domingo, 17 de outubro de 2010

A Arca do José


Os tipos encostaram-me à parede. Estou sem grande vontade de ripostar. Sinto-me amorfo e derrotado. Apontaram-me todas as armas que tinham e dispararam sem clemência ou pudor. Um tiro de 2% de IVA num joelho, uma flechada de 3,5% na goelha, um torpedo de 2% no coração. Estava espalmado contra a parede há algum tempo, com esperança de encontrar uma brecha de fuga e os tipos trataram de comprimir o que restava, com um enorme cilindro. O peso das toneladas achata-me o toráx e impede-me de os chamar de gatunos, incompetentes, corruptos, mentirosos, energúmenos, bandalhos, filhos dum cão perneta. Fiquei afónico; não consigo gritar. Achatado pelo peso da redução do ordenado, dos benefícios fiscais, das comparticipações da saúde, dos aumentos de todos os bens que consumo, do pagamento de tudo o que não deveria ser pago, veio-me à cabeça o dilúvio…?...Pensei que, pior do que aquela besta que me comprime a esperança, só a sensação de afogamento provocada por um dilúvio incontrolável. E foi assim, sem espaço para mexer mais do que os olhinhos, que me lembrei da história bíblica da Arca de Noé: “Deus decidiu destruir o mundo por causa da perversidade humana, mas poupou Noé, o único homem justo da Terra, mandando-o construir uma arca para salvar a sua família e representantes de todos os animais e aves.” Mas,…será possível?..., querem ver?... De princípio também eu não queria acreditar, mas começou a fazer-se luz. O homem decidiu criar o seu próprio dilúvio,…Quem, Deus?...Não, o tal de José. Quem, o pai de Jesus, o carpinteiro?...Não, o “engenheiro” José, aquele das frases “Nada de alarmismos”, “Já começámos a retoma económica”, “Somos o país com maior crescimento da Europa”. Apeteceu-me gritar “Ah, essa besta quadrada!...” mas não consegui por causa da falta de ar; o cilindro não dava espaço de manobra ao meu diafragma. O tal José decidiu brincar a Deus e toma lá com um dilúvio na cachimónia do Zé Povinho por causa da perversidade humana. Sim, porque só um povo perverso e disprovido de discernimento consegue eleger duas vezes o mesmo incompetente para tomar conta de si. Mas José não fica contente com o seu curto papel na história. Ele queria um protagonismo maior do que o de criador de um mero dilúvio. Ele tinha de ficar com os dois papéis principais - o de Deus e o de Noé. Afinal, Noé era o único homem justo, e a ele cabia a tarefa de salvar a família e todas as espécies de animais na terra.
Antes tinha de se certificar que toda aquela malandragem que trabalha para ganhar a vida, ficava bem afogadinha , sem dar por ela. A estratégia passa por dizer-lhes que está um sol radioso, para depois, apanhá-los desprevenidos e mandar-lhes uma enxurrada de impostos que os deixe sem possibilidade de meter o nariz à tona da água. O segundo passo é seleccionar criteriosamente quem serão os ocupantes da Arca. O critério principal passa pela ideia de “O mundo à minha imagem”. Seleccionar todos aqueles que têm habilidades semelhantes à sua. Começa pela família e percebe o quanto a família é grande. São os primos e os tios; os amigos do partido que são como irmãos; os filhos e os primos dos irmãos do partido; os amigos dos partidos oponentes que são como primos …ou tios; os filhos e os primos dos primos dos partidos oponentes; os amigos que foram colocados a chefiar as empresas públicas que são como cunhados; os amigos dos cunhados e os filhos destes que são postos em empresas públicas assim que saem das faculdades com média de 10 valores; os deputados e presidentes de qualquer coisa, que são como primos em 2º grau; os ex-deputados e ex-presidentes que acumulam múltiplas reformas vitalícias à custa dos favores dos primos que deixaram lá a resolver-lhes os assuntos. Depois de esgotar todos os irmãos, primos e tios, vem a outra família, a família por afinidade. Todos os que lhe seguem o exemplo na patranha. Os inteligentes que têm rendimentos milionários e os filhos pertencem ao escalão B nas escolas para não pagar os livros; os que andam de carrinhas BMW e recebem o subsídio de reinserção social. Os que compram bens sem os pagar. Esses são como os irmãos de sangue, que terão lugar garantido na Arca. O problema é que o espaço começa a escassear e a Arca não dá para todos. Ainda faltam os carros de luxo e os animais. Como é José quem manda, embarcam-se 20 Mercedes topo de gama e cortam-se alguns animais. Embarcam estritamente as espécies com as quais lhe dá algum prazer conviver. Entram casais de abutres, hienas, asnos, piranhas, tarântulas, varejas, alforrecas e camelos. Pensamos se a Arca não poderia ter pertencido a outro senhor. É certo que outros tentaram, até desbravaram algum caminho. Poderíamos ter tido a Arca do Mário, do Aníbal, do António, do Durão, mas o José, com a sua mania das grandezas, superou-os a todos. Concretiza um dilúvio a sério e arranja forma de se pirar a tempo com os seus primos, Mercedes e alforrecas. De mestre. Eu é que continuo aqui espalmado entre a parede e o cilindro, sem espaço de manobra para um suspiro. Alimento a mórbida dúvida, se quero um fim por esmagamento ou por afogamento. Como pequena consolação, resta-me a imagem da Arca do José deslocando-se em direcção a um Icebergue algures no Atlântico. Se já aconteceu com o Titanic, quem sabe se….