terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Caixote Geral de Depósitos


Não percebo nada de bancos. Mas percebo alguma coisa de como o funcionamento dos bancos pode afectar as minhas rotinas diárias.  Decidi ir ao balcão da Caixa Geral de Depósitos (CGD). Depois de algumas voltas para parar o carro bem no centro, lá cheguei e tirei a senha. Um Funcionário no balcão, várias pessoas com a senha na mão. A espera até foi rápida, atendendo ao número de pessoas recebidas. Chegou à minha vez e expliquei que a operação seria simples: passar dinheiro de uma conta a prazo para uma conta à ordem, operação que fazia de forma célere até então com a caderneta, mas parece que a caderneta já não dá para isso. A funcionária disse que, para eu conseguir fazer essa operação, teria de preencher os dados numa folha A4; Não me disse mais nada,  e deixou-me ali entregue à minha sorte, a tentar resolver aquele espécie de exame final de Geometria. Depois de conseguir concretizar a tarefa, disse-lhe que não fazia qualquer nexo aquela trabalheira, ao que ela abanou afirmativamente a cabeça, respondendo entre dentes “São as ordens que temos agora, e para o processo inverso (conta a ordem para conta a prazo(?) também é preciso preencher outra folha, sabia? Apesar do silêncio, vi na cara dela vontade de ter dito, “sabe, nós temos de dar a cara e estas folhas A4, porque um energúmeno qualquer se lembrou disto”. 
Vejamos se consigo resumir o processo de transformação da Caixa, no Caixote que conhecemos hoje. Até 2017 a CGD dava muito prejuízo. Nesse buraco encaixam os 1,2 mil milhões de euros em prejuízos resultantes de vários empréstimos de risco sem garantias (Berardo e companhia) e compra de ações ruinosas (BCP) que aconteceram entre 2000 e 2015, levando o estado, com o dinheiro dos contribuintes, a injetar 4 mil milhões de euros no banco público. Dessa gestão ruinosa, quase todos os responsáveis saíram incólumes, excepto o tal do Vara que cumpre 5 anos de cadeia por tráfico de influências num outro processo(?). Chegou o Salvador Macedo (não o bispo da IURD), mas alguém com igual apetência para o negócio e tratou de reequilibrar as equações. Parece que eliminou a corrupção dos corredores e fez algo tão simples como reduzir os custos (despedindo à bruta e fechando balcões) e aumentar os lucros (carregando nas comissões das várias operações). E a coisa foi meteórica, qual espetáculo de fogo de artifício na Madeira. Em 2017 passa de prejuízo, para 51 milhões de lucro, em 2018 para 496 milhões de receita positiva e nos 1ºs 9 meses de 2019 para 640 milhões de ganhos. Um verdadeiro milagre da múltipla multiplicação. Ah grande Macedo! Macedo teve o mérito de criar esta sensação de segurança: a malta guarda-te aqui o teu dinheiro bem guardadinho (só o utilizaremos para empréstimos a outros e faturaremos massa com os spreads que sacamos), tu pagas uma taxa irrisória  de manutenção da conta como agradecimento e quando te apetecer utilizar esse dinheiro, nós criaremos as condições ideais …para te  fazer a vida num inferno(?). Deslocalizamos o balcão para uma zona onde não possas estacionar (já estamos a pensar em rolos de arame farpado a ocupar os poucos lugares existentes) , impedimos operações com as funcionais cadernetas  obrigando-te a ir ao balcão, despedimos funcionários para ficares 2 h à espera e,  quando, finalmente chegares ao balcão a definhar, trataremos de te entregar um exame de geometria para preencheres com sucesso, sem falhares uma alínea. Depois disto talvez possamos libertar o teu dinheiro.  
Acho muito bem que o banco do estado pare finalmente  de dar prejuízo e alguém ponha ordem na casa. Até porque o prejuízo não tinha a ver com o volume de depositantes, mas com a magnitude de negócios fraudulentos permitidos por gestores corruptos. Acho menos bem a transformação da CGD, banco público, num banco de carácter low cost com custos high cost; paga-se cada vez mais para se ter um serviço cada vez pior. Mas fique-se descansado que em breve teremos ao dispor a possibilidade de aceder a serviços extra, a preços também extra:  atendimento prioritário, utilização de poltronas com maior espaço para as pernas; pequenas refeições volantes  para amenizar a eventual espera excessiva; ajuda no preenchimento do exame dos requerimentos complexos; possibilidade de aceder em menos de 1 minuto ao nosso dinheiro a prazo (esta será a versão Premium dos extras).  
Ao fim de 32 anos a depositar o meu dinheiro na CGD, fui vivendo este processo de desconforto progressivo; o desconforto de nos sentirmos uma pera madura que passou de uma Caixa devidamente acondicionada e bem tratada, para  os confins de um Caixote afogado numa montanha de peras e carregada à bruta para cima de uma prateleira.    Senhor Macedo, agora que já chegou aos 640 milhões de lucro, acha que já pode aliviar um pouco as pobres peras maduras do acondicionamento à molhada nos confins de um caixote?...ou para isso será preciso  pagar mais um extra???

