quinta-feira, 17 de outubro de 2024

O meu cão já levanta a pata

   


 
O meu cachorro assume-se como uma máquina trituradora do bem estar doméstico. Os seus sentidos estão focados num processo de seleção criteriosa de quais os objectos que pode destruir, para que os donos fiquem verdadeiramente fulos. Tudo o que fuja ao osso de borracha, ao ursinho comprado no lidl em material próprio para ser roído e se direcione rumo aos apetrechos funcionais de uma casa, é o que dá verdadeiro prazer a este diabo disfarçado de cachorro. Uma verdadeira arma de destruição massiva à solta. Nada de útil foge às suas implacáveis mandíbulas. Quando roeu pela 3ª vez os cabos eléctricos que mantêm a corrente exterior da casa, veio novamente a questão fulcral à baila: Então, mas quando é que esta besta deste cachorro cresce e para de nos destruir o sossego? A resposta chegou há pouco. Ontem o meu cachorro levantou pela primeira vez a pata traseira para efetivar a sua mija matinal no canteiro. Fiquei feliz , mas sobretudo esperançoso. Surgiu no ar a ideia de que a urina lançada em arco fazia parte do ritual iniciático da entrada na idade adulta. A fronteira entre o cachorro e o cão; entre o Vândalo e o ajuizado.  Nunca percebi bem essa prática urinária  exclusiva dos machos. Uma espécie de exibicionismo canino, mostrando de forma despudorada ao mundo a sua genitália seguida da qualidade do repuxo por ela produzida. As fêmeas não têm nada disto. Não precisam de se exibir para se considerarem adultas. Continuam a fazer a sua mijoca rasteira, escondidinha. O macho deve ter herdado essa necessidade de ostentação dos pavões. Não se limitam a mijar baixinho; definem alvos mais arrojados, como o topo dum pneu ,uma porta de sacada, um lençol no estendal. Mas nada disso interessa agora. O que interessa é que o meu cão já não é cachorro. Já mija em arco, logo , já não me vai roer os fios elétricos da casa ou os ténis de corrida que me custaram os olhos da cara. Vinha eu a assimilar de forma prazerosa essa sensação de alívio, quando o meu cão se dirigiu à vedação para socializar com os cães vizinhos. Cheirou, levantou a pata traseira e lançou o seu repuxo pujante de idade adulta diretamente para o focinho do seu amigo canídeo, que ficou perplexo com tamanha desfaçatez. Senti qualquer coisa ali que não batia certo na minha teoria associativa Mijoca em arco/Sensatez. À cautela, não fosse a minha divagação antropológica estar errada, apanhei os lençóis do estendal, guardei os ténis em casa e construi um bunker para os cabos elétricos.  Liguei a TV e dei de caras com a novela partidária da hipotética aprovação do orçamento de estado. Anda tudo à lapada naquele parlamento. Da esquerda à direita, ninguém se entende. Tudo a mijar de alto no focinho do vizinho. Um espetáculo deprimente de toda aquela malta em idade adulta, a pensar no seu recreio partidário, entre joguinhos do lenço e da cabra cega, vão congeminando a melhor forma de se safar nas eleições antecipadas que se avizinham. Na ilusão criada de que o nosso sistema político poderia ter entrado numa fase de sensatez adulta e ponderada de serviço público, eis que se colocam todos de genitália ao léu a mostrar quem consegue produzir o melhor e mais arqueado repuxo, se possível fazendo danos no murete do quintal do lado. Depois de uma noite de sono, verifiquei que o meu cão adulto, aquele macho de mija pujante arqueada, tinha-se entretido,  durante a noite, a dar cabo do sistema de rega gota-a-gota do meu pomar. Olhou para mim com um tubo de plástico a sair pela dentição, com uma expressão clara de quem está à espera, para perceber se o que vai acontecer ao orçamento de estado, se assemelha ao destino daquele objeto preso na sua mandíbula.  

