sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Alice no país dos catalisadores

 



Já é oficial. Vitor Macedo foi coroado como o Rei dos catalisadores. Depois de anos a desenvolver um trabalho árduo na procura deste título nobiliárquico, eis que surge o reconhecimento público pela sua vasta obra. Sabia de antemão que estaria em desvantagem, por não descender de nobres linhagens, mas não baixou os braços, meteu mãos à rebarbadora e finalmente foi recompensado. Especializou-se no ramo automóvel , mais especificamente na área dos catalisadores, desenvolvendo competências únicas na arte do gamanço dos mesmos. Criou a técnica inovadora LSGF (Levanta, Serra, Gama e Foge) , mas cedo percebeu que faltava aperfeiçoar o último skill. Depois de levantar o carro alheio com um macaco, de serrar o catalisador e apoderar-se dele em tempo recorde, coloca-se em fuga mas é frequentemente apanhado pela polícia. Curiosamente foi essa sua lacuna na técnica do “Foge” que o trouxe para as luzes da ribalta.   Desde Maio foi caçado pela polícia 6 vezes em fugas com contornos hollywoodescos em carros roubados e estampaços em contramão. Depois de levado a tribunal foi sempre posto em liberdade, mesmo com os 140 processos crime no currículo.  Os juízes decidiram dar-lhe a oportunidade de melhorar essa aresta ainda por limar, da fuga em segurança. De qualquer das formas, o título de Rei já ninguém lho tira. E com toda a Justiça…envolvida. Estava eu a matutar nesta particularidade  nacional do ladrão coroado rei e lembrei-me da Alice, a tal do país das maravilhas. Reza a história que “Alice, segue um coelho e é projetada para um novo mundo. Aí é confrontada com o absurdo, o impossível, questionando tudo o que tinha aprendido até então”.

Alice é recebida por Marcelo à entrada do mundo lusitano. “Minha querida, seja Benvinda a este país Maravilhoso. Se quiser fazer uma selfie dê-me aí a sua máquina e faça um sorriso enquanto eu lhe espeto  uma beijoca na face. Eu sou um presidente especial. O Rei das Selfies e das beijocas.  Sou um positivista por natureza; comigo no comando vai tudo correr bem…mesmo que pareça estar a correr tudo muito mal” . A chamada maravilha da transformação.   Alice ficou maravilhada com a receção feita pelo próprio rei das selfies e entrou num sumptuoso carro elétrico que tinha à sua espera. “Nós aqui somos pela ecologia; quase autossuficientes em energias renováveis. Estamos só à espera que uma montanha, que temos ali para os lados da Guarda, arda mais um bocadinho, para que as nossas reservas de lítio fiquem totalmente disponíveis, e cada português possa finalmente comprar o seu Tesla”.  Até porque o preço da gasolina está pela hora da morte, por causa da pandemia, da guerra na Ucrânia, da seca extrema, da fuga das gaivotas para as berlengas. “Quer mais uma selfizita com este esplendoroso edifício do ministério das finanças ali atrás? Representa um dos símbolos da nossa arte de subtração de bens a terceiros, sem recurso a rebarbadora e de forma totalmente legal. Com sorte ainda apanhamos o Leão a fumar a sua cigarrada à varanda, enquanto congemina uma nova aplicação de impostos com a técnica inovadora LSGF criada pelo Rei dos Catalisadores.” Alice acedeu a mais uma selfie.  “Tenha cuidado com esse buraco no passeio, porque hoje é sábado e as urgências pediátricas estão fechadas.  Não imagina o sucesso desta estratégia inovadora  em termos de afluência aos serviços de saúde. Depois do outro Macedo ter aplicado a rebarbadora nos gastos supérfluos do SNS e da Martinha ter investido em  força nas zaragatoas, percebe-se que há muito menos crianças a cair, muito menos urgências a sair e muito menos grávidas a parir. O nosso SNS é uma maravilha da eficácia!” Alice continua na sua descoberta, atónita com tanta bizarrice e questiona o Rei sobre a magnitude daquela fila enorme em frente de uma loja de livros. “São os Coldplay! Granda banda pá!” Grita de forma efusiva Marcelo tirando selfies com toda a malta da fila “É para lhes dar ânimo nesta luta; afinal há aqui pessoas desde a uma da manhã. O presidente de um país das maravilhas, tem de desempenhar esse papel de proximidade, de afecto e carinho.” E continuava “sabe que nós somos um dos países  com mais festivais de verão do planeta. Muita luz, muito sound byte, muita loucura, muita ganza. É sinal que a malta anda contente e cheia de massa para gastar”. Alice, já um pouco extenuada, pergunta ao rei da selfie se não havia neste país das maravilhas as tais cartas falantes de que tinha ouvido falar…“Claro que temos a nossa maior carta (quase)falante, o nosso ás de trunfo, o nosso guia espiritual! Veja ali sentado no trono, rodeado por jerricans, rebarbadoras e notas de 100 euros. O Rei dos Catalisadores! Este tipo representa todas as virtudes do nosso sistema humanista e tolerante.” Apenas aqui neste país das maravilhas seria possível um tipo gamar à fartazana às claras e ser  coroado rei. Já se tinha  tentado algo do género com um ex-primeiro ministro, mas esse ainda ficou um tempito na choldra, antes de sair radiante para o sol da Ericeira. O Rei dos catalisadores continuará no trono, já a pensar no upgrade da sua técnica juntando a sigla “R” de Riso. O Riso que caracteriza a chacota perante um divertido sistema judicial que se comporta ao nível de um  festivaleiro de verão; muita luz, muito sound byte, muita loucura, muita ganza. “Quer fazer uma selfie aqui comigo e com o Rei dos Catalisadores?” pergunta Marcelo para Alice. “Sabe, eu venho de uma obra literária nonsence, onde os animais falam , as loiças ganham vida e a Rainha de copas manda cortar cabeças quando a incomodam. De momento, não preciso de presenciar mais absurdos. Quero é voltar a encontrar o raio do coelho para me tirar deste sítio, não vá a rainha de copas aparecer e  mandar a mão ao pobre do Rei dos Catalisadores, terminando de forma dramática este regabofe.”



