terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Geringonça Festiva

A indignação invadiu as hostes mais puritanas deste país ao saber-se o ministro das finanças Mário Centeno pediu uma borla de bilhetes, para o dérbi do Benfica/Porto na época passada. Quando questões éticas se levantam nesta associação “bola à borla” estimulando acesas discussões repudiando esse pedido especial, sinto que tenho obrigação de prestar solidariedade para o nosso pobre, quase pobrezinho Mário.
Comecemos pelo início. Quando pela primeira vez, o tal governo geringonça, eleito sem ser eleito, apresentou o “novo” timoneiro financeiro, tenho de confessar que pesquisei durante algum tempo promoções de voos baratos da Ryanair de ida para as ilhas caimão. Não existiam voos baratos; deixei-me estar. Avaliando o seu balbuciante discurso e sua imagem tristonha, quase sofrível, pensei que a coisa não iria longe e o naufrágio económico aconteceria bem antes de se poder apanhar qualquer tipo de avião, barco ou jangada para as ilhas caimão. Enorme equívoco. De repente, o país passou de um estado semi-comatoso, para uma festa de crescimento económico acompanhada de pandeiretas, tamborins e violões. Um fenómeno verdadeiramente enigmático, como, por detrás daquela expressão de pobre “Calimero” , o tipo se conseguiu revelar um mestre no samba da alta finança. Estávamos todos de tanga e no dia seguinte começámos a folhear catálogos da porshe e viagens à noruega. O tipo operou um milagre ao nível da crença. Fez-nos acreditar que tudo é possível; se até ele conseguiu chegar a ministro das finanças, quem somos nós para nos deixarmos abater. E a ideia base é a seguinte: “O meu amigo está impecável!”. Mas ó doutor as análises davam uma taxa de colesterol excessiva… “O meu amigo está impecável!”; e a hérnia inguinal que não me deixa levantar do sofá… “o meu amigo está impecááável!”;...e… as cataratas do meu olho esquerdo que me fazem confundir a Graciete com o ministro Mário Centeno?… “o meu amigo está impecável e a ver cada vez melhor!!!...”. O Senhor Alfredo saiu do consultório aos saltos, pronto para dar uma nova vida aos seus 85 anos e fazer maluqueiras com a sua Graciete. É o chamado efeito placebo; continua na mesma, mas acreditando que está extremamente melhor. No caso do nosso estado económico, estamos perante o efeito Centeno: continuamos a ganhar o mesmo, a perceber a magnitude sofrível do período entre dois vencimentos, no entanto estamos muito melhor, diríamos mesmo... impecáveis. Ai os preços aumentaram agora?… “com estes preços e esse ordenado o meu amigo está impecável!” . O “Efeito Centeno placebo” conseguiu ser passado até às empresas de rating que nos tiraram do lixo e nos deixaram ainda mais...impecáveis. Vai daí voltámos a comprar tudo em barda. Iphones baratos; jeeps a preço de amigo, casas em promoção, afinal são só 48 prestações de meio ordenado mensal. A dívida pública continua a aumentar?… “Ó meu amigo ...a dívida está impecável!”.

O reconhecimento da competência de Mário para a crença interna era óbvia, mas ele queria mais. Queria ser reconhecido no eurogrupo, se possível chegar a presidente. Mas ó Mário isso já é pedir demais. Uma coisa é fazeres o portuga acreditar que está impecável, outra é convenceres os tipos lá de cima que tu és impecável. Surgiu a ideia de génio dos bilhetes para o Benfica. Vou fazer ver àqueles tipos que consigo o impossível. Vou arranjar convites em lugares de luxo, para um jogo onde nem na cave do Madureira existem bilhetes e não vou pagar cheta. E ainda vou levar o meu filho comigo. Basta convencer o meu amigo Luís Filipe que ele é um tipo impecável. Eis o passaporte para a presidência do eurogrupo. Quem não quer um indivíduo desta envergadura; adepto do benfica, utilizador da cunha e praticante da borla. E a borla representa o patamar mais alto de qualquer sistema financeiro. Mais barato não há. Ainda por cima em lugares vipes com canapé de gambas incluído. Este tipo consegue gerir uma casa sem dificuldades. Mário, estamos convencidos; a presidência é tua! Agora só falta responderes a uma pequena questão retórica e o cargo é teu. Sabes alguma coisa da isenção (uma espécie de borla) da taxa de IMI do edifício propriedade dos filhos do teu amigo Luis Filipe atribuída uma semana depois desse fabuloso dérbi acompanhado do canapé de gambas? Epá eu não tenho nada a ver com isso, mas parece que o edifício é extremamente bonito e sobretudo está...impecável!  