sábado, 7 de dezembro de 2019

Espreitar a Greta pela greta da janela




7.35h da matina, a Greta estava prestes a sair do comboio em Madrid.  Eu estava prestes a trincar a minha sandes de manteiga, acompanhada por um galão. Liguei a televisão na TVI e a repórter falava entusiasmada antecipando a saída da miúda sueca   por aquela porta, com mais de uma centena de jornalistas e câmaras apontadas para o local. A Greta tardava em sair; a repórter enchia chouriços com conversa de circunstância  caracterizando a importância da rapariga ecologista: a sua curta infância, a  luta que trava a bem do planeta, as teorias pró e a favor dessa luta, a cor do cabelo, … “Ó Soares és capaz de tirar a objectiva do meu ouvido?...até porque a Greta está quase a sair do comboio!” , a qualidade do cartaz, o dia em que fez greve às aulas,…”Ei Pablo puedes sacar tu mochila de mi nariz? É a Greta que vem lá? Não? Parece que foi falso alarme”, a  longa viagem no Catamarã pelo atlântico, o  discurso inflamado nas Nações Unidas, “Ouve lá ó Aurélio, voltas-me a dar com o cotovelo nas costelas e eu juro que te espeto com o microfone pela testa!...É agora que a Greta vai sair?....Ainda não?...Parece que vejo movimentação, é a assessora? O assessor? O tio? A hospedeira.  Ao fim de 5 minutos, mudei para a RTP e a porta do comboio igual, mas de outro ângulo. A conversa era basicamente a mesma, terminando invariavelmente com o “prestes a sair”. Um pouco como o ponta de lança Colombiano que está muito perto de marcar o primeiro golo, mas tarda em concretizar. A concretização da saída da Greta daquele comboio estava difícil e, até os polícias que tentavam impedir a multidão de câmaras concretizarem a invasão da carruagem, já bufavam e espreitavam para dentro do corredor com o pensamento ecologista: Ó miúda, se não te despachas com esse “prestes a sair” a malta vai aí acabar com esse efeito de estufa dentro da carruagem! Mudei para a SIC com esperança de ver  notícias sobre o caos nas urgências, o caos do trânsito na 2ª circular, o caos das decisões rocambolescas do Juiz Ivo Rosa, o caos dos discursos do Trump e só via o caos jornalístico em busca de uma imagem da pequena miúda a sair de um comboio em Madrid. Voltei à TVI e percebi que a espera compensa.  A miúda saiu ao fim de 10 minutos de espera com imagem no ar e a locutora ia dizendo: “parece que a Greta saiu, mas não conseguimos vê-la na imagem (?); Saiu com a família, e está uma correria de repórteres de imagem a ocultar a nossa visão da Greta; estão a tentar apanhar a jovem, mas a jovem vai fugindo”. Dos estúdios  alguém grita : De quem foi a ideia de mandar Zé Manel com um metro e cinquenta  