quinta-feira, 17 de outubro de 2024

O meu cão já levanta a pata

   


 
O meu cachorro assume-se como uma máquina trituradora do bem estar doméstico. Os seus sentidos estão focados num processo de seleção criteriosa de quais os objectos que pode destruir, para que os donos fiquem verdadeiramente fulos. Tudo o que fuja ao osso de borracha, ao ursinho comprado no lidl em material próprio para ser roído e se direcione rumo aos apetrechos funcionais de uma casa, é o que dá verdadeiro prazer a este diabo disfarçado de cachorro. Uma verdadeira arma de destruição massiva à solta. Nada de útil foge às suas implacáveis mandíbulas. Quando roeu pela 3ª vez os cabos eléctricos que mantêm a corrente exterior da casa, veio novamente a questão fulcral à baila: Então, mas quando é que esta besta deste cachorro cresce e para de nos destruir o sossego? A resposta chegou há pouco. Ontem o meu cachorro levantou pela primeira vez a pata traseira para efetivar a sua mija matinal no canteiro. Fiquei feliz , mas sobretudo esperançoso. Surgiu no ar a ideia de que a urina lançada em arco fazia parte do ritual iniciático da entrada na idade adulta. A fronteira entre o cachorro e o cão; entre o Vândalo e o ajuizado.  Nunca percebi bem essa prática urinária  exclusiva dos machos. Uma espécie de exibicionismo canino, mostrando de forma despudorada ao mundo a sua genitália seguida da qualidade do repuxo por ela produzida. As fêmeas não têm nada disto. Não precisam de se exibir para se considerarem adultas. Continuam a fazer a sua mijoca rasteira, escondidinha. O macho deve ter herdado essa necessidade de ostentação dos pavões. Não se limitam a mijar baixinho; definem alvos mais arrojados, como o topo dum pneu ,uma porta de sacada, um lençol no estendal. Mas nada disso interessa agora. O que interessa é que o meu cão já não é cachorro. Já mija em arco, logo , já não me vai roer os fios elétricos da casa ou os ténis de corrida que me custaram os olhos da cara. Vinha eu a assimilar de forma prazerosa essa sensação de alívio, quando o meu cão se dirigiu à vedação para socializar com os cães vizinhos. Cheirou, levantou a pata traseira e lançou o seu repuxo pujante de idade adulta diretamente para o focinho do seu amigo canídeo, que ficou perplexo com tamanha desfaçatez. Senti qualquer coisa ali que não batia certo na minha teoria associativa Mijoca em arco/Sensatez. À cautela, não fosse a minha divagação antropológica estar errada, apanhei os lençóis do estendal, guardei os ténis em casa e construi um bunker para os cabos elétricos.  Liguei a TV e dei de caras com a novela partidária da hipotética aprovação do orçamento de estado. Anda tudo à lapada naquele parlamento. Da esquerda à direita, ninguém se entende. Tudo a mijar de alto no focinho do vizinho. Um espetáculo deprimente de toda aquela malta em idade adulta, a pensar no seu recreio partidário, entre joguinhos do lenço e da cabra cega, vão congeminando a melhor forma de se safar nas eleições antecipadas que se avizinham. Na ilusão criada de que o nosso sistema político poderia ter entrado numa fase de sensatez adulta e ponderada de serviço público, eis que se colocam todos de genitália ao léu a mostrar quem consegue produzir o melhor e mais arqueado repuxo, se possível fazendo danos no murete do quintal do lado. Depois de uma noite de sono, verifiquei que o meu cão adulto, aquele macho de mija pujante arqueada, tinha-se entretido,  durante a noite, a dar cabo do sistema de rega gota-a-gota do meu pomar. Olhou para mim com um tubo de plástico a sair pela dentição, com uma expressão clara de quem está à espera, para perceber se o que vai acontecer ao orçamento de estado, se assemelha ao destino daquele objeto preso na sua mandíbula.  

