O meu cachorro assume-se como uma máquina trituradora do bem estar doméstico. Os seus sentidos estão focados num processo de seleção criteriosa de quais os objectos que pode destruir, para que os donos fiquem verdadeiramente fulos. Tudo o que fuja ao osso de borracha, ao ursinho comprado no lidl em material próprio para ser roído e se direcione rumo aos apetrechos funcionais de uma casa, é o que dá verdadeiro prazer a este diabo disfarçado de cachorro. Uma verdadeira arma de destruição massiva à solta. Nada de útil foge às suas implacáveis mandíbulas. Quando roeu pela 3ª vez os cabos eléctricos que mantêm a corrente exterior da casa, veio novamente a questão fulcral à baila: Então, mas quando é que esta besta deste cachorro cresce e para de nos destruir o sossego? A resposta chegou há pouco. Ontem o meu cachorro levantou pela primeira vez a pata traseira para efetivar a sua mija matinal no canteiro. Fiquei feliz , mas sobretudo esperançoso. Surgiu no ar a ideia de que a urina lançada em arco fazia parte do ritual iniciático da entrada na idade adulta. A fronteira entre o cachorro e o cão; entre o Vândalo e o ajuizado. Nunca percebi bem essa prática urinária exclusiva dos machos. Uma espécie de exibicionismo canino, mostrando de forma despudorada ao mundo a sua genitália seguida da qualidade do repuxo por ela produzida. As fêmeas não têm nada disto. Não precisam de se exibir para se considerarem adultas. Continuam a fazer a sua mijoca rasteira, escondidinha. O macho deve ter herdado essa necessidade de ostentação dos pavões. Não se limitam a mijar baixinho; definem alvos mais arrojados, como o topo dum pneu ,uma porta de sacada, um lençol no estendal. Mas nada disso interessa agora. O que interessa é que o meu cão já não é cachorro. Já mija em arco, logo , já não me vai roer os fios elétricos da casa ou os ténis de corrida que me custaram os olhos da cara. Vinha eu a assimilar de forma prazerosa essa sensação de alívio, quando o meu cão se dirigiu à vedação para socializar com os cães vizinhos. Cheirou, levantou a pata traseira e lançou o seu repuxo pujante de idade adulta diretamente para o focinho do seu amigo canídeo, que ficou perplexo com tamanha desfaçatez. Senti qualquer coisa ali que não batia certo na minha teoria associativa Mijoca em arco/Sensatez. À cautela, não fosse a minha divagação antropológica estar errada, apanhei os lençóis do estendal, guardei os ténis em casa e construi um bunker para os cabos elétricos. Liguei a TV e dei de caras com a novela partidária da hipotética aprovação do orçamento de estado. Anda tudo à lapada naquele parlamento. Da esquerda à direita, ninguém se entende. Tudo a mijar de alto no focinho do vizinho. Um espetáculo deprimente de toda aquela malta em idade adulta, a pensar no seu recreio partidário, entre joguinhos do lenço e da cabra cega, vão congeminando a melhor forma de se safar nas eleições antecipadas que se avizinham. Na ilusão criada de que o nosso sistema político poderia ter entrado numa fase de sensatez adulta e ponderada de serviço público, eis que se colocam todos de genitália ao léu a mostrar quem consegue produzir o melhor e mais arqueado repuxo, se possível fazendo danos no murete do quintal do lado. Depois de uma noite de sono, verifiquei que o meu cão adulto, aquele macho de mija pujante arqueada, tinha-se entretido, durante a noite, a dar cabo do sistema de rega gota-a-gota do meu pomar. Olhou para mim com um tubo de plástico a sair pela dentição, com uma expressão clara de quem está à espera, para perceber se o que vai acontecer ao orçamento de estado, se assemelha ao destino daquele objeto preso na sua mandíbula.