cobrir o evento, competindo contra os cavalões espanhóis? Mudei para a RTP e percebi que  os operadores de imagem portugueses são os mais baixos da contenda. Imagem da Greta? blufas. A miúda sobe por umas escadas rolantes e a polícia veda a subida aos jornalistas. Aí, o Zé Manel ganha vantagem na corrida em busca de umas outras escadas. “Posso ser pequenino, mas sou muito rápido e especialista em fintas; até fui centro campista no Torreense!”. A imagem vai oscilando enquanto o Zé sobe à velocidade máxima a escadaria; mudei para a RTP e percebi que o seu operador de imagem era tão baixo como o Zé,  mas consideravelmente mais lento. O seu  homólogo já estava no topo das escadas e este ainda não tinha iniciado a subida. Dos estúdios da RTP alguém Grita “Eu bem avisei o Aurélio que deveria frequentar as aulas de Cross Fit, mas ele continua a comer dois mil folhas ao pequeno almoço!”. A TVI nesse aspecto saiu claramente vencedora: depois de 15 minutos em directo, conseguiu mostrar, por breves instantes,  o vulto da Greta por uma greta entre o braço e o tronco do polícia.  O Aurélio ainda  se conseguiu juntar ofegante ao Zé Manel  para a recolha da imagem final do carro elétrico onde a Greta entrou. Parece que esses carros não são poluentes; são amigos do ambiente, excepto  os pneus, os plásticos do tablier, o fabrico das peças de inox, os estofos de pele sintética, mas o mundo perfeito não existe…
Bebi o galão, apaguei a televisão e fui refletindo rumo ao trabalho sobre este frenesim em torno da Greta e  a reflexão da Greta em torno deste frenesim. Naquele dia em que decidiu faltar à aula de Biologia na matéria chata dos Procariontes  e se lembrou de pintar o tal cartaz “Greve escolar pelo clima”, nunca imaginou que todas aquelas objetivas lhe iriam cair em cima de forma tão eufórica; é muita pegada ecológica sobre os seus ombros. Ainda tinha a esperança que as objetivas se virassem para a malta ecologista mais afoita, como a tipa que aguentou 15 minutos seguidos com as carnes de molho numa fonte de Madrid;  os ativistas que colaram as mãos na montra de uma loja com aquela cola que até arranca a pele, ou  os tipos da Greenpeace que se acorrentam a petroleiros. Mas não.   Um dia destes a Greta ainda volta a pegar na sua icónica frase ”Deviam ter vergonha… senhores jornalistas! Com tanto facto importante para cobrir e estão aqui à porta de um comboio 10 minutos à espera de uma miúda que fez greve aos Procariontes e ainda por cima  escalar um operador de imagem com um metro e cinquenta? E já agora ó stora, acha que posso voltar para a sua aula de Biologia, afinal há matérias mais chatas do que a dos Procariontes…”