sábado, 7 de setembro de 2024

Parir em sossego

Está difícil parir em Portugal. Hoje voltei a ouvir a história de uma grávida que andou 10 horas dentro de uma ambulância em busca de um local para dar à luz. A primeira ideia que nos vem à cabeça é a de que uma mãe deveria poder parir sem sobressaltos e o recém nascido deveria poder meter a cabeça de fora quando chegasse a sua hora biológica de abraçar o mundo.  Não sei se um dos indicadores do desenvolvimento social será a possibilidade de se parir descansadinho. Afinal é o início de tudo. 10 horas aos saltos numa ambulância não augura nada de bom como ponto de partida. Fui descobrir os países com maior taxa de natalidade. Níger, Mali e Uganda é onde se nasce com mais facilidade, mas também dos locais onde se vive pior.  O bébé ugandês  mete a cabeça de fora e fica com vontade de voltar lá para dentro, não vá levar logo com uma metralhadora nas mãos e ser recrutado para as fileiras da resistência. Será que a dificuldade de se parir em Portugal não é fruto do acaso, mas do desenvolvimento? Aguentas aí umas horas aos saltos entre 3 maternidades que estão fechadas, mas quando chegar o momento, tudo será esplendoroso. Como num restaurante de qualidade; a confeção demora algum tempo a ser produzida, mas depois, é o deleite. Isto aqui não é às três pancadas como no Uganda. Forrobodó, reproduzir, parir debaixo da bananeira e toca a andar. Uma espécie de fast food dos partos. Nos países (extremamente) desenvolvidos tudo tem o seu tempo de preparação: Reproduzir com grande ponderação (hipotecas, balanço financeiro, perspetiva de futuro, custo dos manuais escolares), Parir com muita calma e segurança, saída da criança com um sorriso à procura da chupeta, do berço em tons de azul bébé e do meio caloroso que irá encontrar. O único problema neste parto gourmet será tentar convencer a grávida, que continua  aos pontapés no desfibrilhador da ambulância, a esperar pela altura ideal, coincidindo a mesma com a descoberta de um hospital aberto para partos num raio de 300 km. Vendo este panorama da “hipotética” dificuldade em parir por outro prisma mais estratégico, a coisa tem a sua razão de ser. A da seleção natural. Só os mais aptos  e corajosos se propõem à aventura de parir em Portugal. Reduzindo drasticamente a população com vontade de entrar nesse desafio. Num país de pequena dimensão, o controlo da natalidade poderá ser útil, até para garantir que a taxa de desemprego se mantenha estável (até porque os Ubers só aceitam Nepaleses que também nascem à bruta). Por outro lado, o parto tardio desenvolve no novo ser competências ao nível da disciplina e da resiliência.  Queres sair à pressa meu malandro? Espera aí que só sais quando eu disser! Aqui não há a rebaldaria da casa de teu amigo Isaías que sai à hora que quer, chega à hora que quer, e já anda com más companhias a fumar marijuana!  Aqui, ao fim de semana, não sais e quem define as regras de saída sou eu…, ou antes,…a ginecologista do Hospital de Santiago do Cacém, que por agora se encontra de férias com a família no resort da praia dos Salgados.  O cachopo quando sair , já vem munido dessas úteis ferramentas: da paciência de se manter quieto quando lhe apetecer sair disparado; de se conseguir manter calmo quando apanhar um Uber no aeroporto de Lisboa e ter de falar inglês;  de permanecer sorridente quando lhe disserem o valor das rendas das cidades universitárias.  A espera forçada para vir ao mundo também poderá ter um cunho de relativização na positividade. Ao cliente do restaurante Gourmet , depois de uma longa espera para trincar a sua iguaria, toda a trinca de atum que lhe servirem saberá ao melhor arroz de marisco  da  Nazaré. No caso do bébé que nascer depois das 10 horas de solavancos na ambulância e de pensar “Ó Mãe tu já parias, não?, Já estou farto da placenta aqui à frente dos olhos, dos teus pontapés no desfibrilhador e do tipo a dizer para ter calma que estamos quase a chegar ao 3º hospital!” , qualquer cenário que apareça, quando finalmente sair, será a melhor trinca de atum do mundo.  A criança portuguesa tem assim tudo para ser feliz.  A estratégia de se parir em desassossego tem tudo para dar certo. A única aresta que falta limar nesse sistema infalível é a porra do desfibrilhador que está ali ao pé de semear da grávida impaciente.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

O Brilho da Geração Tik-tok

 