quinta-feira, 21 de julho de 2022

Campismo em quadrupedia

 Relembrar uma tentativa de acampar com miúdos....


Imbuído de uma enorme nostalgia, dos meus tempos de campista adolescente, da tenda canadiada e do fogão camping gás onde fazia umas arrozadas  de salsichas,  pensei como seria agradável partilhar estas minhas remotas vivências  com os meus filhos.  Chegámos a um parque de campismo a abarrotar de gente e apressámo-nos a montar a nossa tenda, um imponente iglo. No momento de espetar as espias naquele solo empedernido, falta-nos o que falta sempre ao aspirante de campista: o martelo. Vamos à procura de pedras para bater na espia e encontramos sempre uma que magoa a mão e é pouco eficaz na hora de espetar o ferro no betão. Quando entortamos a quarta espia e partimos a terceira pedra,  olhamos para o lado e deparamo-nos com o personagem que dá cabo do nosso ego de campista esporádico.  Ali está ele, o campista residente,  com um olhar de desdém pelo nosso empenhado esforço no sentido de conseguir cravar as espias. E não há nada mais humilhante do que, depois de nos ver ali algum tempo a de gladiar entre a espia, o calhau e o cordel,  nos dizer  se precisamos de uma ajuda abalizada. Declinamos de forma educada e continuamos, com alguma dignidade, a nossa luta para deixar a coisa apresentável. O campista residente retira-se para o seu luxuoso abrigo: Uma tenda de fazer inveja ao Sultão do Dubai; com todo o conforto eléctrico de qualquer casa, parabólica e micro-ondas incluídos, o mosaico incrustado no chão, cadeiras de encosto em frente da televisão e sebes bem regadas à volta do espaço. Nós, tínhamos aquela carapaça de cágado, onde teriam de caber 4 corpos com toda a roupa e  farnel. E é na posição de cágado que temos de entrar nos aposentos e com ela destruir toda a nostalgia da adolescência.  Aí percebemos esse lado pernicioso do campismo que nos obriga a um exercício de alternância constante  entre o bipedismo e a quadrupedia.   Vamos dar um mergulho à praia e…”Onde estão os fatos de banho dos miúdos?” pergunto,  “Estão no fundo da tenda ali debaixo das calças e por cima dos casacos!”, entro a rastejar e procuro no meio do monte de roupa onde poderão estar.  O monte de roupa cai em cima dos sacos de cama e saio a rastejar com os fatos de banho na boca. “E o protector solar?”. Rastejo novamente e novamente chafurdo naquele amontoado de peças. Saio triunfante, com o troféu 40 UV seguro na mão.  