sábado, 9 de novembro de 2019

Eu é que sei



Vinha  a ouvir no rádio do carro a rubrica  “Eu é que sei!”. A ideia passa por lançar perguntas às crianças para elas opinarem sobre o que pensam de cada temática. Eu é que sei …. “O que é um estetoscópio”, “ porque há pessoas boas e más”, “porque as pessoas usam malas”, “porque é que as aranhas têm 8 olhos” , “O que é um pirilampo”, “para que serve a manete de mudanças” . Questões de elevada relevância, às quais a criançada responde com toda a certeza sobre as suas evidentes incertezas.  À pergunta de “Quais são os teus direitos?” o miúdo responde “ Direito de comer alguma coisa boa, mas gosto mais de brincar com as Nerfs”(?). Ainda atordoado com as desarmantes respostas, fui almoçar integrado num grupo numeroso e ali entre a sopa de coentros e o bacalhau com natas ouvi ,  saído de um dos cantos da mesa, um sonoro:  “cala-te lá, eu é que sei!”. Espera aí, será que a rubrica da rádio entrou no nosso almoço? Espreitei para ver quem lançou essa certeza, à espera de ver um miúdo a falar com propriedade  do tema “o que é uma chiclete?” e verifiquei que se tratava de um calmeirão de fato e gravata.   Falou muito, mesmo muito. A defesa da sua ideia estava a ser extensa e intensa. Esbracejava de forma emotiva como se de uma apresentação de tese de doutoramento se tratasse e, sempre que alguém se preparava para entrar na contenda, ouvia: “espera aí que não terminei!”. E se aquilo demorou tempo a terminar. Quando finalmente veio a conta lá o tipo se calou (a conta costuma despertar uma certa letargia).   A praga do “Eu é que sei” instalou-se nas sociedades atuais e veio para ficar. A contundência do  “Eu é que sei” não dá margem de manobra ao outro de ripostar. O “Eu é que” atribui um regime de exclusividade do conhecimento; mais ninguém sabe o que eu sei, por que Eu É que sei. O inabalável saber  extermina a hipótese  de saber do outro. E não confundir o “Eu é que sei” com o “Eu acho que sei”. O segundo coloca a hipótese de poder não saber, o primeiro sabe que não existe hipótese de não saber; Acha que caiu dentro de um caldeirão cheio de enciclopédias Larousse quando era pequenino e já não precisa de ler mais nenhuma página.  A rubrica da rádio  é adequada por revelar uma situação bem atual. Temos as escolas cheias de miúdos “Eu é que sei”, mesmo antes de saberem coisa alguma .  Miúdos, cujo ego foi sendo insuflado  ao longo da sua curta vida, e cujo  pico de sobranceria descamba no “Eu é que sei” .  A criança é que sabe, porque o adulto lhe foi dizendo, de forma sucessiva  “não queres comer a sopa? Tu é que sabes.”; “queres fazer birra quando não te compramos o Kinder? tu é que sabes.”; “não gostas de emprestar brinquedos ao Zéquinha? Tu é que sabes.”  “não queres arrumar a loiça do jantar? Tu é que sabes.”, “queres ir apanhar uma piela com os amigos? Tu é que sabes.”, “achas que a professora de Filosofia é uma chata? Tu é que sabes.”, “queres estar o dia inteiro em frente ao telemóvel? Tu é que sabes.”.  E a criança ficou mesmo a saber tudo com extrema propriedade.
A versão “Eu já sei” é uma variante do  “Eu é que sei” menos agressiva e absolutista.  No “Eu já  sei”, não elimino o conhecimento do outro, apenas igualo. “A função quadrática da matemática? Ó stora, escusa de explicar mais porque eu já sei essa treta toda!”. No “Eu é que sei”, se o resultado  da função trigonométrica não for  o  esperado, a única hipótese recai sobre o evidente erro da Stora a corrigir tão imaculada solução. O “Eu é que sei”  acredita nas suas próprias soluções.  No entanto, algumas vezes (raras), a verdade absoluta do “Eu é que sei” esbarra em fontes de conhecimento difíceis de contestar. Ao discutir futebol com um Mourinho, Culinária com um Avilez ou importação de café com um Nabeiro, o “Eu é que sei” transforma-se em “Esta análise vem corroborar o que eu já aplicava há algum tempo!”. O professor catedrático instalado no interior do seu ego, impede-o de admitir “Oh Mourinho, esse plano de treino táctico é fabuloso, nunca tinha pensado nisso!”
Vamo-nos cruzando no nosso quotidiano com muitos “Eu é que sei”, sejam eles crianças, jovens ou adultos. Malta enclausurada no seu hermético  conhecimento, com  alguma  carência nos sistemas de recepção de informação e grande fluência nos sistemas de expulsão de bitaites; ouvem pouco, falam muito; sabem pouco, acham muito.