Falava na TV um especialista em educação , daqueles mesmo especialistas, dos catedráticos que ensinam nas melhores universidades que concebem as ideias gerais das  práticas pedagógicas de topo. Dizia ele que os alunos não estão atentos nas aulas porque as matérias não lhes dizem grande coisa e que a forma de ensinar também é enfadonha e pouco apelativa.   Reforçava que um professor brilhante, conseguiria facilmente manter o foco dos alunos nos conteúdos da aula. Fiquei triste. Percebi que no grau de brilhantismo docente, a avaliar pelo nível de atenção da malta durante as fases expositivas da aula, me encontro entre a chuva de Edimburgo e o nevoeiro de York. Fico sempre com a sensação de que a percentagem de miúdos que está verdadeiramente atenta, se encontra ao nível da descida do preço do gasóleo na próxima semana. Perguntam-me que disciplina ensino e eu respondo: Educação Física…!?? É verdade, não ensino as teorias platônicas do conhecimento de Descartes; não disserto sobre as obras literárias de Dostoiévski; não tento explicar os logaritmos. Fico-me pela rudimentar, curta e pouco apelativa explicação de princípios da atividade física desportiva.  “Ó profe explique-me lá para onde eu tenho de correr, depois de bater com o taco na bola!?”.  “Ó Xico acabei de explicar a ordem das bases, quando estavas a falar com a Carina sobre a tatuagem do Rafa”.   O especialista da educação, daqueles mesmo especialistas, tem razão.  A  malta precisa de um professor brilhante, daqueles mesmo brilhantes, a reluzir, na linha do “algodão não engana”.  Aliás, eu iria mais longe: a malta precisa de vários professores brilhantes na mesma aula; um não chega. Um esgota-se rápido. A aula tem de começar com um professor em versão standup comedy estilo brejeiro; seguir para a personagem DJ El Diablo; passar por um número de  ilusionismo da libertação de correntes num tanque cheio de água com crocodilos e terminar a aula de forma apoteótica com um número de cuspidela de chamas, se possível ardendo parte da sala. Mesmo assim, o Xico ainda poderia mostrar a sua insatisfação “Ó profe então é só isso? Nem um truquezito com facas, nem meter a cabeça dentro da boca de um leão?” . A geração  Tik-Tok precisa urgentemente de professores brilhantes e divertidos; não destes velhos decrépitos com a ideia mirabolante de nos quererem transmitir conhecimento e acharem, vejam lá, que o conhecimento só se adquire com silêncio auditivo e mental. Os miúdos já têm todo o conhecimento e à distância de 2 polegares. E quando falamos urgentemente, é mesmo urgente. Não é por acaso que o Termo TIK-Tok lembra o barulho dos ponteiros de um relógio. O Tempo desta geração passa rápido, a abrir, a acelerar, na mecha, com pouca margem para pensar.  As imagens  no instagram ou tiktok  deslizam a este ritmo frenético: O biquíni da Sandra, os abdominais do Leandro, as férias da Carlota, a dança da Bibi, a bebedeira do Tozé, o golo do Ronaldo, as malas da Georgina. A avidez pela informação descartável é ininterrupta. Duas horas em frente das Storys do Insta passam a correr; 45 min numa aula de Português é um suplício. Não há forma do Professor de Matemática competir com os seus teoremas de Pitágoras perante as leggings justas da tipa do TikTok. A não ser claro, se for brilhante, muito brilhante e muitas vezes brilhante e tentar colocar as suas próprias adiposidades  dentro de umas leggings justinhas.

Hoje a meio de uma aula de Voleibol, um aluno perguntou-me se a aula era só aquilo. Ao responder-lhe que sim, que era só “aquilo” , penitenciei-me por não ser o tal professor brilhante multifunções de que ele precisaria.  Os especialistas da educação, aqueles mesmo especialistas, acham que falta, para além da excelência de professores, o currículo adaptado às apetências  dos alunos.  Serão eles que sabem o que querem aprender na sua volatilidade existencial. Está correto. Aliás, a ideia brilhante da flexibilidade curricular, apregoada por todos os arautos da educação vem daí. Os alunos constroem o seu próprio projeto ao longo do ano. Mas e se os alunos não estiverem com muita vontade de construir projetos?...o Diretor de turma constrói por eles e a turma faz um figuraço, juntamente com os especialistas em educação, que se desdobram em congressos a explicar as boas práticas que são aplicadas em escolas brilhantes. 

