domingo, 20 de setembro de 2020

A Bolha

 


O início das aulas em época de Covid exigia medidas drásticas para que o descalabro pandémico não surgisse em todo o seu esplendor. As equipas especializadas do ministério da educação em estreita ligação com as equipas especializadas da DGS montaram uma estratégia especializada infalível baseada num único conceito: A Bolha…!? Eu sei que o nome não tem um grande impacto sonoro, é um pouco mortiço até, mas interessa sobretudo o seu conteúdo em termos operacionais. E o conteúdo da bolha é a turma do 5ºB. Expliquemos por miúdos em que pressupostos assenta esta fabulosa ideia. Os alunos quando entram na escola são impelidos de forma magnética a operarem uma junção com os outros colegas da mesma turma e permanecem nesse estado de molhada seletiva durante todo o dia. A este estado molecular  os especialistas chamaram de “Bolha”. E essa bolha é criada com o intuito de não propagar vírus às outras bolhas vizinhas do 5ºA e do 5ºC que não têm a culpa da bolha propagadora ser descuidada.   Como qualquer invenção feita em cima do joelho, perdão, feita assente numa consistente base científica, precisa de limar algumas arestas para que fique verdadeiramente perfeita. A ideia inicial de que, em princípio, turmas com menos alunos teriam menor taxa de propagação caiu por terra, uma vez que poderia descambar num conceito de “Bolhinha”, designação que daria um cunho pouco sério a este plano. Optou-se por se seguir uma linha mais impactante e manter 30 alunos por turma para se poder fugir com propriedade para uma designação de “Bolhona” . Uma coisa em grande; uma bolha bem nutrida. Só assim se avalia a resistência das paredes que envolvem essa bolha; com muita malta dentro a gritar que quer sair para ir dar um amasso na miúda do 7ºF . E quando poderíamos pensar que a parede da bolha teria uma resistência superior à do latex, eis que surge a constatação de que a bolha ao ar livre pode rebentar em menos de um fósforo. Parece que é dos raios ultravioletas ou da brisa de noroeste.  Optou-se então por deixar a bolha de alunos o maior tempo possível dentro da sala de aula, o espaço ideal para que o vírus não tenha muito ar para respirar.  Saídas fugazes da bolha ao ar livre, só para espaços territoriais bem definidos, se possível encostados ao pilar da sala onde o 5ºC está a ter aula de ciências naturais.  Está quase tudo perfeito com esta hermética bolha, não fossem duas balas que furam essa parede celular em sentidos inversos. O tipo que invade essa bolha vindo do exterior chamado professor e o   que foge dessa bolha para o exterior chamado o tipo à rasquinha para uma mijinha.  O professor entra na bolha do 5ºB, depois de ter mergulhado de cabeça nas bolhas do 5ºA, do 7ºE, do 9ºD e do 5ºF. Em princípio não tem problema porque é sabida a resistência molecular da bolha do docente, que aguenta sem problema viagens de 240 km para conseguir dar 11 horas de aulas numa escola em Penamacor. São tipos habituados a dar a bolha às balas; o vírus não penetra nessas carapaças atléticas. Já o tipo à rasquinha para uma mijinha é mais problemático por ser menos resistente. Deveria ser capaz de aguentar todo o dia com a bexiga firme, sem pestanejar, ali na bolhona da sala de aula com os seus 29 colegas átomos aos saltos.

As equipas especializadas do ministério da educação estão embevecidas com a sua criação e com razão. A bolha tem tudo para dar certo. Basta ver o grau de contentamento dos alunos que entram radiantes na bolha onde permanecerão todo o dia de máscara, dentro da sala de aula a maior parte do tempo, longe dos amigos das outras bolhas e sem qualquer vontade de saltar a vedação. Não entendo a expressão “Estar com a bolha” como uma estado de má disposição, quando  “Estar na bolha” espelha uma sensação de total segurança e harmonia.   A coisa fará de tal maneira sucesso que serão os alunos que prolongarão esta bolha para o exterior, onde até agora reinava uma inconsciente libertinagem de contactos com outros amigos. Hoje mesmo estou a pensar organizar o jantar para os  25 colegas do meu filho cuja bolha circulou durante todo o dia . Só tenho de planear as rotas de entrada e de saída, para que não se cruzem com a bolha dos 35 colegas de faculdade da minha filha que vieram passar o fim de semana juntos. Em princípio vai cada bolha para o seu quarto e só saem à vez quando estiverem à rasquinha.