Pesquisei de novo a rubrica da rádio “Eu é que sei” e encontrei a pergunta “De que cor é o cavalo branco de napoleão?”. Queria uma fácil, uma que não desse azo aos mais proeminentes “Eu é que sei” de se espalharem ao comprido. Entre as várias respostas dadas pelos miúdos, passou-se por todas as cores do arco-íris, do amarelo ao preto, até se chegar ao António que disse de forma contundente: “se o cavalo é branco, é branco. Qual é a dúvida?”. Parece que a coisa terminou no recreio da escola, com o Samuel a apertar os colarinhos ao António, gritando: “Oh seu grande ignorante, então não sabes que o cavalo branco do Napoleão é Lilás, pá!?”

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

A Fragrância do Fedor



Sempre tive um bom olfacto. Raramente falhava no exercício de tentar adivinhar a ementa do almoço ao passar na porta de entrada . Representava uma das minhas principais atividades lúdicas na juventude, qual concurso televisivo de respostas rápidas. No entanto, o sucesso na resposta tropeçava muitas vezes no insucesso da expectativa. “Hoje o que sabia mesmo bem era um bitoque de vaca com ovo a cavalo afogado em batatas fritas!”… “  Epá  cheira-me a sopa de feijão verde!?” O contentamento de constatar que o trabalho do meu nariz não engana, claudica com o espectro da sopa de feijão verde nas papilas gustativas. Então e o belo bitoque? Afogou-se no prato do feijão verde.  Não sei de quem herdei essa acuidade olfactiva para identificar à distância um bom prato de favas, um entrecosto grelhado,  umas petingas fritas. Devo ter tido um antepassado perfumista ou reencarnado de um perdigueiro. Essa capacidade proveniente do meu nariz está agora a ser colocada à prova de forma intensa e avassaladora. No meu espaço quotidiano circulo num triângulo geográfico composto por 3 localidades. Trabalho em Alcanena, vivo entre Liteiros e Torres Novas. Chego às portas de Alcanena e tento adivinhar que cheiro é aquele. Um cheiro intenso a favas…?....não!  Será a Gás Sulfídrio? Devo confessar que esta resposta não veio do meu nariz, mas da wikipédia. O meu olfacto ainda não está aferido para este tipo de substâncias químicas; ainda está no bitoque e no feijão verde. Recorri ao conhecimento da internet para perceber que fedor seria aquele. E se aquilo fede em grande escala.  A sonoridade da palavra feder indicia que a coisa está longe de se aproximar de um arroz de marisco com coentros. Feder significa cheirar mal à bruta; O fedor como resultado do verbo feder entra pelas cavidades nasais qual hooligan num estádio de futebol a distribuir pontapé e chapada por tudo o que é mucosa sensitiva. O fedor não tem um odor identificável; aparece com capuz e cara tapada. A intensidade do fedor não permite adivinhar se o refugado tem alho suficiente ou se o perfume tem uma leve fragrância de jasmin; apenas transporta consigo a magnitude do “Muito” e deixa de lado a propriedade do “Quê”. Epá, este odor nauseabundo cheira a “Quê”?   Não sei, sei apenas que cheira “Muito” mal!  