Não sou especialista em educação, daqueles mesmo especialistas. Sou um professor pouco brilhante há 35 anos, daqueles que tentam ensinar alguma coisa a 150 alunos por ano. Penso que posso deixar aqui uma nota aos especialistas da educação, daqueles mesmo especialistas:  Vão Pentear Macacos! Com as vossas fabulosas teorias, construídas nos gabinetes, conseguiram transformar a sala de aula num espaço de lazer, que navega ao sabor da vontade de alunos pouco habituados às frustrações da vida, pouco disponíveis para desafios a sério, sentados  nas competências digitais e estimulando a incompetência intelectual  ao som do ruído permanente. Criaram a ilusão de que a aprendizagem tem de ser prazerosa, que o aluno pode ir descobrindo os conhecimentos de forma autónoma, sem condicionalismos. Que é do caos que sai a bonança e a criação. Posso deixar aqui mais uma nota: Vão bardamerda! Mas não me levem a mal por esta linguagem. Afinal eu sou apenas um professor pouco brilhante e como tal, pouco polido. Daqueles professores das cavernas que acha que a educação/ensino se constrói em cima de regras claras, definidas pelos professores, não pelos alunos; que a exigência, a dificuldade, o desafio e a árdua superação do insucesso são motores fulcrais para um crescimento equilibrado; que a aprendizagem necessita de foco, não de dispersão. Será nesta brilhante bandalheira flexibilizada que os nossos jovens crescerão a saber pouco, a fazer pouco e a interessar-se por pouco, muito pouco. Quanto aos especialistas da educação, daqueles mesmo especialistas, chegou a hora de finalmente arregaçarem as mangas e virem aterrar a uma qualquer sala de aula com 25 alunos do 8º ano. Suprem a falta de professores brilhantes e podem implementar as vossas teorias educativas de forma reluzente. Para começar podem acompanhá-los a uma peça de teatro ou uma qualquer conferência, daquelas que não têm um tipo a colocar a cabeça dentro da boca de um leão…


sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Alice no país dos catalisadores

 



Já é oficial. Vitor Macedo foi coroado como o Rei dos catalisadores. Depois de anos a desenvolver um trabalho árduo na procura deste título nobiliárquico, eis que surge o reconhecimento público pela sua vasta obra. Sabia de antemão que estaria em desvantagem, por não descender de nobres linhagens, mas não baixou os braços, meteu mãos à rebarbadora e finalmente foi recompensado. Especializou-se no ramo automóvel , mais especificamente na área dos catalisadores, desenvolvendo competências únicas na arte do gamanço dos mesmos. Criou a técnica inovadora LSGF (Levanta, Serra, Gama e Foge) , mas cedo percebeu que faltava aperfeiçoar o último skill. Depois de levantar o carro alheio com um macaco, de serrar o catalisador e apoderar-se dele em tempo recorde, coloca-se em fuga mas é frequentemente apanhado pela polícia. Curiosamente foi essa sua lacuna na técnica do “Foge” que o trouxe para as luzes da ribalta.   Desde Maio foi caçado pela polícia 6 vezes em fugas com contornos hollywoodescos em carros roubados e estampaços em contramão. Depois de levado a tribunal foi sempre posto em liberdade, mesmo com os 140 processos crime no currículo.  Os juízes decidiram dar-lhe a oportunidade de melhorar essa aresta ainda por limar, da fuga em segurança. De qualquer das formas, o título de Rei já ninguém lho tira. E com toda a Justiça…envolvida. Estava eu a matutar nesta particularidade  nacional do ladrão coroado rei e lembrei-me da Alice, a tal do país das maravilhas. Reza a história que “Alice, segue um coelho e é projetada para um novo mundo. Aí é confrontada com o absurdo, o impossível, questionando tudo o que tinha aprendido até então”.