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Um snap cheio de chama


Um dos piores exercícios que se pode fazer é o de tentar comunicar com alguém que tem um telemóvel na mão. Mergulhamos de cabeça numa conversa produtiva e o ouvinte retira-nos a piscina de 20 metros cheia de água e substitui por uma borracha insuflável de bebé com 50cm de líquido . Somos votados ao desprezo na parte em que iríamos discutir a génese do problema da corrupção, quando ele recebe um sinal de mensagem da Cláudia Sofia, que entrou em directo no Instagram a passear o cão pela trela. Enquanto ele cola o olhar no ecrã, tentamos disfarçar a importância da conversa, reduzindo progressivamente a intensidade do som expelido pela boca, até ao silêncio total ou ao assobio para o lado. Quando o cão da Cláudia Sofia acabar de fazer a sua necessidade na relva do parque, o nosso interlocutor já está disponível para voltar à conversa e lança um “estavas a dizer?….”. Apesar de nos apetecer mandá-lo ir cheirar de perto as fezes do cão da Cláudia Sofia, optamos por uma de duas opções : prosseguimos a conversa de forma inabalável como se o nosso relevante assunto não tivesse sido enxovalhado pelo cócó do Piruças, ou retiramo-nos educadamente com um “eu não estava a falar de nada muito relevante,...apenas da corrupção que invade a nossa sociedade actual e nos impede de aspirar a um desenvolvimento relevante...sua besta alienada pelas rotinas do cão da Cláudia Sofia!!!” .
A patologia do afogamento ininterrupto nas redes sociais mina qualquer tentativa de uma conversa mais prolongada, uma discussão mais fundamentada, uma troca de impressões mais aprofundada. Basta observar um jovem colado ao Instagram a correr de “gostos” toda a rapaziada que encontra no caminho . Numa primeira análise, esta correria “voyer” através do indicador deslizando no ecrã, poderia indiciar que estaríamos na presença de um ser com muito amor para dar. Quando perguntamos: - Sabes a quem é que colocaste o “gosto” e porque é que colocaste o “gosto”? Correremos o risco de ouvir: - Não! Mas isso interessa para alguma coisa?
Eis o fundamento da escolha criteriosa: “Não sei do que gosto, de quem gosto, porque gosto, mas sei que vou pelo... gosto”. A ideia é que o “amigo” ache que ele gosta mesmo, quando põe lá o “gosto”. Mas o “gosto” tem de ser rápido, na gáspia, se possível com um “double tap” , para se partir a abrir para o “gosto” seguinte. Qualquer frase que o amigo coloque no seu mural com mais de 20 palavras soa a um enfadonho e interminável romance de Vitor Hugo, porque existe ali à frente outro “amigo” para se piscar o coração da aceitação. As possibilidades de um Usain Bolt do “like” acabar de ler esta crónica até ao fim, está ao nível da possibilidade de Donald Trump conseguir ter algum discernimento na hora de pensar nos assuntos de política externa. A verborreia de “gostos” funciona como moeda de troca pelos “gostos” na minha fabulosa fotografia tirada junto ao mar com o casaco comprado na Pull & Bear. Veem?! Tenho 567 amigos que gostam do casaco verde de carapuço!...Fica-me mesmo bem. E a Joana, aquela boazona do São Mamede de Infesta, ainda comentou com um “Uiii, grande gato” e um “emoji” amarelo com 2 corações a piscar no lugar dos olhos.
A evolução das redes sociais vai no sentido de acelerar ainda mais essa correria em busca da meta, aproveitando para ir dando chapadas nas mãos dos “amigos” que se vão colocando ao longo do percurso. Aonde fica essa meta? Coincide mais ou menos com a altura em que o pai irritado grita: “Apaga já essa trampa a que estás ligado há quatro horas e vem aqui ajudar a colocar a loiça suja na máquina!!!” . Para evitar esse cenário apocalíptico de não se conseguir dar um fixe na mão de todos os amigos, tentou-se agilizar a coisa: Passou-se do Facebook (imagens e alguma conversa), para o instagram (avança-se logo para as fotos e que se lixe o paleio) e para o Twitter (sem imagens e com muito pouco paleio). Para um amigo que estende mais a mão ou pede um autógrafo no caminho, a coisa pára por momentos, numa breve mensagem no Whats app ou no Snapchat, mas um bocado a contragosto por esta perda de tempo apenas com uma pessoa. Apesar das chapadas parecerem ser dadas ao acaso, perdidas na fúria veloz da progressão, existe uma selecção implícita nas mãos em que se toca, que tem por base o pensamento altruísta “Ai este foi o gajo que não colocou “gosto” na minha foto esplêndida a trincar o cachorro quente nas festas da Louriceira? Então não leva “gosto” q’é p’ra’prender!!!”
A busca incessante de exposição e imposição aos outros operou uma mudança de paradigma nas rotinas diárias. A alteração de critério é visível. Hoje escolhe-se a pastelaria, não por ter a melhor bola de berlim com creme, mas a que possuiu a melhor rede Wi-fi; Decide-se o momento de surf de acordo, não na qualidade e magnitude das ondas, mas com a hora do dia, em que a luz na máquina fotográfica melhor realça o glúteo metido no fato de banho da Rip Curl; a viagem à Índia não é escolhida pela procura de novas culturas, mas na concretização da foto junto daquela casa grande, branca, muito gira, uma tal de Taj...qualquer coisa, que liga muito bem com o tom do casaco vermelho comprado na Zara.
Mandei o meu filho apagar o telemóvel e ele respondeu-me com um “Só um momento, que vou enviar um Snap para manter a “chama” acesa”…?... É uma tal “chama” da amizade virtual, alimentada pela foto que todos os dias envia para os 280 “amigos”; uma coisa verdadeiramente personalizada. No caso das nossas rotinas domésticas, a “chama” da loiça suja mantém-se acesa sempre que a metemos na máquina, pressionamos o botão e ela aparece lavada. Como tal, o Snap chat que enviei célere ao meu descendente foi “Ou apagas já essa...coisa, ou a “chama” voará para junto do canil dos nossos cães!...” Pode ser que eles aproveitem para fazer um directo das suas rotinas intestinais...no relvado da Cláudia Sofia.