Mas esta falta de sensibilidade olfativa é culpa nossa. Deveríamos fazer um exercício de “open nose” e deixarmo-nos conquistar por novos e enigmáticos odores. Parece que o Sulfureto e os componentes amoniacais fazem um bocadinho mal à saúde. Até deixam as persianas pretas. “Shiuuu, deixa-te disso! Quem é que vos manda ter persianas? E depois, também as anfetaminas fazem mal,  mas há malta que se ri com aquilo!”. Saio de Alcanena atordoado com os químicos dos curtumes, chego a Liteiros e, na porta de casa tento adivinhar o odor diferente, contudo intenso, que sinto. Serão lulas estufadas?...não! Querem ver que é mais a puxar para o Fedor(?).  E não é que é mesmo! Parece que vem daquela fábrica de óleos com os azeites que passa o dia a  descarregar para a atmosfera uns fumozitos que  galgam povoações e se encrostam nas nossas narinas durante muito tempo. Os dois Parceiros (S. João e de Igreja), bafejados pelo fumo permanente vindo do vale, são sobretudo parceiros na dor do olfato calejado por muitos anos daquilo. Fecham-se em casa a ver o  Preço certo na resignação de  um “Isto foi sempre assim, já estamos habituados!”. As minhas narinas ainda não se habituaram a viver no prazer do campo e a levar com fedor industrial.  Fecho as janelas de casa para não entrar aquela fragrância; fecho as janelas do carro e vou buscar o miúdo a Torres Novas. Ao contornar a cidade sinto um novo odor. Deixa ver! Serão iscas com cebolada?...Querem ver que falhei de novo? O meu olfato de perdigueiro está ao nível de um buldogue.   Também é difícil de decifrar; o vento hoje conseguia misturar duas fragrâncias  no ar. Dizem-me que é da Ribeira da Boa Água, mas também pode ser do centro de compostagem. Uma explosão de fedor que deixa os nossos sentidos exaustos, quase inertes e nos limita o pensamento cognitivo a uma singela questão:  Quando é que o meu nariz pode ter um pouco de descanso?!  Atendendo ao grau de eficácia das autarquias na resolução do fedor, à regulação ficcionada dos órgãos superiores “reguladores” com siglas interessantes, ao contentamento das indústrias produtoras do fedor e à incapacidade fisiológica dos nossos narizes para suportar tamanha magnitude de esforço, deixo aqui uma solução estilo Cross Fit do olfacto. Essa variante da atividade física assente na realização de uma sequência de exercícios de elevada intensidade, poderia servir de mote para um projeto intermunicipal de treino intensivo para os narizes mais frágeis, já que não se consegue resolução para a porra dos cheiros.  Assim, os interessados realizariam um percurso entre as diversas localidades, com paragens estratégias nas estações próximas dos principais polos do fedor, onde teriam de realizar  20  inspirações profundas em cada uma delas.  Depois de 3 séries de percursos e 60 inalações em cada estação , teríamos, em breve, atletas com narizes musculados prontos para mergulhar de cabeça em qualquer lixeira a céu aberto no Ruanda.   
Hoje entrei em casa  para o almoço e não me manifestei ao passar na porta. “Então,  hoje não sentes o cheiro do almoço?”  É claro que sim!  Já tinha saudades daquelas almondegas de sulfureto com um travo de componente amoniacal!...?      