Alice é recebida por Marcelo à entrada do mundo lusitano. “Minha querida, seja Benvinda a este país Maravilhoso. Se quiser fazer uma selfie dê-me aí a sua máquina e faça um sorriso enquanto eu lhe espeto  uma beijoca na face. Eu sou um presidente especial. O Rei das Selfies e das beijocas.  Sou um positivista por natureza; comigo no comando vai tudo correr bem…mesmo que pareça estar a correr tudo muito mal” . A chamada maravilha da transformação.   Alice ficou maravilhada com a receção feita pelo próprio rei das selfies e entrou num sumptuoso carro elétrico que tinha à sua espera. “Nós aqui somos pela ecologia; quase autossuficientes em energias renováveis. Estamos só à espera que uma montanha, que temos ali para os lados da Guarda, arda mais um bocadinho, para que as nossas reservas de lítio fiquem totalmente disponíveis, e cada português possa finalmente comprar o seu Tesla”.  Até porque o preço da gasolina está pela hora da morte, por causa da pandemia, da guerra na Ucrânia, da seca extrema, da fuga das gaivotas para as berlengas. “Quer mais uma selfizita com este esplendoroso edifício do ministério das finanças ali atrás? Representa um dos símbolos da nossa arte de subtração de bens a terceiros, sem recurso a rebarbadora e de forma totalmente legal. Com sorte ainda apanhamos o Leão a fumar a sua cigarrada à varanda, enquanto congemina uma nova aplicação de impostos com a técnica inovadora LSGF criada pelo Rei dos Catalisadores.” Alice acedeu a mais uma selfie.  “Tenha cuidado com esse buraco no passeio, porque hoje é sábado e as urgências pediátricas estão fechadas.  Não imagina o sucesso desta estratégia inovadora  em termos de afluência aos serviços de saúde. Depois do outro Macedo ter aplicado a rebarbadora nos gastos supérfluos do SNS e da Martinha ter investido em  força nas zaragatoas, percebe-se que há muito menos crianças a cair, muito menos urgências a sair e muito menos grávidas a parir. O nosso SNS é uma maravilha da eficácia!” Alice continua na sua descoberta, atónita com tanta bizarrice e questiona o Rei sobre a magnitude daquela fila enorme em frente de uma loja de livros. “São os Coldplay! Granda banda pá!” Grita de forma efusiva Marcelo tirando selfies com toda a malta da fila “É para lhes dar ânimo nesta luta; afinal há aqui pessoas desde a uma da manhã. O presidente de um país das maravilhas, tem de desempenhar esse papel de proximidade, de afecto e carinho.” E continuava “sabe que nós somos um dos países  com mais festivais de verão do planeta. Muita luz, muito sound byte, muita loucura, muita ganza. É sinal que a malta anda contente e cheia de massa para gastar”. Alice, já um pouco extenuada, pergunta ao rei da selfie se não havia neste país das maravilhas as tais cartas falantes de que tinha ouvido falar…“Claro que temos a nossa maior carta (quase)falante, o nosso ás de trunfo, o nosso guia espiritual! Veja ali sentado no trono, rodeado por jerricans, rebarbadoras e notas de 100 euros. O Rei dos Catalisadores! Este tipo representa todas as virtudes do nosso sistema humanista e tolerante.” Apenas aqui neste país das maravilhas seria possível um tipo gamar à fartazana às claras e ser  coroado rei. Já se tinha  tentado algo do género com um ex-primeiro ministro, mas esse ainda ficou um tempito na choldra, antes de sair radiante para o sol da Ericeira. O Rei dos catalisadores continuará no trono, já a pensar no upgrade da sua técnica juntando a sigla “R” de Riso. O Riso que caracteriza a chacota perante um divertido sistema judicial que se comporta ao nível de um  festivaleiro de verão; muita luz, muito sound byte, muita loucura, muita ganza. “Quer fazer uma selfie aqui comigo e com o Rei dos Catalisadores?” pergunta Marcelo para Alice. “Sabe, eu venho de uma obra literária nonsence, onde os animais falam , as loiças ganham vida e a Rainha de copas manda cortar cabeças quando a incomodam. De momento, não preciso de presenciar mais absurdos. Quero é voltar a encontrar o raio do coelho para me tirar deste sítio, não vá a rainha de copas aparecer e  mandar a mão ao pobre do Rei dos Catalisadores, terminando de forma dramática este regabofe.”



quinta-feira, 21 de julho de 2022

Campismo em quadrupedia

 Relembrar uma tentativa de acampar com miúdos....


Imbuído de uma enorme nostalgia, dos meus tempos de campista adolescente, da tenda canadiada e do fogão camping gás onde fazia umas arrozadas  de salsichas,  pensei como seria agradável partilhar estas minhas remotas vivências  com os meus filhos.  Chegámos a um parque de campismo a abarrotar de gente e apressámo-nos a montar a nossa tenda, um imponente iglo. No momento de espetar as espias naquele solo empedernido, falta-nos o que falta sempre ao aspirante de campista: o martelo. Vamos à procura de pedras para bater na espia e encontramos sempre uma que magoa a mão e é pouco eficaz na hora de espetar o ferro no betão. Quando entortamos a quarta espia e partimos a terceira pedra,  olhamos para o lado e deparamo-nos com o personagem que dá cabo do nosso ego de campista esporádico.  Ali está ele, o campista residente,  com um olhar de desdém pelo nosso empenhado esforço no sentido de conseguir cravar as espias. E não há nada mais humilhante do que, depois de nos ver ali algum tempo a de gladiar entre a espia, o calhau e o cordel,  nos dizer  se precisamos de uma ajuda abalizada. Declinamos de forma educada e continuamos, com alguma dignidade, a nossa luta para deixar a coisa apresentável. O campista residente retira-se para o seu luxuoso abrigo: Uma tenda de fazer inveja ao Sultão do Dubai; com todo o conforto eléctrico de qualquer casa, parabólica e micro-ondas incluídos, o mosaico incrustado no chão, cadeiras de encosto em frente da televisão e sebes bem regadas à volta do espaço. Nós, tínhamos aquela carapaça de cágado, onde teriam de caber 4 corpos com toda a roupa e  farnel. E é na posição de cágado que temos de entrar nos aposentos e com ela destruir toda a nostalgia da adolescência.  Aí percebemos esse lado pernicioso do campismo que nos obriga a um exercício de alternância constante  entre o bipedismo e a quadrupedia.   Vamos dar um mergulho à praia e…”Onde estão os fatos de banho dos miúdos?” pergunto,  “Estão no fundo da tenda ali debaixo das calças e por cima dos casacos!”, entro a rastejar e procuro no meio do monte de roupa onde poderão estar.  O monte de roupa cai em cima dos sacos de cama e saio a rastejar com os fatos de banho na boca. “E o protector solar?”. Rastejo novamente e novamente chafurdo naquele amontoado de peças. Saio triunfante, com o troféu 40 UV seguro na mão.  

