sábado, 9 de novembro de 2019

Eu é que sei



Vinha  a ouvir no rádio do carro a rubrica  “Eu é que sei!”. A ideia passa por lançar perguntas às crianças para elas opinarem sobre o que pensam de cada temática. Eu é que sei …. “O que é um estetoscópio”, “ porque há pessoas boas e más”, “porque as pessoas usam malas”, “porque é que as aranhas têm 8 olhos” , “O que é um pirilampo”, “para que serve a manete de mudanças” . Questões de elevada relevância, às quais a criançada responde com toda a certeza sobre as suas evidentes incertezas.  À pergunta de “Quais são os teus direitos?” o miúdo responde “ Direito de comer alguma coisa boa, mas gosto mais de brincar com as Nerfs”(?). Ainda atordoado com as desarmantes respostas, fui almoçar integrado num grupo numeroso e ali entre a sopa de coentros e o bacalhau com natas ouvi ,  saído de um dos cantos da mesa, um sonoro:  “cala-te lá, eu é que sei!”. Espera aí, será que a rubrica da rádio entrou no nosso almoço? Espreitei para ver quem lançou essa certeza, à espera de ver um miúdo a falar com propriedade  do tema “o que é uma chiclete?” e verifiquei que se tratava de um calmeirão de fato e gravata.   Falou muito, mesmo muito. A defesa da sua ideia estava a ser extensa e intensa. Esbracejava de forma emotiva como se de uma apresentação de tese de doutoramento se tratasse e, sempre que alguém se preparava para entrar na contenda, ouvia: “espera aí que não terminei!”. E se aquilo demorou tempo a terminar. Quando finalmente veio a conta lá o tipo se calou (a conta costuma despertar uma certa letargia).   A praga do “Eu é que sei” instalou-se nas sociedades atuais e veio para ficar. A contundência do  “Eu é que sei” não dá margem de manobra ao outro de ripostar. O “Eu é que” atribui um regime de exclusividade do conhecimento; mais ninguém sabe o que eu sei, por que Eu É que sei. O inabalável saber  extermina a hipótese  de saber do outro. E não confundir o “Eu é que sei” com o “Eu acho que sei”. O segundo coloca a hipótese de poder não saber, o primeiro sabe que não existe hipótese de não saber; Acha que caiu dentro de um caldeirão cheio de enciclopédias Larousse quando era pequenino e já não precisa de ler mais nenhuma página.  A rubrica da rádio  é adequada por revelar uma situação bem atual. Temos as escolas cheias de miúdos “Eu é que sei”, mesmo antes de saberem coisa alguma .  Miúdos, cujo ego foi sendo insuflado  ao longo da sua curta vida, e cujo  pico de sobranceria descamba no “Eu é que sei” .  A criança é que sabe, porque o adulto lhe foi dizendo, de forma sucessiva  “não queres comer a sopa? Tu é que sabes.”; “queres fazer birra quando não te compramos o Kinder? tu é que sabes.”; “não gostas de emprestar brinquedos ao Zéquinha? Tu é que sabes.”  “não queres arrumar a loiça do jantar? Tu é que sabes.”, “queres ir apanhar uma piela com os amigos? Tu é que sabes.”, “achas que a professora de Filosofia é uma chata? Tu é que sabes.”, “queres estar o dia inteiro em frente ao telemóvel? Tu é que sabes.”.  E a criança ficou mesmo a saber tudo com extrema propriedade.
A versão “Eu já sei” é uma variante do  “Eu é que sei” menos agressiva e absolutista.  No “Eu já  sei”, não elimino o conhecimento do outro, apenas igualo. “A função quadrática da matemática? Ó stora, escusa de explicar mais porque eu já sei essa treta toda!”. No “Eu é que sei”, se o resultado  da função trigonométrica não for  o  esperado, a única hipótese recai sobre o evidente erro da Stora a corrigir tão imaculada solução. O “Eu é que sei”  acredita nas suas próprias soluções.  No entanto, algumas vezes (raras), a verdade absoluta do “Eu é que sei” esbarra em fontes de conhecimento difíceis de contestar. Ao discutir futebol com um Mourinho, Culinária com um Avilez ou importação de café com um Nabeiro, o “Eu é que sei” transforma-se em “Esta análise vem corroborar o que eu já aplicava há algum tempo!”. O professor catedrático instalado no interior do seu ego, impede-o de admitir “Oh Mourinho, esse plano de treino táctico é fabuloso, nunca tinha pensado nisso!”
Vamo-nos cruzando no nosso quotidiano com muitos “Eu é que sei”, sejam eles crianças, jovens ou adultos. Malta enclausurada no seu hermético  conhecimento, com  alguma  carência nos sistemas de recepção de informação e grande fluência nos sistemas de expulsão de bitaites; ouvem pouco, falam muito; sabem pouco, acham muito.

Pesquisei de novo a rubrica da rádio “Eu é que sei” e encontrei a pergunta “De que cor é o cavalo branco de napoleão?”. Queria uma fácil, uma que não desse azo aos mais proeminentes “Eu é que sei” de se espalharem ao comprido. Entre as várias respostas dadas pelos miúdos, passou-se por todas as cores do arco-íris, do amarelo ao preto, até se chegar ao António que disse de forma contundente: “se o cavalo é branco, é branco. Qual é a dúvida?”. Parece que a coisa terminou no recreio da escola, com o Samuel a apertar os colarinhos ao António, gritando: “Oh seu grande ignorante, então não sabes que o cavalo branco do Napoleão é Lilás, pá!?”