Vinha a ouvir no rádio do carro a rubrica “Eu é que sei!”. A ideia passa por lançar
perguntas às crianças para elas opinarem sobre o que pensam de cada temática.
Eu é que sei …. “O que é um estetoscópio”, “ porque há pessoas boas e más”, “porque
as pessoas usam malas”, “porque é que as aranhas têm 8 olhos” , “O que é um
pirilampo”, “para que serve a manete de mudanças” . Questões de elevada
relevância, às quais a criançada responde com toda a certeza sobre as suas
evidentes incertezas. À pergunta de
“Quais são os teus direitos?” o miúdo responde “ Direito de comer alguma coisa
boa, mas gosto mais de brincar com as Nerfs”(?). Ainda atordoado com as
desarmantes respostas, fui almoçar integrado num grupo numeroso e ali entre a
sopa de coentros e o bacalhau com natas ouvi ,
saído de um dos cantos da mesa, um sonoro: “cala-te lá, eu é que sei!”. Espera aí, será
que a rubrica da rádio entrou no nosso almoço? Espreitei para ver quem lançou
essa certeza, à espera de ver um miúdo a falar com propriedade do tema “o que é uma chiclete?” e verifiquei
que se tratava de um calmeirão de fato e gravata. Falou muito, mesmo muito. A defesa da sua
ideia estava a ser extensa e intensa. Esbracejava de forma emotiva como se de
uma apresentação de tese de doutoramento se tratasse e, sempre que alguém se
preparava para entrar na contenda, ouvia: “espera aí que não terminei!”. E se
aquilo demorou tempo a terminar. Quando finalmente veio a conta lá o tipo se
calou (a conta costuma despertar uma certa letargia). A
praga do “Eu é que sei” instalou-se nas sociedades atuais e veio para ficar. A
contundência do “Eu é que sei” não dá
margem de manobra ao outro de ripostar. O “Eu é que” atribui um regime de
exclusividade do conhecimento; mais ninguém sabe o que eu sei, por que Eu É que
sei. O inabalável saber extermina a
hipótese de saber do outro. E não
confundir o “Eu é que sei” com o “Eu acho que sei”. O segundo coloca a hipótese
de poder não saber, o primeiro sabe que não existe hipótese de não saber; Acha
que caiu dentro de um caldeirão cheio de enciclopédias Larousse quando era
pequenino e já não precisa de ler mais nenhuma página. A rubrica da rádio é adequada por revelar uma situação bem
atual. Temos as escolas cheias de miúdos “Eu é que sei”, mesmo antes de saberem
coisa alguma . Miúdos, cujo ego foi
sendo insuflado ao longo da sua curta
vida, e cujo pico de sobranceria
descamba no “Eu é que sei” . A criança é
que sabe, porque o adulto lhe foi dizendo, de forma sucessiva “não queres comer a sopa? Tu é que sabes.”;
“queres fazer birra quando não te compramos o Kinder? tu é que sabes.”; “não
gostas de emprestar brinquedos ao Zéquinha? Tu é que sabes.” “não queres arrumar a loiça do jantar? Tu é
que sabes.”, “queres ir apanhar uma piela com os amigos? Tu é que sabes.”,
“achas que a professora de Filosofia é uma chata? Tu é que sabes.”, “queres
estar o dia inteiro em frente ao telemóvel? Tu é que sabes.”. E a criança ficou mesmo a saber tudo com
extrema propriedade.
A versão “Eu já sei” é uma
variante do “Eu é que sei” menos
agressiva e absolutista. No “Eu já sei”, não elimino o conhecimento do outro,
apenas igualo. “A função quadrática da matemática? Ó stora, escusa de explicar
mais porque eu já sei essa treta toda!”. No “Eu é que sei”, se o resultado da função trigonométrica não for o
esperado, a única hipótese recai sobre o evidente erro da Stora a
corrigir tão imaculada solução. O “Eu é que sei” acredita nas suas próprias soluções. No entanto, algumas vezes (raras), a verdade
absoluta do “Eu é que sei” esbarra em fontes de conhecimento difíceis de contestar.
Ao discutir futebol com um Mourinho, Culinária com um Avilez ou importação de
café com um Nabeiro, o “Eu é que sei” transforma-se em “Esta análise vem
corroborar o que eu já aplicava há algum tempo!”. O professor catedrático
instalado no interior do seu ego, impede-o de admitir “Oh Mourinho, esse plano
de treino táctico é fabuloso, nunca tinha pensado nisso!”
Vamo-nos cruzando no nosso
quotidiano com muitos “Eu é que sei”, sejam eles crianças, jovens ou adultos.
Malta enclausurada no seu hermético
conhecimento, com alguma carência nos sistemas de recepção de
informação e grande fluência nos sistemas de expulsão de bitaites; ouvem pouco,
falam muito; sabem pouco, acham muito.
Pesquisei de novo a rubrica da
rádio “Eu é que sei” e encontrei a pergunta “De que cor é o cavalo branco de
napoleão?”. Queria uma fácil, uma que não desse azo aos mais proeminentes “Eu é
que sei” de se espalharem ao comprido. Entre as várias respostas dadas pelos
miúdos, passou-se por todas as cores do arco-íris, do amarelo ao preto, até se
chegar ao António que disse de forma contundente: “se o cavalo é branco, é branco.
Qual é a dúvida?”. Parece que a coisa terminou no recreio da escola, com o
Samuel a apertar os colarinhos ao António, gritando: “Oh seu grande ignorante,
então não sabes que o cavalo branco do Napoleão é Lilás, pá!?”
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