sábado, 13 de junho de 2020

Padaria em tempo de epidemia




Depois de 3 meses com o cérebro enclausurado, decidi desconfinar e escrever finalmente sobre esta fase isolamento forçado. Aproveitando a loucura geral da libertação  da malta que, de súbito, decidiu invadir esplanadas, praias e praças, também eu comecei meter a cabeça de fora. Vê-se que o portuga não foi feito para grandes tempos de apneia; isso é tarefa para os mergulhadores de ostras do Golfo Pérsico. Cá nós, aguentamos um bocadinho a suster o ar, mas quando nos dizem que podemos subir devagar para garantir a descompressão equilibrada, saímos a toda a gáspia em busca do oxigénio perdido sem tempo para essas mariquices. Mas olha, que parece que a malta continua a falecer… Eu quero é que se lixe, pá! Já estava a ficar roxo de tanto ensino à distância! Eu preciso é de vitamina D em barda; parece que reforça o sistema imunitário.  E sempre posso levar o iphone para o Baleal  e, antes de me banhar nas águas do oceano, ou de beber umas jolas, marco presença na aula de Matemática.
Mas comecemos pela fase inicial da pandemia, em que o vírus mortal nos perseguia de forma voraz por via aérea ou terrestre. Uma das constatações mais enigmáticas dessa fase para mim, foi  a pá da padaria do Lidl …?! Eu sei que parece estúpido, mas terão de me dar um desconto, afinal estive sem oxigenar o encéfalo durante muito tempo. Saímos de casa , munidos de todo o material de proteção, até aquele gel desinfectante viscoso que comprámos por 15 euros. Assamos dentro do carro com os vidros fechados, porque nos iremos cruzar no caminho com o camionista contaminado que veio com produtos alimentares de Itália; Chegamos ao Lidl, cruzamo-nos com um tipo  que tem olhos de chinês (vê-se logo que fugiu da província de Wuhan para nos tentar fazer a folha), sustemos a respiração não vá a bicheza entrar. Vamos para a secção do pão. Esperamos que a senhora , que parece querer levar pão para armazenar durante 3 meses no seu bunker , saia da frente dos sacos de papel e vá para a secção do papel higiénico, para podermos passar ao ataque.  A senhora saiu, calçamos a luva, pegamos no saco e seguramos radiantes na pá. Dizem-nos que o Covid gosta de esperar por mãos desprotegidas nas superfícies metálicas e de plástico e o que é que os alemães criadores do Lidl inventaram? Uma pá metálica  com uma pega de plástico onde o vírus pulula de alegria. Então os tipos criam a Mercedes, a Volkswagen, a BMW, a Siemens e depois enterram-se com esta deprimente pá recolhedora de pão ? Pegamos na pá com a luva e tentamos “pescar” o pão certo com um refinado trabalho de pulso ao nível dos melhores praticantes de matraquilhos. Lembramo-nos das máquinas da feira com aquela garra para apontarmos e tentar apanhar o ursinho que nunca vem e nos engole o euro. Aqui o processo é inverso, a colherada agarra sempre mais 3 paposecos do que os desejados. Seguramos no saco com a mão e vamos buscar o pão desejado mais os três extra. Chiça! Peguei no pão com a mão com que tinha segurado na pega de plástico cheia de vírus!  Não memorizei bem o procedimento complexo associado àquele momento. Volto atrás, ou opto pelo “que se lixe” ? A minha veia anti-desperdício e a pressão do homem que está com o ombro  encostado ao meu em busca dos croissants  de manteiga, levam-me a optar pelo “que se lixe” e a fugir com os paposecos contaminados na sacola. As compras restantes são feitas em passo de corrida, a arrastar o fardo na consciência por não ter tido a concentração necessária na secção do pão, nem o trabalho prévio para que os passos da anti-contaminação batessem certo. Chego extenuado à caixa de pagamento e tenho dificuldade em estabelecer comunicação com a funcionária (que ainda não usa máscara obedecendo ao conselho inicial da senhora da DGS) pelos  4 metros de distância e o olhar enviesado para evitar inalar espilros mais enérgicos da funcionária que já tinha dado troco ao chinês de Wuhan. Depois de decifrar a frase  “já pode pôr o cartão na ranhura”, teria a tarefa de tentar realizar esse desígnio, cumprindo uma distância de segurança com a solícita senhora, que  teimava em manter acesa uma inadequada conversa de circunstância em tempo viral.   Chego ao carro, despejo uma quantidade generosa de gel por tudo o que é epiderme  e volto para casa com a segurança proporcionada pelo hermético e ardente veículo.
Felizmente que ao fim de 3 meses esta loucura profiláctica já lá vai. Eu sei que temos de continuar a ter de levar com a senhora  da DGS todos os dias, mas o panorama está claramente no desconfinamento à grande. Os comboios da Amadora voltam a abarrotar, as manifestações anti-racismo juntam milhares nas ruas, os espectáculos com 2000 espectadores na plateia são partilhados pelos chefes de estado, a água do mar já convida muita malta ao mergulho e até o ministro Centeno se decidiu desconfinar dos cargos das finanças que vão dar pouco trabalho nesta fase. Ainda bem que o número de infectados por covid desceu de uma maneira abrupta e já podemos fazer a “fiesta”…Ai não?....o número continua igual?.... Então, pá!? Parece que já passámos  para a fase do “que se lixe”…a falta de ar e de sol. Acho bem, até porque já não aguento a sauna do habitáculo do meu carro com os vidros fechados. Já agora e aproveitando a embalagem, será possível nesta fase, desconfinarmos o ensino à distância e pararmos de fingir que este método educativo funciona melhor do que a pá que tenta tirar o pão na padaria do Lidl?