Depois do mergulho na praia, voltamos à carapaça que, depois de ficar todo o dia ali ao sol, se transforma numa espécie de sauna em miniatura. Entramos no forno em quadrupedia para encontrar  o champô e as toalhas para o duche.  Chegamos aos balneários e encontramos uma bicha que vai até aos urinóis. Esperamos que chegue a nossa vez e finalmente lá entramos para o retemperador duche…frio??? Melhor assim que se poupa água. Esfrega rápido o miúdo; esfrega rápido o pai, embrulha na toalha e vá de correr com cabelos ao vento até à tenda em busca do quentinho. Entramos os dois e procuramos a roupa. O  monte já passou a colina; chegam as duas cágadas e instala-se  um pandemónio ao nível de uma luta na lama numa discoteca em Albufeira. Conseguirmo-nos vestir ali no interior da minúscula carapaça sem dar uma cotovelada ou um pontapé no nariz de alguém, revela-se uma árdua tarefa. Descobrimos que o fabricante da tenda de “4 lugares” era definitivamente chinês, uma vez que aquele espaço daria, quanto muito, para albergar 4 chinezinhos ou  uma família de porquinhos da índia. Depois de algumas nódoas negras, rastejamos a suar para o exterior e cheiramos a arte gastronómica dos nossos vizinhos residentes. Qualquer campista que se preze tem de ter um grelhador para assar os seus petiscos; Da direita vinha o fumo da bela da sardinha, da esquerda o odor do picante frango na brasa. Estávamos na confluência de cheiros, a comer a nossa lata de atum com batatas pála-pála, sentados numa manta e envoltos em fumo do petisco dos outros.   Os outros, sentam-se à mesa e exibem entre os dedos e os dentes,  as iguarias das quais nós só sentimos o cheiro.

 Chegou à hora da soneca. Conseguimos encaixar os quatro muito a custo e temos de fechar as aberturas por causa das melgas.  O termo-acumulador funcionou na perfeição durante o dia, e agora, estava ali, em processo de compostagem, com o nariz encostado ao pano lateral da tenda e a orelha a roçar no que resta da colina de roupa. “Que se lixem as melgas!”. Abri os orifícios e pus a cabeça de fora.  Agora sim, está mais fresco. Vou finalmente dormir,…,péra lá que o vizinho está a explicar à mulher os planos para amanhã; o tipo da caravana em frente está a falar numa língua esquisita que deve ser sueco; e oiço também lá longe a rapaziada que chegou agora da nigth. No campismo é assim; o som propaga-se de forma mais fácil, tornando difícil o descanso pleno. É agora!...depois de uma hora a ouvir toda a animação circundante, estou quase a aterrar…isso, num sono profundo,….Dlim,dlão,…dlim,dlão(?). As vaquinhas que pastam junto da vedação onde encostei a tenda, têm badalos, que badalaram a noite toda, badalando-me também o meu estado de vigília,… dlim,dlão.

Com olheiras e picadelas de melgas arrumei as tralhas, e pisguei-me dali na manhã seguinte, pensando como a falta de material e disponibilidade adequados    poderão ensombrar as nossas doces recordações.  No entanto, a minha memória, está a ver se insiste na partida do campismo; de me obrigar a comprar uma tenda maior, uma mesa com banquinhos e um grelhador, mas tenho quase a certeza de que um dia, ainda me vou lembrar de um tal hotel de 5 estrelas onde terei passado dias muito felizes na adolescência.


