domingo, 25 de abril de 2021

A liberdade da corrente


Esta imagem foi tirada há 32 anos. Eu sei que está pouco nítida, mas é a única  que assinala a primeira vez que desci o desfiladeiro do rio Paiva, um dos mais majestosos e bonitos rios do nosso país. Foi uma aventura fabulosa, num dia bem invernoso de geada, chuva e muito frio. Essa entrada num rio caudaloso de águas bravas, totalmente desconhecido para os três que se aventuraram nesse dia,  pode ser um verdadeiro ensinamento de vida. Fui  usufruindo do rio Paiva ao longo dos anos. O gozo do desafio, da comunhão com a natureza, do convívio, da gastronomia local e  da magnitude desse fenómeno que nasce debaixo de umas pedras e desagua algures no mar.  O facto de escrever estas linhas no dia 25 de abril, o denominado dia da liberdade, não é inusitado. O rio Paiva,  juntamente com todos os rios de águas bravas que fui conhecendo dentro de um caiaque, simboliza a faceta da liberdade que eu considero mais saudável: a liberdade natural. E a liberdade natural não está isenta de condicionalismos. “Epá mas então o que é isso? Queres ver  que um gajo não pode ter liberdade plena? “ Não. Voltamos à ideia do rio de águas bravas. O rio dá-te a possibilidade do livre arbítrio. Abre-te a porta e diz que podes usufruir do seu leito cristalino e desafiante. Nas passagens mais turbulentas dá-te alguns sinais de opções que podes tomar. “Estás a falar em opções, condicionalismos, perda de liberdades e garantias? “ Não. O rio dá-te todas as liberdades, mas não te dá todas as garantias. Dá-te a liberdade para avançares por aquela cascata limpa e gritares de contentamento depois; dá-te a opção de escolheres a passagem do calhau duro e gritares de dor depois; dá-te a possibilidade de não fazeres a passagem, acartares com o caiaque de 20 quilos às costas e gritares de alívio depois; dá-te a  liberdade de entrares direito naquele sifão e gritares debaixo de água depois. “Mas o 25 de abril deu-nos as ferramentas para podermos fazer tudo o que nos dá na veneta, isso não tem nada a ver com a imagem condicionada que passas do rio!” . Tem tudo a ver. Na liberdade natural do rio também podes fazer tudo o que te dá na veneta, simplesmente podes levar na corneta.   Nas comemorações do 25 de abril, vi alguns personagens envolvidos em escândalos de corrupção que continuam a sorrir com o cravo de abril na lapela. Para eles, abril representou de facto esse sentimento do fazer tudo o que lhes dá na veneta, sem olhar a meios. As suas ações criminosas não acarretam consequência dolorosas. A pedagogia do rio não os deixaria incólumes escondidos atrás de subterfúgios legais, recursos e prescrições. Levariam umas chapadas valentes do duro granito. No rio, as pedras não prescrevem, nem tão pouco as correntes rumo ao mar; estão lá à espera das opções mais inusitadas. No rio, se se cair num sifão, fica-se numa espécie de prisão. Os tipos dos cravos na lapela que eu vi a sorrir depois de terem caído nos sifões das escutas, dos favores ocultos, do compadrio, do enriquecimento ilícito, não sentiram sequer o cheiro das ervas daninhas dos arredores da cadeia de Pinheiro da Cruz.  E para não haver espaço para se ouvir os ensinamentos dos rios de águas bravas sobre a consequência de algumas das ações menos pensadas, alguns destes tipos, aproveitaram o embalo para calar a voz do rio Tua erguendo a tal barragem que encheu os bolsos de algumas empresas dos amigos e cujo ganho económico para o país se resume… a 1 mês de produção energética(?). Todos os outros ganhos  seguem no caudal “natural” para desaguar nos bolsos dos amigos.

               Neste dia da liberdade, continuo a usufruir da imagem da liberdade natural do rio de águas bravas. Sentir a água fria nas mãos, a corrente debaixo do caiaque,  a passagem ruidosa entre os dois calhaus, a sensação de desafio constante nas opções tomadas. Fatigado, aproveito a margem para descansar e, quando me preparo para partilhar uma fila de chocolate com os amigos, vislumbro ao longe um tipo muito parecido com  aquele  político das  opções extremamente  duvidosas. Rema desenfreado rumo ao sifão do lado esquerdo do rápido. Acenamos de forma vigorosa para o avisar que ali existe perigo real, mas ele ignora o aviso e acelera cada vez mais para dentro do buraco.  A sua confiança de que nada o pode parar, parece inabalável…