domingo, 19 de maio de 2019

O Urso Parvo



O regresso do Urso Pardo a Portugal, deixou-me surpreendido. Numa primeira reacção à notícia não contive a expressão “mas o Urso está parvo? então não estava melhor na próspera vizinha Espanha?”. Depois de ver a declaração do Apicultor português, ao perceber que o Urso se lambuzou com o mel das suas abelhas, percebi que o Urso está longe de ser Parvo e que escolheu o território ideal para se instalar.  “Após 200 anos de extinção, ser atacado por um urso-pardo é um grande privilégio para mim.” Confessava o  simpático apicultor sem vestígios de  marcas das garras do animal tatuadas nas suas costas. Percebe-se que não assistiu atento ao gemido  de  um  DiCaprio estraçalhado pelo dócil mamífero no filme Renascido. Afinal “O que valem os 50 quilos de mel que o animal devorou das colmeias comparados com a importância do regresso de uma espécie extinta em Portugal desde 1843?”. Ó Luis vai dizer isso às tuas abelhas, depois de se terem esfalfado com as ventas encostadas ao rosmaninho para conseguirem produzir 5 gramas de mel por ano!? Anda uma abelhinha a dar à asinha, sugando o pólen de 5 milhões de flores para conseguir 1 kg de mel ,sem tempo para se queixar  da rinite alérgica, e chega este grandalhão peludo e zás, engole o trabalho de 2 anos de árduo esforço de 80 mil abelhas.  Solidário com o trabalho das abelhas, não deixo de sentir, tal como o apicultor Luís, uma certo carinho com o fofinho urso pardo, bicho que faz parte do nosso imaginário infantil, sempre simpático, sempre amistoso, agarrado alegre ao seu  pote de mel, produzido por outros.
O Urso Pardo Europeu saiu da Cantábria espanhola para dar uma perninha a Portugal,  por estar  farto de ser escorraçado pelos apicultores e pastores castelhanos,  um pouco chateados com as incursões deste aos potes de mel e às coxas felpudas das ovelhinhas. Alguém lhe rugiu ao ouvido que  assistiu a um  espectáculo fabuloso dado por um tal de Berardo, uma espécie de urso pardo madeirense, e que  aqui estaria seguro, mesmo depois de limpar todas as colmeias da região.  Esse tal espécime proveniente da Madeira, que passou pela África do sul e se fixou finalmente em Portugal, percebeu que poderia lambuzar-se a muitos 50kg de mel, que ninguém diria nada, até correria o risco de ouvir “o que são 1000 kg de mel comparados com a importância  do regresso de uma espécie extinta desde 1843?...?...ah, não está extinta?....quem?...o Sócrates?...o Salgado?...o Vara?...o Lima?... Desculpem por essa imprecisão, mas então, se não foi por uma questão de acontecimento histórico relevante, não percebo bem a permissividade dos “apicultores” que tomavam conta da colmeia CGD, perante o apetite voraz do Joe pardo.   Depois de ver o tom jocoso e alegre desse tal Berardo depois de meter as fuças no mel (e foi mel em barda), o urso pardo espanhol, percebe que o território lusitano é o terreno fértil para ele dar azo de forma alarve e impune à sua gula, sem correr o risco de levar uma paulada no dorso ou uma chumbada no traseiro. Mas atenção que se tiveres o título de comendador, corres o risco de ficar sem ele; pensa bem nesse contratempo agressivo…
Quanto às abelhinhas, essas, continuarão nos seus múltiplos voos diários, de rosmaninho em rosmaninho, esperando que  um dia o apicultor se chateie  mesmo a sério e trate de cumprir a sua função: escorraçar o parvo do pardo que está anafado de tanto se lambuzar com o mel produzido por outros. E se o apicultor , também ele,  sofrer de parvoíce parda, terão de ser as abelhas a agir; afinal têm um ferrão que dói um bocadinho, mesmo no dorso adiposo dos Berardos pardos deste país.
Entretanto, o Urso pardo espanhol já saiu de Portugal e voltou a Espanha. Parece que a Ursa parda não o quis acompanhar e lhe confidenciou por rugido à distância: “Volta mas é para casa, que aí corres o risco de sofrer de obesidade mórbida; Comes o que queres e não tens de correr para fugir de ninguém”. O Urso ainda quis responder: “Mas ó querida,  só enfardei 50kg, ainda faltam mais 950 para poder soltar com propriedade uma valente risada na cara das parvas das abelhas que o produziram…”  