terça-feira, 28 de dezembro de 2021

O Natal dos Pequeninos



A Avó está contente. Finalmente conseguirá juntar alguns netos no Natal. Preparam-se as comidas, enfeita-se a casa, trata-se dos presentes, ilumina-se a árvore, alimentam-se as expetativas. Toca o telefone. O neto do outro lado diz: “Avó, o teste deu positivo!”.  “Ai sim, que bom. E quando vens?” lançou a avó, convencida que quando os testes são positivos, são mesmo uma coisa positiva. O neto complementa “Já não posso ir aí neste Natal. Parece que tenho o tal vírus.” A avó desliga o telefone e percebe que este será mais um Natal em solidão. O neto testou positivo, a filha testou negativo, os outros netos testaram negativo, mas todos deram negativo à possibilidade de se juntarem  à festa de Natal em positivo convívio. Por uma questão de precaução, porque estiveram com alguém infetado. O Natal foi assim passado em pequeninos nichos familiares de 2 pessoas cada. A filha com a neta que testaram negativo; o neto com o genro que testaram positivo; o outro neto com a namorada que testaram negativo mas ficaram com medo de testar positivo. A Avó, essa não testou nada, e ficou com o outro filho que deixou a restante família na casa da outra avó, para que esta avó tivesse a companhia de alguém para além da TV a dar notícias sobre os casos de novas infeções. A avó que passou os 2 últimos anos enterrada na cama a ver televisão, não percebe bem como pode ser possível passar mais um Natal sem o afeto dos seus. A Avó está protegida; cumpriu de forma obediente as instruções do slogan dado por aquela senhora do cabelo com laca que aparece todos os dias na TV. “Protejam-se os idosos!” Dizia. E os idosos protegeram-se; fecharam-se em casa ou nos lares, viam os filhos com máscara na cara pelas frechas da porta e tomaram todas as doses das vacinas preconizadas. Mas isso não chegaria e até os netos de 8 anos levaram com a pica para protegerem os avós.  E os avós protegidos continuaram a ficar sem ninguém neste Natal.   O slogan que me apetece contrapor à senhora da laca no cabelo, será “Já parávamos com isto, não acha?”.  Se quiser pode pedir opinião a todos os velhotes que foram lançados para a solidão do seu quarto, aspirando pelo momento de sentir de novo o abraço do filho ou do neto, mas as notícias que os acompanham todos os dias teimam em enviá-los de novo para os calabouços da sua cela.  Uma especialista em saúde mental explicava o surgimento de muitos casos de depressão despoletados pelo isolamento e que se deveria desenvolver com os idosos competências nas novas tecnologias para poderem comunicar mais com os seus filhos à distância…???...Eihn?... Como medida profilática, esta especialista de saúde mental deveria fazer um teste antigénico à sua saúde mental a ver se dá positivo. Os velhotes não precisam de comunicação à distância, precisam de abraços, de beijos, de contacto de proximidade. A solidão mata mais do que o covid.  O valor dos anos, de quem tem poucos para viver , é precioso para ser afogado em medo e isolamento.  Protejam os idosos do vírus da solidão.  Os casos de covid estão a aumentar. Claro que estão a aumentar porque o histerismo dos testes surgiu sem ninguém questionar. A corrida desenfreada à zaragatoa no nariz, rivaliza com a entrada nos saldos do El Corte Inglês. Tens de viajar? Testa!; Tens de ir ao restaurante? Testa!; tens de fazer desporto? Testa!; Tens de ir para um hotel? Testa!; Tens de ir visitar os avós? Testa!...Não tens nada de interessante para fazer? Testa…à cautela. Os isolamentos profiláticos irão continuar ad eternum porque todos os assintomáticos continuarão a testar desenfreadamente, porque os epidemiologistas continuam ativos em horário nobre sem sinal de fadiga e os governantes querem continuar em horário nobre porque a campanha eleitoral já começou para eles, os salvadores do povo.   E o povo prossegue na sua rotina sem pestanejar, sem questionar porque raio já quase toda a malta levou com o líquido milagroso e o milagre da libertação ainda não apareceu. A hipnose coletiva entrou em velocidade cruzeiro, sem laivos de revolta ou contestação, com aceitação plena de todas as medidas estapafúrdias que os salvadores do povo se lembrem de inventar para proteger os idosos e os manter em frente da TV longe das ameaças exteriores e próximo dos amigos epidemiologistas.   Chegará em breve o dia em que a avó morrerá sem se lembrar do nome do neto e das caras dos filhos sem aquela máscara azul a tapar a boca. Os filhos respirarão de alívio porque a sua mãe não morreu de covid uma vez que testaram todos negativo naquele dia em que a visitaram.  Morreu apenas de solidão.

domingo, 8 de agosto de 2021

Certificado "Al Prosciutto"

