quarta-feira, 23 de outubro de 2019

A Fragrância do Fedor



Sempre tive um bom olfacto. Raramente falhava no exercício de tentar adivinhar a ementa do almoço ao passar na porta de entrada . Representava uma das minhas principais atividades lúdicas na juventude, qual concurso televisivo de respostas rápidas. No entanto, o sucesso na resposta tropeçava muitas vezes no insucesso da expectativa. “Hoje o que sabia mesmo bem era um bitoque de vaca com ovo a cavalo afogado em batatas fritas!”… “  Epá  cheira-me a sopa de feijão verde!?” O contentamento de constatar que o trabalho do meu nariz não engana, claudica com o espectro da sopa de feijão verde nas papilas gustativas. Então e o belo bitoque? Afogou-se no prato do feijão verde.  Não sei de quem herdei essa acuidade olfactiva para identificar à distância um bom prato de favas, um entrecosto grelhado,  umas petingas fritas. Devo ter tido um antepassado perfumista ou reencarnado de um perdigueiro. Essa capacidade proveniente do meu nariz está agora a ser colocada à prova de forma intensa e avassaladora. No meu espaço quotidiano circulo num triângulo geográfico composto por 3 localidades. Trabalho em Alcanena, vivo entre Liteiros e Torres Novas. Chego às portas de Alcanena e tento adivinhar que cheiro é aquele. Um cheiro intenso a favas…?....não!  Será a Gás Sulfídrio? Devo confessar que esta resposta não veio do meu nariz, mas da wikipédia. O meu olfacto ainda não está aferido para este tipo de substâncias químicas; ainda está no bitoque e no feijão verde. Recorri ao conhecimento da internet para perceber que fedor seria aquele. E se aquilo fede em grande escala.  A sonoridade da palavra feder indicia que a coisa está longe de se aproximar de um arroz de marisco com coentros. Feder significa cheirar mal à bruta; O fedor como resultado do verbo feder entra pelas cavidades nasais qual hooligan num estádio de futebol a distribuir pontapé e chapada por tudo o que é mucosa sensitiva. O fedor não tem um odor identificável; aparece com capuz e cara tapada. A intensidade do fedor não permite adivinhar se o refugado tem alho suficiente ou se o perfume tem uma leve fragrância de jasmin; apenas transporta consigo a magnitude do “Muito” e deixa de lado a propriedade do “Quê”. Epá, este odor nauseabundo cheira a “Quê”?   Não sei, sei apenas que cheira “Muito” mal!  Mas esta falta de sensibilidade olfativa é culpa nossa. Deveríamos fazer um exercício de “open nose” e deixarmo-nos conquistar por novos e enigmáticos odores. Parece que o Sulfureto e os componentes amoniacais fazem um bocadinho mal à saúde. Até deixam as persianas pretas. “Shiuuu, deixa-te disso! Quem é que vos manda ter persianas? E depois, também as anfetaminas fazem mal,  mas há malta que se ri com aquilo!”. Saio de Alcanena atordoado com os químicos dos curtumes, chego a Liteiros e, na porta de casa tento adivinhar o odor diferente, contudo intenso, que sinto. Serão lulas estufadas?...não! Querem ver que é mais a puxar para o Fedor(?).  E não é que é mesmo! Parece que vem daquela fábrica de óleos com os azeites que passa o dia a  descarregar para a atmosfera uns fumozitos que  galgam povoações e se encrostam nas nossas narinas durante muito tempo. Os dois Parceiros (S. João e de Igreja), bafejados pelo fumo permanente vindo do vale, são sobretudo parceiros na dor do olfato calejado por muitos anos daquilo. Fecham-se em casa a ver o  Preço certo na resignação de  um “Isto foi sempre assim, já estamos habituados!”. As minhas narinas ainda não se habituaram a viver no prazer do campo e a levar com fedor industrial.  Fecho as janelas de casa para não entrar aquela fragrância; fecho as janelas do carro e vou buscar o miúdo a Torres Novas. Ao contornar a cidade sinto um novo odor. Deixa ver! Serão iscas com cebolada?...Querem ver que falhei de novo? O meu olfato de perdigueiro está ao nível de um buldogue.   Também é difícil de decifrar; o vento hoje conseguia misturar duas fragrâncias  no ar. Dizem-me que é da Ribeira da Boa Água, mas também pode ser do centro de compostagem. Uma explosão de fedor que deixa os nossos sentidos exaustos, quase inertes e nos limita o pensamento cognitivo a uma singela questão:  Quando é que o meu nariz pode ter um pouco de descanso?!  Atendendo ao grau de eficácia das autarquias na resolução do fedor, à regulação ficcionada dos órgãos superiores “reguladores” com siglas interessantes, ao contentamento das indústrias produtoras do fedor e à incapacidade fisiológica dos nossos narizes para suportar tamanha magnitude de esforço, deixo aqui uma solução estilo Cross Fit do olfacto. Essa variante da atividade física assente na realização de uma sequência de exercícios de elevada intensidade, poderia servir de mote para um projeto intermunicipal de treino intensivo para os narizes mais frágeis, já que não se consegue resolução para a porra dos cheiros.  Assim, os interessados realizariam um percurso entre as diversas localidades, com paragens estratégias nas estações próximas dos principais polos do fedor, onde teriam de realizar  20  inspirações profundas em cada uma delas.  Depois de 3 séries de percursos e 60 inalações em cada estação , teríamos, em breve, atletas com narizes musculados prontos para mergulhar de cabeça em qualquer lixeira a céu aberto no Ruanda.   
Hoje entrei em casa  para o almoço e não me manifestei ao passar na porta. “Então,  hoje não sentes o cheiro do almoço?”  É claro que sim!  Já tinha saudades daquelas almondegas de sulfureto com um travo de componente amoniacal!...?