sábado, 7 de setembro de 2024

Parir em sossego

Está difícil parir em Portugal. Hoje voltei a ouvir a história de uma grávida que andou 10 horas dentro de uma ambulância em busca de um local para dar à luz. A primeira ideia que nos vem à cabeça é a de que uma mãe deveria poder parir sem sobressaltos e o recém nascido deveria poder meter a cabeça de fora quando chegasse a sua hora biológica de abraçar o mundo.  Não sei se um dos indicadores do desenvolvimento social será a possibilidade de se parir descansadinho. Afinal é o início de tudo. 10 horas aos saltos numa ambulância não augura nada de bom como ponto de partida. Fui descobrir os países com maior taxa de natalidade. Níger, Mali e Uganda é onde se nasce com mais facilidade, mas também dos locais onde se vive pior.  O bébé ugandês  mete a cabeça de fora e fica com vontade de voltar lá para dentro, não vá levar logo com uma metralhadora nas mãos e ser recrutado para as fileiras da resistência. Será que a dificuldade de se parir em Portugal não é fruto do acaso, mas do desenvolvimento? Aguentas aí umas horas aos saltos entre 3 maternidades que estão fechadas, mas quando chegar o momento, tudo será esplendoroso. Como num restaurante de qualidade; a confeção demora algum tempo a ser produzida, mas depois, é o deleite. Isto aqui não é às três pancadas como no Uganda. Forrobodó, reproduzir, parir debaixo da bananeira e toca a andar. Uma espécie de fast food dos partos. Nos países (extremamente) desenvolvidos tudo tem o seu tempo de preparação: Reproduzir com grande ponderação (hipotecas, balanço financeiro, perspetiva de futuro, custo dos manuais escolares), Parir com muita calma e segurança, saída da criança com um sorriso à procura da chupeta, do berço em tons de azul bébé e do meio caloroso que irá encontrar. O único problema neste parto gourmet será tentar convencer a grávida, que continua  aos pontapés no desfibrilhador da ambulância, a esperar pela altura ideal, coincidindo a mesma com a descoberta de um hospital aberto para partos num raio de 300 km. Vendo este panorama da “hipotética” dificuldade em parir por outro prisma mais estratégico, a coisa tem a sua razão de ser. A da seleção natural. Só os mais aptos  e corajosos se propõem à aventura de parir em Portugal. Reduzindo drasticamente a população com vontade de entrar nesse desafio. Num país de pequena dimensão, o controlo da natalidade poderá ser útil, até para garantir que a taxa de desemprego se mantenha estável (até porque os Ubers só aceitam Nepaleses que também nascem à bruta). Por outro lado, o parto tardio desenvolve no novo ser competências ao nível da disciplina e da resiliência.  Queres sair à pressa meu malandro? Espera aí que só sais quando eu disser! Aqui não há a rebaldaria da casa de teu amigo Isaías que sai à hora que quer, chega à hora que quer, e já anda com más companhias a fumar marijuana!  Aqui, ao fim de semana, não sais e quem define as regras de saída sou eu…, ou antes,…a ginecologista do Hospital de Santiago do Cacém, que por agora se encontra de férias com a família no resort da praia dos Salgados.  O cachopo quando sair , já vem munido dessas úteis ferramentas: da paciência de se manter quieto quando lhe apetecer sair disparado; de se conseguir manter calmo quando apanhar um Uber no aeroporto de Lisboa e ter de falar inglês;  de permanecer sorridente quando lhe disserem o valor das rendas das cidades universitárias.  A espera forçada para vir ao mundo também poderá ter um cunho de relativização na positividade. Ao cliente do restaurante Gourmet , depois de uma longa espera para trincar a sua iguaria, toda a trinca de atum que lhe servirem saberá ao melhor arroz de marisco  da  Nazaré. No caso do bébé que nascer depois das 10 horas de solavancos na ambulância e de pensar “Ó Mãe tu já parias, não?, Já estou farto da placenta aqui à frente dos olhos, dos teus pontapés no desfibrilhador e do tipo a dizer para ter calma que estamos quase a chegar ao 3º hospital!” , qualquer cenário que apareça, quando finalmente sair, será a melhor trinca de atum do mundo.  A criança portuguesa tem assim tudo para ser feliz.  A estratégia de se parir em desassossego tem tudo para dar certo. A única aresta que falta limar nesse sistema infalível é a porra do desfibrilhador que está ali ao pé de semear da grávida impaciente.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

O Brilho da Geração Tik-tok

 