  Hoje telefonei para a pizzaria a encomendar o almoço. Apetecia-me comida italiana, mas sobretudo não me apetecia cozinhar.  Meti-me no carro para ir buscar a massa “al prosciutto” que ia cair que nem gingas num estômago a salivar de fome. Entrei de rompante no restaurante e vislumbrei , na minha direção, uma funcionária com cara de poucos amigos, deslocando-se com  uma desenvoltura ao nível de qualquer atleta olímpica. Ao mesmo tempo que lançava a palma da mão apontada para mim, dizia de forma acutilante: “Espere aí!!!Tem o certificado?”. Eu respondi: “Não! Vim só buscar a minha massa al Prosciutto!?...” . Então tem de esperar lá fora. E foi com a moleirinha ao sol que percebi como funciona isto da segregação vacinal. Deixei-me estar ali a absorver a vitamina D e a observar o procedimento logístico da coisa. Seguiu-se um casal e lá estava a zelosa funcionária com a palma da mão encostada ao nariz do senhor…”tem o certificado?” . Após uma breve pausa, o senhor  sacou orgulhosamente o  telemóvel  com o código do tal bilhete da lotaria que lhe abria as portas ao ar condicionado do estabelecimento. Por momentos até pensei sentir um olhar trocista pelo canto do olho para o tipo sem certificação válida que estava ali a torrar ao sol. Mas foi só impressão. Seguiu-se uma senhora com a filha. A funcionária está treinada para não deixar ninguém passar de forma incólume; tem os skills de qualquer cabo num regimento de comandos. Ou o cliente apresenta essa coisa ou leva ali com 50 flexões à torreira do sol. E, naquele caso, deu-se a híbrida situação da senhora ter o documento de pureza e a filha não.  Pela cara da funcionária, ainda ponderou colocar a mãe a comer a pizza vegetariana lá dentro e a filha contentar-se com o risotto cá fora, mas teve a lucidez de encontrar a solução ideal. Vão as duas ali para o único lugar vago na esplanada que fica um bocadinho ao sol. A escolha do lugar à sombra? Parece óbvio. A mãe fica à sombra, a filha que não tem o papel, fica ao alcance da vitamina D que parece criar defesas a quem ainda não levou a pica milagrosa. Antes de receber a minha “al prosciutto” e de dizer à funcionária que não voltaria ali, lancei um olhar panorâmico a toda aquela malta que se deliciava a trincar o esparguete à bolonhesa, aconchegada pelo fresquinho do ar condicionado,  sem denotar qualquer laivo de incómodo sobre todo este absurdo.  Um amigo comentava comigo no outro dia que tinha vacina marcada para poder ir de férias para o hotel em Monte Gordo que tinha uma esplêndida piscina.  O que me incomoda em tudo isto é a conivência coletiva perante esta aberração civilizacional. A aberração que nos empurra a todos para a única opção devidamente certificada que nos permite entrar em restaurantes, em hotéis, em espetáculos e, a curto trecho, nos transportes públicos e lojas de bens essenciais. Todos são coniventes nesta hora: Os partidos da “oposição” por não fazerem oposição a esta completa imbecilidade, os utilizadores certificados por comerem o seu risotto e olharem com normalidade para o tipo que ficou à porta; o tipo que ficou à porta, à espera do seu “al prosciutto” a pensar na palma da mão da funcionária zelosa; a funcionária zelosa pelo desejo de espetar a zaragatoa no nariz do cliente quando esse não se contentou com a palma da mão; o dono do restaurante por, apesar de ter de sair da situação económica calamitosa  em que se encontra, embarcar nesta regra subversiva. O sucesso da vacinação vai assim correr de forma célere, porque toda a rapaziada tem planos de férias e não quer restrições aos seus mergulhos nas esplêndidas piscinas de hotel ou no acesso à sardinhada de Portimão. Com sorte, aparecerá aqui em baixo, aquele retângulo “visita o Covid-19 centro de informação sobre as vacinas” , onde deverão poder pesquisar  ofertas dos melhores hotéis e restaurantes para os devidamente certificado, enquanto permanecerem dentro da validade. No meu caso, a custo, terei de adiar as tais férias de sonho no hotel Pestana do Funchal em frente ao mar e descobrir onde guardei a receita da massa “al prosciutto”.

terça-feira, 13 de julho de 2021

Segregação Vacinal

    