Depois do mergulho na praia, voltamos à carapaça que, depois de ficar todo o dia ali ao sol, se transforma numa espécie de sauna em miniatura. Entramos no forno em quadrupedia para encontrar  o champô e as toalhas para o duche.  Chegamos aos balneários e encontramos uma bicha que vai até aos urinóis. Esperamos que chegue a nossa vez e finalmente lá entramos para o retemperador duche…frio??? Melhor assim que se poupa água. Esfrega rápido o miúdo; esfrega rápido o pai, embrulha na toalha e vá de correr com cabelos ao vento até à tenda em busca do quentinho. Entramos os dois e procuramos a roupa. O  monte já passou a colina; chegam as duas cágadas e instala-se  um pandemónio ao nível de uma luta na lama numa discoteca em Albufeira. Conseguirmo-nos vestir ali no interior da minúscula carapaça sem dar uma cotovelada ou um pontapé no nariz de alguém, revela-se uma árdua tarefa. Descobrimos que o fabricante da tenda de “4 lugares” era definitivamente chinês, uma vez que aquele espaço daria, quanto muito, para albergar 4 chinezinhos ou  uma família de porquinhos da índia. Depois de algumas nódoas negras, rastejamos a suar para o exterior e cheiramos a arte gastronómica dos nossos vizinhos residentes. Qualquer campista que se preze tem de ter um grelhador para assar os seus petiscos; Da direita vinha o fumo da bela da sardinha, da esquerda o odor do picante frango na brasa. Estávamos na confluência de cheiros, a comer a nossa lata de atum com batatas pála-pála, sentados numa manta e envoltos em fumo do petisco dos outros.   Os outros, sentam-se à mesa e exibem entre os dedos e os dentes,  as iguarias das quais nós só sentimos o cheiro.

 Chegou à hora da soneca. Conseguimos encaixar os quatro muito a custo e temos de fechar as aberturas por causa das melgas.  O termo-acumulador funcionou na perfeição durante o dia, e agora, estava ali, em processo de compostagem, com o nariz encostado ao pano lateral da tenda e a orelha a roçar no que resta da colina de roupa. “Que se lixem as melgas!”. Abri os orifícios e pus a cabeça de fora.  Agora sim, está mais fresco. Vou finalmente dormir,…,péra lá que o vizinho está a explicar à mulher os planos para amanhã; o tipo da caravana em frente está a falar numa língua esquisita que deve ser sueco; e oiço também lá longe a rapaziada que chegou agora da nigth. No campismo é assim; o som propaga-se de forma mais fácil, tornando difícil o descanso pleno. É agora!...depois de uma hora a ouvir toda a animação circundante, estou quase a aterrar…isso, num sono profundo,….Dlim,dlão,…dlim,dlão(?). As vaquinhas que pastam junto da vedação onde encostei a tenda, têm badalos, que badalaram a noite toda, badalando-me também o meu estado de vigília,… dlim,dlão.

