Hoje telefonei para a pizzaria a encomendar o almoço. Apetecia-me
comida italiana, mas sobretudo não me apetecia cozinhar. Meti-me no carro para ir buscar a massa “al prosciutto”
que ia cair que nem gingas num estômago a salivar de fome. Entrei de rompante
no restaurante e vislumbrei , na minha direção, uma funcionária com cara de
poucos amigos, deslocando-se com uma
desenvoltura ao nível de qualquer atleta olímpica. Ao mesmo tempo que lançava a
palma da mão apontada para mim, dizia de forma acutilante: “Espere aí!!!Tem o
certificado?”. Eu respondi: “Não! Vim só buscar a minha massa al Prosciutto!?...”
. Então tem de esperar lá fora. E foi com a moleirinha ao sol que percebi como funciona
isto da segregação vacinal. Deixei-me estar ali a absorver a vitamina D e a
observar o procedimento logístico da coisa. Seguiu-se um casal e lá estava a
zelosa funcionária com a palma da mão encostada ao nariz do senhor…”tem o
certificado?” . Após uma breve pausa, o senhor sacou orgulhosamente o telemóvel com o código do tal bilhete da lotaria que lhe
abria as portas ao ar condicionado do estabelecimento. Por momentos até pensei
sentir um olhar trocista pelo canto do olho para o tipo sem certificação válida
que estava ali a torrar ao sol. Mas foi só impressão. Seguiu-se uma senhora com
a filha. A funcionária está treinada para não deixar ninguém passar de forma
incólume; tem os skills de qualquer cabo num regimento de comandos. Ou o
cliente apresenta essa coisa ou leva ali com 50 flexões à torreira do sol. E,
naquele caso, deu-se a híbrida situação da senhora ter o documento de pureza e
a filha não. Pela cara da funcionária,
ainda ponderou colocar a mãe a comer a pizza vegetariana lá dentro e a filha
contentar-se com o risotto cá fora, mas teve a lucidez de encontrar a solução
ideal. Vão as duas ali para o único lugar vago na esplanada que fica um
bocadinho ao sol. A escolha do lugar à sombra? Parece óbvio. A mãe fica à
sombra, a filha que não tem o papel, fica ao alcance da vitamina D que parece
criar defesas a quem ainda não levou a pica milagrosa. Antes de receber a minha
“al prosciutto” e de dizer à funcionária que não voltaria ali, lancei um olhar
panorâmico a toda aquela malta que se deliciava a trincar o esparguete à
bolonhesa, aconchegada pelo fresquinho do ar condicionado, sem denotar qualquer laivo de incómodo sobre
todo este absurdo. Um amigo comentava
comigo no outro dia que tinha vacina marcada para poder ir de férias para o hotel
em Monte Gordo que tinha uma esplêndida piscina. O que me incomoda em tudo isto é a conivência
coletiva perante esta aberração civilizacional. A aberração que nos empurra a
todos para a única opção devidamente certificada que nos permite entrar em restaurantes,
em hotéis, em espetáculos e, a curto trecho, nos transportes públicos e lojas
de bens essenciais. Todos são coniventes nesta hora: Os partidos da “oposição”
por não fazerem oposição a esta completa imbecilidade, os utilizadores
certificados por comerem o seu risotto e olharem com normalidade para o tipo
que ficou à porta; o tipo que ficou à porta, à espera do seu “al prosciutto” a
pensar na palma da mão da funcionária zelosa; a funcionária zelosa pelo desejo
de espetar a zaragatoa no nariz do cliente quando esse não se contentou com a
palma da mão; o dono do restaurante por, apesar de ter de sair da situação
económica calamitosa em que se encontra,
embarcar nesta regra subversiva. O sucesso da vacinação vai assim correr de
forma célere, porque toda a rapaziada tem planos de férias e não quer
restrições aos seus mergulhos nas esplêndidas piscinas de hotel ou no acesso à
sardinhada de Portimão. Com sorte, aparecerá aqui em baixo, aquele retângulo “visita
o Covid-19 centro de informação sobre as vacinas” , onde deverão poder
pesquisar ofertas dos melhores hotéis e
restaurantes para os devidamente certificado, enquanto permanecerem dentro da
validade. No meu caso, a custo, terei de adiar as tais férias de sonho no hotel
Pestana do Funchal em frente ao mar e descobrir onde guardei a receita da massa
“al prosciutto”.
domingo, 8 de agosto de 2021
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