quinta-feira, 21 de julho de 2022

Campismo em quadrupedia

 Relembrar uma tentativa de acampar com miúdos....


Imbuído de uma enorme nostalgia, dos meus tempos de campista adolescente, da tenda canadiada e do fogão camping gás onde fazia umas arrozadas  de salsichas,  pensei como seria agradável partilhar estas minhas remotas vivências  com os meus filhos.  Chegámos a um parque de campismo a abarrotar de gente e apressámo-nos a montar a nossa tenda, um imponente iglo. No momento de espetar as espias naquele solo empedernido, falta-nos o que falta sempre ao aspirante de campista: o martelo. Vamos à procura de pedras para bater na espia e encontramos sempre uma que magoa a mão e é pouco eficaz na hora de espetar o ferro no betão. Quando entortamos a quarta espia e partimos a terceira pedra,  olhamos para o lado e deparamo-nos com o personagem que dá cabo do nosso ego de campista esporádico.  Ali está ele, o campista residente,  com um olhar de desdém pelo nosso empenhado esforço no sentido de conseguir cravar as espias. E não há nada mais humilhante do que, depois de nos ver ali algum tempo a de gladiar entre a espia, o calhau e o cordel,  nos dizer  se precisamos de uma ajuda abalizada. Declinamos de forma educada e continuamos, com alguma dignidade, a nossa luta para deixar a coisa apresentável. O campista residente retira-se para o seu luxuoso abrigo: Uma tenda de fazer inveja ao Sultão do Dubai; com todo o conforto eléctrico de qualquer casa, parabólica e micro-ondas incluídos, o mosaico incrustado no chão, cadeiras de encosto em frente da televisão e sebes bem regadas à volta do espaço. Nós, tínhamos aquela carapaça de cágado, onde teriam de caber 4 corpos com toda a roupa e  farnel. E é na posição de cágado que temos de entrar nos aposentos e com ela destruir toda a nostalgia da adolescência.  Aí percebemos esse lado pernicioso do campismo que nos obriga a um exercício de alternância constante  entre o bipedismo e a quadrupedia.   Vamos dar um mergulho à praia e…”Onde estão os fatos de banho dos miúdos?” pergunto,  “Estão no fundo da tenda ali debaixo das calças e por cima dos casacos!”, entro a rastejar e procuro no meio do monte de roupa onde poderão estar.  O monte de roupa cai em cima dos sacos de cama e saio a rastejar com os fatos de banho na boca. “E o protector solar?”. Rastejo novamente e novamente chafurdo naquele amontoado de peças. Saio triunfante, com o troféu 40 UV seguro na mão.  

Depois do mergulho na praia, voltamos à carapaça que, depois de ficar todo o dia ali ao sol, se transforma numa espécie de sauna em miniatura. Entramos no forno em quadrupedia para encontrar  o champô e as toalhas para o duche.  Chegamos aos balneários e encontramos uma bicha que vai até aos urinóis. Esperamos que chegue a nossa vez e finalmente lá entramos para o retemperador duche…frio??? Melhor assim que se poupa água. Esfrega rápido o miúdo; esfrega rápido o pai, embrulha na toalha e vá de correr com cabelos ao vento até à tenda em busca do quentinho. Entramos os dois e procuramos a roupa. O  monte já passou a colina; chegam as duas cágadas e instala-se  um pandemónio ao nível de uma luta na lama numa discoteca em Albufeira. Conseguirmo-nos vestir ali no interior da minúscula carapaça sem dar uma cotovelada ou um pontapé no nariz de alguém, revela-se uma árdua tarefa. Descobrimos que o fabricante da tenda de “4 lugares” era definitivamente chinês, uma vez que aquele espaço daria, quanto muito, para albergar 4 chinezinhos ou  uma família de porquinhos da índia. Depois de algumas nódoas negras, rastejamos a suar para o exterior e cheiramos a arte gastronómica dos nossos vizinhos residentes. Qualquer campista que se preze tem de ter um grelhador para assar os seus petiscos; Da direita vinha o fumo da bela da sardinha, da esquerda o odor do picante frango na brasa. Estávamos na confluência de cheiros, a comer a nossa lata de atum com batatas pála-pála, sentados numa manta e envoltos em fumo do petisco dos outros.   Os outros, sentam-se à mesa e exibem entre os dedos e os dentes,  as iguarias das quais nós só sentimos o cheiro.

 Chegou à hora da soneca. Conseguimos encaixar os quatro muito a custo e temos de fechar as aberturas por causa das melgas.  O termo-acumulador funcionou na perfeição durante o dia, e agora, estava ali, em processo de compostagem, com o nariz encostado ao pano lateral da tenda e a orelha a roçar no que resta da colina de roupa. “Que se lixem as melgas!”. Abri os orifícios e pus a cabeça de fora.  Agora sim, está mais fresco. Vou finalmente dormir,…,péra lá que o vizinho está a explicar à mulher os planos para amanhã; o tipo da caravana em frente está a falar numa língua esquisita que deve ser sueco; e oiço também lá longe a rapaziada que chegou agora da nigth. No campismo é assim; o som propaga-se de forma mais fácil, tornando difícil o descanso pleno. É agora!...depois de uma hora a ouvir toda a animação circundante, estou quase a aterrar…isso, num sono profundo,….Dlim,dlão,…dlim,dlão(?). As vaquinhas que pastam junto da vedação onde encostei a tenda, têm badalos, que badalaram a noite toda, badalando-me também o meu estado de vigília,… dlim,dlão.

Com olheiras e picadelas de melgas arrumei as tralhas, e pisguei-me dali na manhã seguinte, pensando como a falta de material e disponibilidade adequados    poderão ensombrar as nossas doces recordações.  No entanto, a minha memória, está a ver se insiste na partida do campismo; de me obrigar a comprar uma tenda maior, uma mesa com banquinhos e um grelhador, mas tenho quase a certeza de que um dia, ainda me vou lembrar de um tal hotel de 5 estrelas onde terei passado dias muito felizes na adolescência.