Com olheiras e picadelas de melgas arrumei as tralhas, e pisguei-me dali na manhã seguinte, pensando como a falta de material e disponibilidade adequados    poderão ensombrar as nossas doces recordações.  No entanto, a minha memória, está a ver se insiste na partida do campismo; de me obrigar a comprar uma tenda maior, uma mesa com banquinhos e um grelhador, mas tenho quase a certeza de que um dia, ainda me vou lembrar de um tal hotel de 5 estrelas onde terei passado dias muito felizes na adolescência.


terça-feira, 28 de dezembro de 2021

O Natal dos Pequeninos



A Avó está contente. Finalmente conseguirá juntar alguns netos no Natal. Preparam-se as comidas, enfeita-se a casa, trata-se dos presentes, ilumina-se a árvore, alimentam-se as expetativas. Toca o telefone. O neto do outro lado diz: “Avó, o teste deu positivo!”.  “Ai sim, que bom. E quando vens?” lançou a avó, convencida que quando os testes são positivos, são mesmo uma coisa positiva. O neto complementa “Já não posso ir aí neste Natal. Parece que tenho o tal vírus.” A avó desliga o telefone e percebe que este será mais um Natal em solidão. O neto testou positivo, a filha testou negativo, os outros netos testaram negativo, mas todos deram negativo à possibilidade de se juntarem  à festa de Natal em positivo convívio. Por uma questão de precaução, porque estiveram com alguém infetado. O Natal foi assim passado em pequeninos nichos familiares de 2 pessoas cada. A filha com a neta que testaram negativo; o neto com o genro que testaram positivo; o outro neto com a namorada que testaram negativo mas ficaram com medo de testar positivo. A Avó, essa não testou nada, e ficou com o outro filho que deixou a restante família na casa da outra avó, para que esta avó tivesse a companhia de alguém para além da TV a dar notícias sobre os casos de novas infeções. A avó que passou os 2 últimos anos enterrada na cama a ver televisão, não percebe bem como pode ser possível passar mais um Natal sem o afeto dos seus. A Avó está protegida; cumpriu de forma obediente as instruções do slogan dado por aquela senhora do cabelo com laca que aparece todos os dias na TV. “Protejam-se os idosos!” Dizia. E os idosos protegeram-se; fecharam-se em casa ou nos lares, viam os filhos com máscara na cara pelas frechas da porta e tomaram todas as doses das vacinas preconizadas. Mas isso não chegaria e até os netos de 8 anos levaram com a pica para protegerem os avós.  E os avós protegidos continuaram a ficar sem ninguém neste Natal.   O slogan que me apetece contrapor à senhora da laca no cabelo, será “Já parávamos com isto, não acha?”.  Se quiser pode pedir opinião a todos os velhotes que foram lançados para a solidão do seu quarto, aspirando pelo momento de sentir de novo o abraço do filho ou do neto, mas as notícias que os acompanham todos os dias teimam em enviá-los de novo para os calabouços da sua cela.  Uma especialista em saúde mental explicava o surgimento de muitos casos de depressão despoletados pelo isolamento e que se deveria desenvolver com os idosos competências nas novas tecnologias para poderem comunicar mais com os seus filhos à distância…???...Eihn?... Como medida profilática, esta especialista de saúde mental deveria fazer um teste antigénico à sua saúde mental a ver se dá positivo. Os velhotes não precisam de comunicação à distância, precisam de abraços, de beijos, de contacto de proximidade. A solidão mata mais do que o covid.  O valor dos anos, de quem tem poucos para viver , é precioso para ser afogado em medo e isolamento.  Protejam os idosos do vírus da solidão.  Os casos de covid estão a aumentar. Claro que estão a aumentar porque o histerismo dos testes surgiu sem ninguém questionar. A corrida desenfreada à zaragatoa no nariz, rivaliza com a entrada nos saldos do El Corte Inglês. Tens de viajar? Testa!; Tens de ir ao restaurante? Testa!; tens de fazer desporto? Testa!; Tens de ir para um hotel? Testa!; Tens de ir visitar os avós? Testa!...Não tens nada de interessante para fazer? Testa…à cautela. Os isolamentos profiláticos irão continuar ad eternum porque todos os assintomáticos continuarão a testar desenfreadamente, porque os epidemiologistas continuam ativos em horário nobre sem sinal de fadiga e os governantes querem continuar em horário nobre porque a campanha eleitoral já começou para eles, os salvadores do povo.   E o povo prossegue na sua rotina sem pestanejar, sem questionar porque raio já quase toda a malta levou com o líquido milagroso e o milagre da libertação ainda não apareceu. A hipnose coletiva entrou em velocidade cruzeiro, sem laivos de revolta ou contestação, com aceitação plena de todas as medidas estapafúrdias que os salvadores do povo se lembrem de inventar para proteger os idosos e os manter em frente da TV longe das ameaças exteriores e próximo dos amigos epidemiologistas.   Chegará em breve o dia em que a avó morrerá sem se lembrar do nome do neto e das caras dos filhos sem aquela máscara azul a tapar a boca. Os filhos respirarão de alívio porque a sua mãe não morreu de covid uma vez que testaram todos negativo naquele dia em que a visitaram.  Morreu apenas de solidão.