Falava na TV um especialista em educação , daqueles mesmo especialistas, dos catedráticos que ensinam nas melhores universidades que concebem as ideias gerais das  práticas pedagógicas de topo. Dizia ele que os alunos não estão atentos nas aulas porque as matérias não lhes dizem grande coisa e que a forma de ensinar também é enfadonha e pouco apelativa.   Reforçava que um professor brilhante, conseguiria facilmente manter o foco dos alunos nos conteúdos da aula. Fiquei triste. Percebi que no grau de brilhantismo docente, a avaliar pelo nível de atenção da malta durante as fases expositivas da aula, me encontro entre a chuva de Edimburgo e o nevoeiro de York. Fico sempre com a sensação de que a percentagem de miúdos que está verdadeiramente atenta, se encontra ao nível da descida do preço do gasóleo na próxima semana. Perguntam-me que disciplina ensino e eu respondo: Educação Física…!?? É verdade, não ensino as teorias platônicas do conhecimento de Descartes; não disserto sobre as obras literárias de Dostoiévski; não tento explicar os logaritmos. Fico-me pela rudimentar, curta e pouco apelativa explicação de princípios da atividade física desportiva.  “Ó profe explique-me lá para onde eu tenho de correr, depois de bater com o taco na bola!?”.  “Ó Xico acabei de explicar a ordem das bases, quando estavas a falar com a Carina sobre a tatuagem do Rafa”.   O especialista da educação, daqueles mesmo especialistas, tem razão.  A  malta precisa de um professor brilhante, daqueles mesmo brilhantes, a reluzir, na linha do “algodão não engana”.  Aliás, eu iria mais longe: a malta precisa de vários professores brilhantes na mesma aula; um não chega. Um esgota-se rápido. A aula tem de começar com um professor em versão standup comedy estilo brejeiro; seguir para a personagem DJ El Diablo; passar por um número de  ilusionismo da libertação de correntes num tanque cheio de água com crocodilos e terminar a aula de forma apoteótica com um número de cuspidela de chamas, se possível ardendo parte da sala. Mesmo assim, o Xico ainda poderia mostrar a sua insatisfação “Ó profe então é só isso? Nem um truquezito com facas, nem meter a cabeça dentro da boca de um leão?” . A geração  Tik-Tok precisa urgentemente de professores brilhantes e divertidos; não destes velhos decrépitos com a ideia mirabolante de nos quererem transmitir conhecimento e acharem, vejam lá, que o conhecimento só se adquire com silêncio auditivo e mental. Os miúdos já têm todo o conhecimento e à distância de 2 polegares. E quando falamos urgentemente, é mesmo urgente. Não é por acaso que o Termo TIK-Tok lembra o barulho dos ponteiros de um relógio. O Tempo desta geração passa rápido, a abrir, a acelerar, na mecha, com pouca margem para pensar.  As imagens  no instagram ou tiktok  deslizam a este ritmo frenético: O biquíni da Sandra, os abdominais do Leandro, as férias da Carlota, a dança da Bibi, a bebedeira do Tozé, o golo do Ronaldo, as malas da Georgina. A avidez pela informação descartável é ininterrupta. Duas horas em frente das Storys do Insta passam a correr; 45 min numa aula de Português é um suplício. Não há forma do Professor de Matemática competir com os seus teoremas de Pitágoras perante as leggings justas da tipa do TikTok. A não ser claro, se for brilhante, muito brilhante e muitas vezes brilhante e tentar colocar as suas próprias adiposidades  dentro de umas leggings justinhas.

Hoje a meio de uma aula de Voleibol, um aluno perguntou-me se a aula era só aquilo. Ao responder-lhe que sim, que era só “aquilo” , penitenciei-me por não ser o tal professor brilhante multifunções de que ele precisaria.  Os especialistas da educação, aqueles mesmo especialistas, acham que falta, para além da excelência de professores, o currículo adaptado às apetências  dos alunos.  Serão eles que sabem o que querem aprender na sua volatilidade existencial. Está correto. Aliás, a ideia brilhante da flexibilidade curricular, apregoada por todos os arautos da educação vem daí. Os alunos constroem o seu próprio projeto ao longo do ano. Mas e se os alunos não estiverem com muita vontade de construir projetos?...o Diretor de turma constrói por eles e a turma faz um figuraço, juntamente com os especialistas em educação, que se desdobram em congressos a explicar as boas práticas que são aplicadas em escolas brilhantes. 

Não sou especialista em educação, daqueles mesmo especialistas. Sou um professor pouco brilhante há 35 anos, daqueles que tentam ensinar alguma coisa a 150 alunos por ano. Penso que posso deixar aqui uma nota aos especialistas da educação, daqueles mesmo especialistas:  Vão Pentear Macacos! Com as vossas fabulosas teorias, construídas nos gabinetes, conseguiram transformar a sala de aula num espaço de lazer, que navega ao sabor da vontade de alunos pouco habituados às frustrações da vida, pouco disponíveis para desafios a sério, sentados  nas competências digitais e estimulando a incompetência intelectual  ao som do ruído permanente. Criaram a ilusão de que a aprendizagem tem de ser prazerosa, que o aluno pode ir descobrindo os conhecimentos de forma autónoma, sem condicionalismos. Que é do caos que sai a bonança e a criação. Posso deixar aqui mais uma nota: Vão bardamerda! Mas não me levem a mal por esta linguagem. Afinal eu sou apenas um professor pouco brilhante e como tal, pouco polido. Daqueles professores das cavernas que acha que a educação/ensino se constrói em cima de regras claras, definidas pelos professores, não pelos alunos; que a exigência, a dificuldade, o desafio e a árdua superação do insucesso são motores fulcrais para um crescimento equilibrado; que a aprendizagem necessita de foco, não de dispersão. Será nesta brilhante bandalheira flexibilizada que os nossos jovens crescerão a saber pouco, a fazer pouco e a interessar-se por pouco, muito pouco. Quanto aos especialistas da educação, daqueles mesmo especialistas, chegou a hora de finalmente arregaçarem as mangas e virem aterrar a uma qualquer sala de aula com 25 alunos do 8º ano. Suprem a falta de professores brilhantes e podem implementar as vossas teorias educativas de forma reluzente. Para começar podem acompanhá-los a uma peça de teatro ou uma qualquer conferência, daquelas que não têm um tipo a colocar a cabeça dentro da boca de um leão…