               O aparecimento de novas e surpreendentes medidas anti-moléstia não nos deixa cair na monotonia. A emoção surge a cada curva, com a incerteza permanente de que mais ideias estapafúrdias os tipos se irão lembrar. Depois daquele golo do Éder no europeu totalmente inesperado, o síndrome do “pontapé na erva e a coisa deve entrar” ficou para ficar.  Desta vez lembraram-se de colocar o senhor Artur, gerente daquele hostel muito simpático, a avaliar a nossa limpeza nasal. “Boa tarde. Para o check in preciso do seu cartão de cidadão, do seu Visa e que escarafunche o seu septo nasal com essa zaragatoa e coloque aqui a ranheta no teste da gravidez para ver se está a fecundar a tal virose”.  Ou isso, ou o certificado de vacinação, uma espécie de carta de condução de veículos de matérias inflamáveis. Aquele que permite o transporte e distribuição do vírus de forma quase segura. “Epá que líquido é esse que está a escorrer daquela torneira da cisterna? Deixa lá! é só um bocadinho do tal bicho, mas devidamente certificado”.   Eu cá antes quero apanhar o bicho através de um tipo que tenha as vacinas em dia. É um vírus mais asseadinho; já vem com o banho e a vacina tomados. Um vírus apanhado de um gajo sem certificação é sempre arriscado; é como comprar uma Lacoste na candonga. O crocodilo pode desbotar na 1ª lavagem. A mulher de um colega meu, devidamente certificada, transmitiu o vírus à filha e a coisa não desbotou. Continuou a dar positivo ao fim de 10 dias. Era produto do bom. No momento em que a maioria dos países europeus já está a desconfinar em grande, nós os pequenos, continuamos a surpreender-nos em grande.  A cada 5ª f surge uma nova finta, capaz de partir os rins a qualquer Ruben Dias. Por vezes essas fintas são feitas em direção à própria baliza, mas não deixam de ser inesperadas e de embelezar o espetáculo.  Os nossos epidemiologistas são os melhores estrategas da europa. Enquanto toda a malta partiu para o ataque, percebendo que chegar aos penáltis (leia-se falência económica coletiva) seria um bocado arriscado, cá nós continuamos na retranca, fechados lá atrás, à espera do tal golo milagroso do Éder. Esses franceses já nem máscara usam na rua, está tudo ao molho, deixam a economia entrar pelas alas, mas no final, quem vai levantar a taça, seremos nós! Na nossa filosofia do “joga feio mas eficaz”, temos no entanto algumas lacunas que nem os melhores epidemiologistas conseguiram prever.  O  avançado é mandrião , não recua, o lateral esquerdo é fracote e todas as viroses entram por aquele lado. Quando é para defender, temos de defender todos em bloco, colocar o autocarro lá atrás. Ou é para todos levarem a vacina, ou são substituídos e vão para o balneário de castigo voltados para a parede com umas orelhas de burro, ou então andam sempre com o autoteste na carteira para escarafunchar a narigueta, que não queremos que produtos contrafeitos andem por aí à solta.    Mas os nossos especialistas pensaram em tudo e flexibilizaram a coisa.  Na zona defensiva(hotéis) não há margem para manobra, só entra quem é do bem; o resto fica à porta. O ponta de lança adversário, antes de chegar à grande área, já levou  um biqueiro na canela q’é pra aprender a não se armar em Lacoste que debota. Nas alas (restaurantes), poderemos aliviar a pressão. A partir de 6ªf ao jantar, tudo na retranca, só entra com certificado ou zaragatoa, que o vírus vem aí a fazer das suas com toda a força. Durante a semana já toda a malta pode comer um arroz de marisco, que o bicho está distraído a pressionar em outras paragens.  É a chamada segregação flexível. Segregas ao fim de semana, agregas durante a semana. Comparar este regime de segregação ao praticado em Pretória durante o regime do apartheid, até é ofensivo, uma vez que os nossos autocarros para a Reboleira continuam apinhados e sem separação física para indivíduos de pureza certificada.  Este certificado de vacinação está agora a chegar aos escalões de formação, para não se correr o risco de vermos um cavalão da França fazer gato sapato do nosso lateral iniciado, apesar do nosso iniciado não precisar de mais velocidade. Parece que a vacinação nos jovens é importante por causa dos avós dos jovens que já foram vacinados . Ficam assim ambos com o certificado e podem transmitir mutuamente em completa segurança.  Aquele casal que tinha o restaurante de bairro que faliu  coloca a sua dúvida: “Olhe lá ó mister, acha já podemos passar ao ataque ou continuamos aqui na retranca à espera de um milagre? É que eu já não consigo pagar a renda da casa…”;  “Mantém-te firme, Samuel! Eu já mandei aquecer o Éder. Pode ser que ele consiga meter a bola lá para dentro de novo. Deixa-me só perguntar  se ele já tem o certificado de vacinação para poder entrar. Caso não tenha, posso sempre mandar aquecer o massagista. Esse tem a devida certificação...” 

quinta-feira, 17 de junho de 2021

O empurrãozinho

 