sábado, 9 de março de 2019

O Nhonhinhas



A nonhinhisse como fenómeno social surgiu para nos pôr à prova. Entrou nas nossas vidas sem se dar por isso, mas percebemos o efeito corrosivo que tem no nosso bem estar. Um indivíduo coloca-se na fila de uma repartição comercial. Tem a senha 47 na mão e vê no ecrã que vai na 43. “é rápido” pensa. Ao fim de uma hora é recebido pelo tipo que lhe pergunta: “Tem aí a senha? Mostre e Espete aqui no prego!”. Quando sentimos o alívio pela espera terminar, somos recebidos por um contundente “Espete aqui no prego…?...”. E é aqui que surge o fiel seguidor do movimento da nhonhinhisse: o nhonhinhas. Estaríamos prestes a resolver o nosso assunto de forma célere, apenas queríamos uma informação, mas o nhonhinhas trata logo de nos dizer que não será nada fácil. Só com o impresso 78, com assinatura reconhecida, com a aprovação do chefe que por acaso é um bocadinho exigente nessas coisas, ou seja, as possibilidades de esclarecimento da nossa dúvida, estão ao nível da resolução do conflito na Venezuela. O nhonhinhas não facilita; o nhonhinhas cria obstáculos. Percebemos que sem esse entrave do outro lado do balcão, teríamos sido recebidos meia hora antes. O nhonhinhas é portador de uma competência que visa aleijar...devagarinho. Há quem confunda o nhonhinhas com o chato. Mas o chato só chateia, o nhonhinhas escarafuncha de forma ardilosa até magoar. É disso que se alimenta o seu ego. Mas quem é de facto um potencial nhonhinhas? Percebe-se que teve uma difícil adolescência, onde imperou uma clara falta de reconhecimento social. O último a ser escolhido para as equipas de futebol, o primeiro a abrir a porta à professora de matemática. O nhonhinhas teve o mérito de não se deixar abater perante a incompreensão dos outros quando gritavam“Ó graxista!”, depois dele levar todos os dias a pasta da professora no final da aula e de lhe oferecer caixas de chocolates no Natal. Fez do estudo a sua melhor ferramenta. Ai é assim? Então já vão ver! O nhonhinhas agarrou-se aos livros, estudou para singrar e lhe permitir ter algum poder para escaranfunchar e magoar um bocadinho aqueles que não reconheceram as suas virtudes. No entanto o nhonhinhas não singrou bem o que queria; ficou ali a meio caminho. Um pouco como a bactéria da legionela que se desenvolve na humidade da canalização entre a caldeira e o chuveiro. O nhonhinhas situa-se entre a chefia a sério e os utilizadores dos seus serviços. A caldeira lança a água quentinha e a bactéria trata de se introduzir nela para cair em cima do couro cabeludo do utente e fazer-lhe a vida negra. O nhonhinhas convive bem com essa tarefa: lambe o traseiro da chefia; e usa o traseiro do utente para aplicar as suas bactérias. Sente-se ligeiramente subjugado e bastante subjugador. O nhonhinhas aspira a liderar a sério, mas falta-lhe carisma, humanismo, competência social. Mas lida bem com a sua quota parte do poder que se exterioriza na capacidade de conseguir ver a sua vítima a esbracejar e a ficar com vontade de lhe dar dois estalos. Mas o nhonhinhas sabe que não tem cara para levar 2 estalos; sente-se protegido. Usufrui de forma prazerosa do insucesso dos outros. No seu percurso de formação de personalidade, o nhonhinhas aglutina uma série de características bem vincadas, onde a cobiça assume um papel de relevo. Cresceu no meio do sucesso dos outros, facto que, na sua cabeça, aumentava a sua sensação de insucesso. Ainda não digeriu o facto da espampanante Jéssica, a sua paixão platónica com a qual nunca trocou uma palavra, ter sido apanhada enrolada com o Sandro atrás do campo da bola. Ai é assim ó Jessica?...
A proliferação de nhonhinhas está a ser feita em todos os sectores da sociedade, sejam funcionários de repartições, políticos, médicos, professores, juízes, polícias, enfermeiros, taxistas, empregados de restaurantes e até canalizadores (ai queres tubos em aço inoxidável?...então toma lá estes em pvc q’é p’ra aprenderes não te armares em Sandro!). Já existem casos de nhonhinhas que conseguiram subir pelas paredes da canalização até aos cargos do poder mais a sério e conseguiram espalhar de forma mais contundente a Nhonhisse. Podem ser nhonhões com todos os outros nhonhinhas que se encontram a meio caminho e destilar nhonhisse sem controlo, à grande.
Urge tomar medidas profilácticas no combate ao nhonhismo desde tenra idade. Como professor de Educação Física, sinto que tenho obrigações acrescidas nesse campo. Na última aula de Futebol, fui eu que fiz as equipas para evitar o embaraço de existir uma última escolha e com ela o nascimento de potenciais nhonhinhas. Quando distribuía coletes pelas equipas, ouvi um aluno dizer para o outro: Ó pá, tu vais para a baliza e é já!… Quando me virei para tentar resolver a questão, pareceu-me ouvir o guarda-redes forçado vociferar entre dentes : Ai é assim?…Então já vais ver...