunhão com a cortiça do sobreiro; basicamente tem o carro feito num oito e acaba de destruir uma árvore centenária”. Ao que o acidentado responde: “Isso dá para ver com facilidade; mas acha que tem solução???”. “Solução, solução,..., olhe tenho aqui o contacto de um bate chapas; pode ser que lhe resolva isso.” O que não me sai da cabeça é a imagem da investigadora do laboratório, acondicionada dentro de todo aquele aparato de isolamento, com a mão trémula segurando o frasco com o possível líquido mortal; sem margem para erro, ou vacilação. O que acontecerá no caso da senhora não conseguir conter um espirro?..... alguém tem o contacto do bate-chapas?....

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Vencimento Nostalgia


Troquei de carro. Ou antes, fui obrigado a trocar de carro, uma vez que o meu veículo  decidiu falecer à revelia do dono. Ainda tentei reanimá-lo, com umas festinhas no capô e uns pontapés nas jantes, mas ele claudicou. Mas não se limitou a claudicar de forma passiva; até chegarmos às festinhas no capô, já ele tinha feito grandes festinhas na carteira do dono, entre tubagens, embraiagens, motor de arranque, correia de distribuição. Mas os laços que nos uniam eram de tal maneira fortes, que ele decidiu que gostaria de levar o dono para a cova com ele. Percebe-se que nunca esqueceu os momentos fraternos que vivemos juntos, das peúgas suadas debaixo dos bancos, dos caminhos em terra batida que percorremos, dos iceteas  espalmados no banco do passageiro, das cascas de banana em compostagem no guarda-luvas. Decidiu então falecer neste momento de prosperidade económica em que vivemos, para que o dono esbanjasse também ele a sua própria prosperidade.  Em sua memória fiz-lhe a vontade e adquiri um veículo afogado em tecnologia onde tudo apita e nos faz pensar que prevaricamos a toda a hora. Apita quando não se põe o cinto, apita quando se tira o cinto, apita quando as luzes estão ligadas, apita quando é preciso fazer a revisão, apita quando não pressionamos o travão de mão, apita quando saímos do carro em andamento…?...(já um tipo não pode saltar do carro). Este árbitro de futebol de quatro rodas, tem, contudo, uma apitadela que me faz babar de contentamento: o apito do sensor da marcha atrás. E não se limita a apitar quando estamos prestes a embater na oliveira lá de casa. Avisa com uma luz que vai passando de verde para vermelho à medida que o pára choques se aproxima do estado de espalmamento, terminando com um enorme e reluzente STOP antes do impacto. Bem sei que nesta fase deveria estar a fazer o luto pelo meu falecido carro, mas estou naquela fase de afogamento tecnológico, qual criança inebriada com a playstation recebida no Natal, e sem qualquer sinal de nostalgia  das avarias do meu chaço anterior.
Decidi então pegar no meu compacto amovível de tecnologia e ir até ao multibanco ver o recibo de vencimento. Olhei para o tal recibo e , depois de soltar um termo imperceptível, consegui sentir um misto de alegria e tristeza. Por um lado, ao fim de 25 anos a trabalhar, nunca o meu salário se aproximou tanto daquele que eu recebia no meu primeiro ano de vencimento. E essa sensação nostálgica transportou-me  à minha primeira ferrugenta renault 4L, aos 0,6 cêntimos do litro de gasolina, aos 0,4 escudos do preço da bica, ao meu ano de jovem estagiário, que não pensava em custos do rolo de papel higiénico. Mas o recibo do meu “vencimento nostalgia” deixou-me com alguma pena  dos nossos decisores políticos por, no meio de tanto Mercedes e BMW onde sentam as majestosas bundas,  ainda não terem adquirido um veículo daqueles à séria, com sensores de marcha atrás. A atestar pela velocidade de recuo a que sujeitam as economias familiares, que nos levam a sentir os costázios a furar sucessivos muros de betão, decerto que não têm o apito milagroso nem a luzinha vermelha a acender. Ei, Meus senhores!...comprem lá o tal sensor, que a minha carroçaria de retaguarda  não aguenta muito mais espalmamento!!... Quando pensava que não me ouviam, eis que surgem os primeiros sinais de se querer inverter a tendência de regressão económica. Uma medida de fundo, que revolucionará o panorama de desenvolvimento nacional concertado: Um referendo!...Isso!...consulte-se o povo para que esta carroça ande para a frente! O tema do referendo?...É…?...Vamos lá, deixem-se de suspense…(decerto um dos grandes temas aglutinadores do desenvolvimento nacional e social como a privatização da energia, a regularização dos impostos, o funcionamento da justiça,…)…a Co-adopção por casais homossexuais!? Muito bem! Finalmente alguém com clarividência para pôr isto a andar para a frente.  Eu compreendo o pensamento do tipo que teve essa “holofótica” ideia. “Deixa cá ver; podíamos legislar directamente sobre a co-adopção por casais homossexuais, mas gastando 10 milhões de euros é outra coisa! Tem mais impacto, faz com que os cidadãos sintam essa medida como sua!...” De impacto a nossas carroçaria de retaguarda percebe, depois de vários estampanços contra oliveiras no caminho. Aguardo ansioso pela próxima ideia de referendo sobre a proibição de lançamento de cascas de amendoim pela janela do carro, ou sobre a limitação do consumo de bolacha Maria a partir das 23 h, ou a imprescidível abolição das brocas dos dentistas.

A avaliar pelo ritmo da marcha atrás ininterrupta que este veículo assumiu, rapidamente a magnitude do meu salário, encontrar-se-á com a nostalgia da mesada que a minha mãe me dava nos tempos de adolescente. Mas, mas,.... já há malta de 40 anos que voltou a viver com a mesada das mães???... Grandes malandros, vão comprar os livros do Tex e pacotes de batatas Pala-pala antes de eu lá chegar.