Venho assumir aqui que pertenço ao restrito lote de ovelhas tresmalhadas que oferece resistência à toma da vacina  anti-covid.  Eu sei que a maioria dos leitores se insurgirá de forma veemente contra por esta abominável falta de civismo. A Task Force com toda a sua bélica eficácia já previa que existiriam alguns dissidentes deste espírito de grupo da aceitação sem questionar a pica no bracinho em prol do bem comum. Não foi em vão que foi escolhido o Vice-Almirante para colocar o tal líquido milagroso no músculo da grande maioria da população. Habituado aos cenários de guerra, vestiu o camuflado para combater condignamente essa luta contra o vírus, que serve simultaneamente para não o conseguirem reconhecer misturado na folhagem do olival de Serpa na hora da multidão lhe pedir um autógrafo.  Para terminar ou agudizar este estado de indignação dos meus amigos, colegas e transeuntes, quando ficam a saber que não tomei a vacina, vou tentar sistematizar a imagem que me vem à cabeça nestes momentos: A prancha de 10 metros da minha piscina de juventude. A memória do miúdo a subir a medo a longa escadaria, espreitar a medo pelo bordo da prancha a água lá em baixo e aquelas mãos do grandalhão atrás dele a empurrarem as suas costas em direção à água…para ele perder o medo!? Foram estas mãos que me começaram a incomodar, na hora em que eu estava ainda a tentar recolher informações de outras fontes esquisitas, que não as do mainstream.   Toda a malta subiu freneticamente a escada em fuga do malfeitor e sem mais demoras fez o que pareceu mais correto: lançou-se à água sem mariquices. Os chatos ficaram para trás, em busca de verem respondidas algumas perguntas como: a água está quentinha ou fria? Se cair com as pernas um pouco afastadas o que acontecerá ao meu aparelho reprodutor? O que é aquele verdete agarrado à margem e as larvas a boiar ali no meio? Posso olhar para trás para ver se o malfeitor vem mesmo a subir as escadas? O chato é questionador por natureza. Não acha piada ao camuflado do Vice-almirante e questiona porque raio está assim vestido numa visita a um bairro de pescadores de Peniche; pergunta porque é que todas as televisões, dão todos os dias, desde há um ano e meio, as infeções por covid e não as mortes por enfartes ou cancro; questiona a invenção meteórica da vacina e o enriquecimento meteórico dos  laboratórios farmacêuticos; não percebe bem a enternecedora  frase “os benefícios suplantam os riscos”  ; pergunta porque raio a vacina anti-covid não evita voltar a apanhar o covid sem o “anti” e  transmiti-lo de novo ao coletivo imunizado; questiona a pressa com que o querem empurrar da prancha sem ver respondidas algumas das suas questões. 

 O chato recebe uma chamada da senhora do SNS a perguntar porque é que respondeu negativamente à mensagem da toma da vacina. Minha senhora, mas o chato aqui sou eu! Sou eu que questiono. Já agora pode-me informar porque é que a senhora tomou a vacina? Aproveito e tenho aqui mais umas duvidazinhas que gostaria que me esclarecesse, podemos começar por aquela do camuflado…..

Um amigo dizia-me no outro dia que era a favor da liberdade de escolha individual, mas defendia que quem não quisesse tomar a vacina, caso ficasse infetado, deveria pagar os custos do seu eventual internamento. Tem olho para a resolução do problema de financiamento do SNS. Poderia ter alargado a abrangência da medida e acabava com as despesas de internamento  de toda a malta que toma opções duvidosas: do obeso por ter comido fast food em barda, do fumador por não ter ligado às imagens dos maços de tabaco, do velejador por não ter tido cuidado com o sol, do  apreciador de gin por ter mergulhado de cabeça no vodka, do ginasta por ter dado um salto mortal a mais no elemento gímnico. Poderíamos assim canalizar os impostos afetos a essas despesas  indevidas, para aquisição de mais vacinas e testes anti-covid, em prol do bem comum.

Um estudo revelava hoje que Portugal é o país da união europeia onde a população tem mais confiança nas vacinas contra a Covid-19 , com 95% dos inquiridos a considerarem as vacinas seguras. E os portugueses são também a população que mais suspeita que as vacinas contra a Covid-19 poderão ter efeitos a longo prazo, perfazendo um total de 77%....????... Somos claramente um povo que vive o hoje e que se lixe o amanhã. Hoje sinto que é seguríssimo mandar 8 shots de seguida aqui no bucho! Amanhã a ressaca? Logo se vê...mas penso que não augura nada de bom.

Eu ainda estou no grupo dos 5% de chatos tresmalhados. Provavelmente poderei mudar de opinião, como fui mudando ao longo de toda esta pandemia. Só não consigo pensar bem com estas mãos coletivas a pressionarem a minha omoplata rumo ao plano de água lá em baixo, enquanto decido se o que vejo a boiar é uma larva, uma cagadela de pássaro ou um nenúfar. Quanto ao miúdo da prancha de 10 metros, depois de ter mandado uma dolorosa chapa de costas naquela empedernida água e de ter sentido os rins a sair pelo intestino, olhou para cima,  com a larva ainda enfiada entre os dentes e, na ponta da prancha espreitava o tipo que o empurrou, a gritar: É pró teu bem, miúdo!

domingo, 30 de maio de 2021

A Carraça

 