domingo, 8 de agosto de 2021

Certificado "Al Prosciutto"

  Hoje telefonei para a pizzaria a encomendar o almoço. Apetecia-me comida italiana, mas sobretudo não me apetecia cozinhar.  Meti-me no carro para ir buscar a massa “al prosciutto” que ia cair que nem gingas num estômago a salivar de fome. Entrei de rompante no restaurante e vislumbrei , na minha direção, uma funcionária com cara de poucos amigos, deslocando-se com  uma desenvoltura ao nível de qualquer atleta olímpica. Ao mesmo tempo que lançava a palma da mão apontada para mim, dizia de forma acutilante: “Espere aí!!!Tem o certificado?”. Eu respondi: “Não! Vim só buscar a minha massa al Prosciutto!?...” . Então tem de esperar lá fora. E foi com a moleirinha ao sol que percebi como funciona isto da segregação vacinal. Deixei-me estar ali a absorver a vitamina D e a observar o procedimento logístico da coisa. Seguiu-se um casal e lá estava a zelosa funcionária com a palma da mão encostada ao nariz do senhor…”tem o certificado?” . Após uma breve pausa, o senhor  sacou orgulhosamente o  telemóvel  com o código do tal bilhete da lotaria que lhe abria as portas ao ar condicionado do estabelecimento. Por momentos até pensei sentir um olhar trocista pelo canto do olho para o tipo sem certificação válida que estava ali a torrar ao sol. Mas foi só impressão. Seguiu-se uma senhora com a filha. A funcionária está treinada para não deixar ninguém passar de forma incólume; tem os skills de qualquer cabo num regimento de comandos. Ou o cliente apresenta essa coisa ou leva ali com 50 flexões à torreira do sol. E, naquele caso, deu-se a híbrida situação da senhora ter o documento de pureza e a filha não.  Pela cara da funcionária, ainda ponderou colocar a mãe a comer a pizza vegetariana lá dentro e a filha contentar-se com o risotto cá fora, mas teve a lucidez de encontrar a solução ideal. Vão as duas ali para o único lugar vago na esplanada que fica um bocadinho ao sol. A escolha do lugar à sombra? Parece óbvio. A mãe fica à sombra, a filha que não tem o papel, fica ao alcance da vitamina D que parece criar defesas a quem ainda não levou a pica milagrosa. Antes de receber a minha “al prosciutto” e de dizer à funcionária que não voltaria ali, lancei um olhar panorâmico a toda aquela malta que se deliciava a trincar o esparguete à bolonhesa, aconchegada pelo fresquinho do ar condicionado,  sem denotar qualquer laivo de incómodo sobre todo este absurdo.  Um amigo comentava comigo no outro dia que tinha vacina marcada para poder ir de férias para o hotel em Monte Gordo que tinha uma esplêndida piscina.  O que me incomoda em tudo isto é a conivência coletiva perante esta aberração civilizacional. A aberração que nos empurra a todos para a única opção devidamente certificada que nos permite entrar em restaurantes, em hotéis, em espetáculos e, a curto trecho, nos transportes públicos e lojas de bens essenciais. Todos são coniventes nesta hora: Os partidos da “oposição” por não fazerem oposição a esta completa imbecilidade, os utilizadores certificados por comerem o seu risotto e olharem com normalidade para o tipo que ficou à porta; o tipo que ficou à porta, à espera do seu “al prosciutto” a pensar na palma da mão da funcionária zelosa; a funcionária zelosa pelo desejo de espetar a zaragatoa no nariz do cliente quando esse não se contentou com a palma da mão; o dono do restaurante por, apesar de ter de sair da situação económica calamitosa  em que se encontra, embarcar nesta regra subversiva. O sucesso da vacinação vai assim correr de forma célere, porque toda a rapaziada tem planos de férias e não quer restrições aos seus mergulhos nas esplêndidas piscinas de hotel ou no acesso à sardinhada de Portimão. Com sorte, aparecerá aqui em baixo, aquele retângulo “visita o Covid-19 centro de informação sobre as vacinas” , onde deverão poder pesquisar  ofertas dos melhores hotéis e restaurantes para os devidamente certificado, enquanto permanecerem dentro da validade. No meu caso, a custo, terei de adiar as tais férias de sonho no hotel Pestana do Funchal em frente ao mar e descobrir onde guardei a receita da massa “al prosciutto”.