Sempre tive um bom olfacto.
Raramente falhava no exercício de tentar adivinhar a ementa do almoço ao passar
na porta de entrada . Representava uma das minhas principais atividades lúdicas
na juventude, qual concurso televisivo de respostas rápidas. No entanto, o
sucesso na resposta tropeçava muitas vezes no insucesso da expectativa. “Hoje o
que sabia mesmo bem era um bitoque de vaca com ovo a cavalo afogado em batatas
fritas!”… “ Epá cheira-me a sopa de feijão verde!?” O contentamento
de constatar que o trabalho do meu nariz não engana, claudica com o espectro da
sopa de feijão verde nas papilas gustativas. Então e o belo bitoque? Afogou-se
no prato do feijão verde. Não sei de
quem herdei essa acuidade olfactiva para identificar à distância um bom prato
de favas, um entrecosto grelhado, umas
petingas fritas. Devo ter tido um antepassado perfumista ou reencarnado de um
perdigueiro. Essa capacidade proveniente do meu nariz está agora a ser colocada
à prova de forma intensa e avassaladora. No meu espaço quotidiano circulo num
triângulo geográfico composto por 3 localidades. Trabalho em Alcanena, vivo
entre Liteiros e Torres Novas. Chego às portas de Alcanena e tento adivinhar
que cheiro é aquele. Um cheiro intenso a favas…?....não! Será a Gás Sulfídrio? Devo confessar que esta
resposta não veio do meu nariz, mas da wikipédia. O meu olfacto ainda não está aferido
para este tipo de substâncias químicas; ainda está no bitoque e no feijão
verde. Recorri ao conhecimento da internet para perceber que fedor seria
aquele. E se aquilo fede em grande escala. A sonoridade da palavra feder indicia que a
coisa está longe de se aproximar de um arroz de marisco com coentros. Feder
significa cheirar mal à bruta; O fedor como resultado do verbo feder entra
pelas cavidades nasais qual hooligan num estádio de futebol a distribuir
pontapé e chapada por tudo o que é mucosa sensitiva. O fedor não tem um odor
identificável; aparece com capuz e cara tapada. A intensidade do fedor não
permite adivinhar se o refugado tem alho suficiente ou se o perfume tem uma
leve fragrância de jasmin; apenas transporta consigo a magnitude do “Muito” e
deixa de lado a propriedade do “Quê”. Epá, este odor nauseabundo cheira a
“Quê”? Não sei, sei apenas que cheira
“Muito” mal! Mas esta falta de
sensibilidade olfativa é culpa nossa. Deveríamos fazer um exercício de “open
nose” e deixarmo-nos conquistar por novos e enigmáticos odores. Parece que o
Sulfureto e os componentes amoniacais fazem um bocadinho mal à saúde. Até
deixam as persianas pretas. “Shiuuu, deixa-te disso! Quem é que vos manda ter
persianas? E depois, também as anfetaminas fazem mal, mas há malta que se ri com aquilo!”. Saio de
Alcanena atordoado com os químicos dos curtumes, chego a Liteiros e, na porta
de casa tento adivinhar o odor diferente, contudo intenso, que sinto. Serão
lulas estufadas?...não! Querem ver que é mais a puxar para o Fedor(?). E não é que é mesmo! Parece que vem daquela
fábrica de óleos com os azeites que passa o dia a descarregar para a atmosfera uns fumozitos que galgam povoações e se encrostam nas nossas
narinas durante muito tempo. Os dois Parceiros (S. João e de Igreja), bafejados
pelo fumo permanente vindo do vale, são sobretudo parceiros na dor do olfato calejado
por muitos anos daquilo. Fecham-se em casa a ver o Preço
certo na resignação de um “Isto foi
sempre assim, já estamos habituados!”. As minhas narinas ainda não se
habituaram a viver no prazer do campo e a levar com fedor industrial. Fecho as janelas de casa para não entrar
aquela fragrância; fecho as janelas do carro e vou buscar o miúdo a Torres
Novas. Ao contornar a cidade sinto um novo odor. Deixa ver! Serão iscas com cebolada?...Querem
ver que falhei de novo? O meu olfato de perdigueiro está ao nível de um buldogue.
Também é difícil de decifrar; o vento hoje
conseguia misturar duas fragrâncias no
ar. Dizem-me que é da Ribeira da Boa Água, mas também pode ser do centro de
compostagem. Uma explosão de fedor que deixa os nossos sentidos exaustos, quase
inertes e nos limita o pensamento cognitivo a uma singela questão: Quando é que o meu nariz pode ter um pouco de
descanso?! Atendendo ao grau de eficácia
das autarquias na resolução do fedor, à regulação ficcionada dos órgãos
superiores “reguladores” com siglas interessantes, ao contentamento das
indústrias produtoras do fedor e à incapacidade fisiológica dos nossos narizes
para suportar tamanha magnitude de esforço, deixo aqui uma solução estilo Cross Fit do olfacto. Essa variante da
atividade física assente na realização de uma sequência de exercícios de
elevada intensidade, poderia servir de mote para um projeto intermunicipal de
treino intensivo para os narizes mais frágeis, já que não se consegue resolução
para a porra dos cheiros. Assim, os
interessados realizariam um percurso entre as diversas localidades, com
paragens estratégias nas estações próximas dos principais polos do fedor, onde teriam
de realizar 20 inspirações profundas em cada uma delas. Depois de 3 séries de percursos e 60
inalações em cada estação , teríamos, em breve, atletas com narizes musculados
prontos para mergulhar de cabeça em qualquer lixeira a céu aberto no Ruanda.
Hoje entrei em casa para o almoço e não me manifestei ao passar na
porta. “Então, hoje não sentes o cheiro
do almoço?” É claro que sim! Já tinha saudades daquelas almondegas de
sulfureto com um travo de componente amoniacal!...?