Nos meus passeios matinais em época primaveril, a inspeção periódica das coxas em busca de carraça invasora, é uma das rotinas que cumpro de forma repetida. Num destes dias verifiquei que tinha 4 desses espécimes subindo desenfreadamente perna acima agarrados às minhas pilosidades com o mesmo vigor do Tarzan   agarrado às lianas em busca da sua Jane. Tratei de as despachar com a rudeza de 4 implacáveis dedadas em direção ao solo, sem qualquer tipo de compaixão. Aquilo pesou-me na consciência. A carraça é um ser enigmático e, de alguma forma, admirável. Vive toda a sua vida agarrada à erva daninha na esperança de que, naquele inóspito terreno, passe por breves instantes uma coxa peluda para lhe lançar a unha. No entanto, algumas morrem sem sentir a sensação prazerosa para  qualquer parasita de  sugar um pouco da hemoglobina alheia. Percebia-se que a última carraça que despachei vinha feliz na sua ascensão. A longa espera ao sol, ao vento, à chuva, tinha finalmente compensado. Dentro de momentos já teria a dentição a trabalhar na epiderme do humano e a ganhar corpo de atleta. A minha unha retirou-lhe esse prazer, qual tampa da miúda mais gira do liceu na época da adolescência. Não conseguiu sequer consumar um breve momento parasitário, uma ténue gota de sangue,  levou logo uma nega em direção ao pó. Há quem ache que a carraça um ser repugnante, eu acho-a persistente e crente. Permanece impávida convencida que a sua hora chegará. E as que veem a sua hora chegar, não perdem tempo com preliminares, vão logo à ação. Poder-se-á achar que a carraça, uma vez instalada, poderia ser um pouco mais lúcida e permanecer escondida no anonimato, em vez de ostentar a sua barriga proeminente de leucócitos sugados a jorro e rapidamente se denunciar. Depois de uma espera tão longa e penosa, queriam o quê? Que a bicha deglutisse o banquete ao ritmo deprimente de um restaurante gourmet? Claro que iria encher o bandulho à fartazana. Não podemos pedir discernimento a uma carraça que passou por tanto para ali chegar.  Não sei porquê mas lembrei-me agora do fabuloso ministro Cabrita, o tal da administração (e)interna. Se me lembrei por causa dos milhares de ingleses que encheram o bandulho de cerveja nas ruas do Porto e se divertiram a partir tudo por onde passavam, depois de uma longa espera em abstinência anti-covid,  pendurados nas suas lianas britânicas? Não. Lembrei-me do ministro Cabrita por continuar agarrado à coxa peluda do ministério depois de tanta patetice.  Tenho de lhe tirar o chapéu. O Tipo é persistente. Mas percebe-se. Depois de tanto tempo a vaguear nas ervas daninhas dos corredores partidários em busca da tal coxa salvadora, eis que chegou a sua oportunidade que tratou de a agarrar com unhas, dentes e alguma falta de senso. Depois da primeira gafe das golas inflamáveis que pegavam fogo, poder-se-ia ter mantido quietinho no seu canto sem encher muito o bandulho, para não darem por ele, mas não. Atacou à bruta o banquete de alarvidades.  Desde o caso do SEF, a gafe dos vacinados com 80 mil anos, passando pelos imigrantes ilegais de Odemira , os festejos espampanantes dos adeptos do sporting e culmina agora na invasão “controlada” de holligans ingleses nas ruas do porto a partir tudo o que é cadeira e paz social.  Mas atenção que a proteção civil tomou medidas eficazes no combate ao caos. Enviou SMS a todas as pessoas para colocarem máscara, manterem distância social e não beberem álcool. Só falhou, porque os ingleses deixaram os telefones em Manchester. A Dona Júlia, vendedora de toalhas na ribeira, depois de assistir a umas murraças e cadeiras voadoras soltou um clarividente sotaque  nortenho “Eu estou admirada com isto! Então nesta multidão ninguém usa máscara? Até colocaram ecrãs gigantes para ver a bola e depois queriam o quê?”.  Ó dona Júlia, eu próprio também estou admirado, não só com as palermices do Cabrita, como de todos os outros palermas que dizem governar isto e não têm qualquer plano estratégico lúcido, que não seja mandar vir mais barris de cerveja e deixar as golas a arder.  Mas nem tudo é descontrolado. Na semana passada, vi a notícia do controlo do caos de 5 miúdas  estudantes de Erasmus que foram multadas na hora por estarem a beber um copo de vinho num dos miradouros da capital.  Firmeza nisso Cabrita! É Disso que o país precisa, pulso firme!

Agora percebi como ainda ninguém conseguiu mandar uma dedada ao Cabrita em direção ao pó e remetê-lo de novo à erva daninha. Simplesmente chegámos ao ponto em que as múltiplas carraças se apoderaram do próprio e passivo pedaço de coxa. Estão todas bem nutridas e firmemente seguras, esperando que não apareça a tal febre da carraça que acabe com todo este regabofe. Até lá, venha daí uma cerveja  e uma cadeirinha para o que der e vier.