Estava a minha
dentição entretida a trucidar os coscorões e todas as iguarias que o
metabolismo merece enfardar no dia de natal, quando alguém teve a genial ideia
de ligar a televisão. Em uníssono, ouvimos um apelo colectivo: “Esse tipo é que
não!...desliga isso, senão a fruta cristalizada não passa no esófago!!” Entre o
ligar, o apelo e o desligar, sobraram alguns segundos, suficientes para ficar
colada aos nossos coscorões a mítica frase “desde há muitos anos que os
portugueses não terão a acumulação de nuvens negras no seu horizonte”. Várias dúvidas me assaltaram e nenhuma tinha a
ver com a carga calórica dos coscorões. A primeira questão prendia-se com o
facto de, no dia em que comemoramos o nascimento do menino Jesus, aparecer o
primeiro ministro a falar ao país. Não sei se a ideia seria colar-se ao nascimento do salvador e ele próprio apanhar
essa onda deixando no ar a imagem de que também nasceu o redentor económico
“sabem, eu não tive uma vaquinha nem um burrinho para me aconchegar o berço,
mas tive uns tipos do banco central europeu muito simpáticos que me deram
aconchego nos momentos em que eu mais precisei; esses e os chineses que nos
compraram a energia; esses e os brasileiros que nos compraram e venderam as
comunicações aos franceses; esses e outros que não sabemos bem quem, a que
entregámos os correios” . Nasce assim,
Passos como o salvador de todos os nossos pecados da gula, afastando o
espectro do terror e da falência. Por falar em falência, “Ó Passos, então e
aquela história do BES? Da solidez dos investimentos?” Da regulação fictícia do
Banco de Portugal?...” “Banco? Qual
banco?...hoje vim aqui falar de prosperidade!!!...já de propósito, para evitar
mal entendidos, troquei um banco de madeira por esta cadeira vermelha igual à que o pai natal
utiliza nos centros comerciais para
vender fotografias aos meninos que se conseguirem sentar ao seu colo.”.
Voltemos à
frase meteorológica lançada pelo primeiro ministro sobre a acumulação de nuvens
negras no horizonte. Um claro sinal de
que o tipo tem poderes maiores do que o malogrado Anthímio de Azevedo, que só
conseguia prever as baixas pressões para um período de 5 dias com alguma
segurança. Passos lança-se seguro para a certeza de uma baixa acumulação de
nuvens negras nos próximos tempos, ou seja, entre o dia de Natal e as eleições
legislativas. É d’homem! Ou antes, é d’homem poderoso! Ou melhor é d’homem
poderoso a puxar para o milagroso!
Trincamos o
peito do peru ao memo tempo que ouvimos a notícia de que a idade da reforma irá
aumentar para os 66 anos e 2 meses. Lembramo-nos da nuvem negra na fase dos
coscorões, engolimos o peru à pressa e começamos a fazer a nossa análise
introspectiva: “Grande mentiroso! Então
que tudo iria ser melhor; que faria um sol radioso e dá-nos a perspectiva de gozar
a reforma a trabalhar?” . “Disseste mentiroso? Não confundiste com poderoso e
milagroso? Pensa bem no “oso” que colocas no final do adjectivo.” Na verdade
Passos não mentiu, porque domina a metáfora meteorológica como ninguém. Lança a
redução da acumulação nuvens negras como uma coisa boa, sabendo que, para um
alentejano, assolado pela seca e falta de água, e ansioso por uma bela carrada
de chuva e negridão no horizonte, a redução das nuvens revela-se como uma má
notícia. A metáfora meteorológica não compromete; a nuvem pode ser má para um
minhoto ou boa para um algarvio. “Quem disse que as coisas iriam melhorar?...eu
só falei em nuvens negras, mais nada!”. Mais nada?...falou também que “Será o
primeiro Natal desde há muitos anos em que temos o futuro aberto diante de
nós.”. Aqui já ultrapassa a previsão meteorológica e entra no domínio do
consideravelmente estúpido. Talvez por um erro de sintaxe. O nosso futuro
sempre esteve aberto diante de nós; aberto e repleto de figuras, cujas
competências deveriam estar ao dispor do Instituto do Mar e da Atmosfera e
nunca aos comandos da complexa gestão de um país. Se tivesse dito “temos mais futuro aberto diante de nós”, a coisa já faria algum sentido; de facto
percebo que tenho cada vez mais
futuro a trabalhar, mesmo que para isso tenha de levar comigo as artroses e o
andarilho.
Acabei agora
de consultar a previsão meteorológica para
os próximos dias e fiquei a saber que não haverá nuvens no horizonte. Ufa,
ainda bem. Seremos brindados com um
fabuloso frio glaciar para testar as nossas adiposidades. Enquanto a nuvem não
vai e o frio não vem, vou continuar agarrado aos coscorões e ao peito de peru,
com a certeza de que só abrirei a televisão para conferir os números do
euromilhões, que desta vez me lembrei de fazer. Pode ser que o futuro se abra
perante nós com a nebulosidade adequada.