quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A pevide


À noite, sentado no sofá , o chamamento persistente vindo do interior do frigorífico, não me deixa em paz. Os iogurtes de frutos silvestres gritam. “Anda! mete uma colher aqui dentro e leva-me em direcção do teu esófago!”; o paio de York sussurra “Já me imaginaste dentro daquele pão estaladiço de Rio Maior?”; o queijo de Nisa contorce-se “eu, cortadinho com uma faca, marchava em menos de um fósforo…”. Continuo firme no sofá, tentando não me render às vozes do pecado gastronómico. Sei que o meu metabolismo de meia idade, não consegue dar vazão a tanta ingestão calórica, a uma hora na qual todos os nutricionistas e agentes da saúde alimentar defendem que só deveríamos ingerir um chazinho e 3 bolachas Maria. Não resisto. Levanto-me do sofá e abro a porta do frigorífico. Estava consumada a tragédia de reforço das minhas adiposidades abdominais. A arrotar o paio e o queijo de Nisa, o peso na minha consciência é atenuado com um desculpabilizante “foi só hoje…”. Mas todos os dias existem iguarias que tratam de nos atazanar o descanso digestivo nocturno. Foi então que descobri as pevides. Esse fabuloso alimento, que demora 8 vezes mais tempo a descascar do que a comer. Era disso que o meu organismo precisava; um alimento “bricolage”. Muito trabalho de dedos, pouco trabalho de mandíbulas. E aquilo entretém, tal como o croché ou as paciências. Para se comer 10 gramas de pevides, está-se ali pelo menos meia hora a dar à unha. E, enquanto se está a dar à unha, os iogurtes de frutos silvestres e os chocolates Milka, não nos chateiam a cachimónia. Apesar dos defensores da alimentação saudável atribuírem às sementes de abóbora, propriedades extraordinárias no combate ao cancro da próstata e outras doenças, para mim as pevides são apenas o meio de saciar o apetite sem recorrer ao paio de York.
Depois de ter ingerido todo o stock de pevides, decidi ir comprar mais. Procurei na secção de frutos secos do hipermercado e lá estavam elas. Um saquito de pevides, muito pequenino, pelo preço de 2 euros. Olhei para a retaguarda do pacote e vinha escrito “Made in China”,…made in china? Até as pevides, que raio?... Já sabia que os carros telecomandados dos meus filhos, que se avariam aos primeiros estampanços contra as paredes, vinham da China. O que nunca supus, foi que chegássemos ao ponto de nos vermos obrigados a importar pevides do outro lado do mundo. A pevide deveria servir de indicador de desenvolvimento de uma nação. Um país que não tem competência para produzir as suas próprias pevides, não tem qualquer hipótese de sobrevivência. Qual a tecnologia de ponta necessária para a produção de pevides? Abrir abóboras, retirar as sementes, deixá-las secar e salgá-las. Difícil? Mais difícil é descascá-las, comê-las e não correr para o frigorífico em busca do queijo de Nisa. Andamos todos em busca das novas tecnologias da informação, quando deveríamos procurar os motivos para que se tenha de importar pevides da China. A pevide representa o que de mais profundo pode representar uma economia autosustentada. Materializa a ideia de aproveitar tudo o que a natureza pode dar. Faz-se sopa de abóbora e secam-se as pevides para servir de alimento. Nada se desperdiça; tudo se utiliza. Todas as actividades de subsistência vão a definhar. Termos de importar peixe, trigo, fruta e pevides do estrangeiro, deixa-nos prisioneiros de outros. Eu sei que os produtores do paio de York e dos queijinhos de Nisa, deverão achar bem que se mandem as sementes de abóbora para o lixo. Eu acho mal. As minhas adiposidades também acham mal. Com as pevides na mão, consigo acompanhar um filme inteiro sem ouvir os chamamentos provenientes do frigorífico.
Desta vez, não consegui comprar pevides vindas da China. Na hora do filme nocturno, continuei a ouvir um sussurro desesperado. Sem as pevides na despensa, tive de me render a umas fatias do queijinho de Nisa. O que vale é que foi só hoje...