sábado, 10 de abril de 2010

Porteiro Expiatório


Imagem retirada da net

Desta vez decidi comprar o Correio da Manhã para apanhar uma piela de desgraças logo pela manhã. E este “matar do bicho” vespertino até tem um cunho terapêutico, uma vez que com tanto crime lido numa hora, já não precisamos de ver mais nada na televisão durante o dia inteiro. O Correio da Manhã é uma espécie de Feira de São Martinho em versão criminológica. Em vez de emborcar litros de água-pé mal fermentada, pelas 50 tasquinhas do percurso, um tipo encharca-se de violações, roubos, assassinatos e burlas sem ser necessário mudar de tasca. Ficamos apenas na tasca do “É p’ra desgraça, é p’ra desgraça!”. No meio de tanta notícia deprimente, sobressai aquela resultado do inquérito do miúdo que se afogou no rio Tua . Aí eu tenho de fazer o “Mea Culpa” porque há cerca de um mês tinha escrito sobre a minha descrença de que o inquérito iria descobrir e punir os culpados. Pois bem, estava enganado. Foi descoberto o culpado pela morte do miúdo. E quem é que poderia levar o miúdo a cometer tão dramática acção?...o Porteiro. Quem pensou nos energúmenos que espancavam o cachopo repetidamente, estava enganado, até porque os energúmenos disseram logo que não foram eles. Quem pensou no Director, também se enganou, uma vez que o tipo que manda na escola nunca se tinha apercebido que existiam energúmenos, até porque o seu gabinete no Inverno é muito quentinho. Quem pensou no Ministério da Educação que deixou a escola chegar a esta bandalheira, também está equivocado. Quem é que sobra? O Porteiro, está claro. Tenho de dar os parabéns públicos ao inquiridor pelo seu golpe de génio. Nem mesmo o realizador David Lynch conseguiria criar um final de enredo com esta qualidade. Se antigamente a culpa era do Mordomo, agora é definitivamente do porteiro. Mas como se chegou a tão brilhante conclusão? Baseada na função intrínseca do porteiro: Aquele que deixa entrar e sair pessoas. É a solução para todos os problemas sociais; basta folhear as páginas do Correio da Manhã: “Um homem entra numa esquadra e agride polícia à cabeçada”. A culpa? É do porteiro da esquadra, que o deixou entrar armado com a… testa. “Homem cadastrado, a cumprir 11 anos de prisão, rouba os Correios e é condenado a 2 anos e meio de pena suspensa.”. De quem é a culpa? Do porteiro da prisão que o deixou sair antes dos 11 anos e do porteiro dos Correios que o deixou entrar antes do assalto. “Foi preso indivíduo que explorava vários bares de alterne.” A culpa? É dos porteiros, que deixaram entrar as raparigas com aspecto duvidoso e ainda recebiam “gorjas” dos clientes. “Fãs que permaneceram à chuva e ao sol, durante duas semanas à porta do Pavilhão Atlântico, para verem os Tokio Hotel.” A culpa? É do porteiro que não lhes abriu a porta 15 dias antes, para conseguirem estar na primeira fila. Caso haja dúvidas da responsabilidade de qualquer porteiro nas desgraças do quotidiano, basta acenarem à memória, com os porteiros brutamontes das discotecas da capital, que impedem de entrar a malta ao empurrão, boicotando potenciais engates na pista de dança. Está claro que a culpa só pode ser dos porteiros. As empresas que até aqui não tinham porteiro, vão contratar um, isto porque já perceberam que, melhor do que um Bode Expiatório, só um Porteiro Expiatório para abarcar com todas as culpas. Vão expulsar o porteiro da Escola de Mirandela, só porque ele deixou sair livremente os miúdos? Não é correcto. Até porque deixar fugir um miúdo da escola actual é um gesto de caridade. Eu acho que o porteiro devia ser responsabilizado, não porque deixou sair, mas sobretudo por que deixou entrar sem qualquer tipo de controlo toda a “corja” que conspurca o ambiente escolar. Decerto que se transferissem os porteiros do Kremlin para o portão da Escola de Mirandela, e eles fizessem jus à sua capacidade de filtragem de alguma da “corja”, baseada nuns valentes empurrões a energúmenos, pseudo-directores e inquiridores “bacanos” que pretendessem entrar, a escola ensinara e educaria melhor.
Agora fiquei numa dúvida existencial. Em vez de ter estado aqui entretido a ler este rol de barbaridades, não teria sido melhor botar abaixo uns copitos de água-pé mal fermentada? Ao fim do terceiro copo, para além de uma ligeira azia, já conseguia achar alguma piada à história do porteiro expiatório. Se chegasse a um estado de descontrolada embriaguez, e começasse a partir coisas, sempre poderia pôr as culpas no porteiro da tasca do “Ti Jaquim” por me ter deixado entrar,…ou seria sair?...

terça-feira, 6 de abril de 2010

Abróteas

Sinto que chegou a altura de revelar a minha verdadeira identidade. Estou farto de me esconder pelos cantos. Hoje venho aqui assumir que sou…Funcionário Público. Pronto já disse. Andei anos a encontrar subterfúgios para que não descobrissem essa minha fraqueza, mas não aguentava mais. Quando me perguntam a minha profissão e eu digo “professor”, temo sempre pela pergunta seguinte: no público ou no privado? Na maioria dos casos tenho de simular uma enxaqueca, uma panela esquecida ao lume ou aceno com a história dos filhos que me esperam à porta da escola. Eu sei que não é correcto, mas tudo serve para não ouvir o contundente reparo: “Funcionário Público, Ããã? Granda malandro!”. É verdade, eu pertenço a essa repugnante classe que suga toda a massa dos contribuintes e não deixa o país desenvolver-se. Todos os pais aspiram melhor para os seus filhos. Pagam-lhes os intermináveis anos de estudos e depois é isto que recebem em troca? O desgosto de um filho descambar em funcionário público é algo que não está nos planos de qualquer pai com o mínimo de bom senso. Ainda se fossem funcionários públicos com algum brio profissional, como aquela deputada das viagens semanais a Paris em voo executivo; ou o tipo da EDP dos 3 milhões de euros ao ano; ou um presidente daqueles que recebe duas reformas e mais um vencimento. Eu incluo a pior estirpe dos funcionários públicos, aquela que se desenvolve debaixo do bolor da mediania. Pertenço à tão odiada classe média portuguesa. Tenho um ordenado médio, um carro médio, uma prestação de casa média, uma televisão média, umas sapatilhas de gama média e descontam-me em impostos quase a mediania do meu ordenado. Com sorte irei alcançar a reforma aos 70 anos, quando tiver atingido a mediania da carreira, isto porque a outra metade foi congelada ao longo da hipotética progressão. Aliás depois de 6 anos congelado, qualquer funcionário público já desenvolveu destrezas que lhe permitem sobreviver nas profundezas de um qualquer oceano ou nas arcas frigoríficas de um bacalhoeiro. E é assim, qual “Abrótea” congelada, que um dia receberei na reforma, a mediania do vencimento ou… talvez a mediania da mediania. Mas é bem feito, para não me ter armado em asno. Mais valia ter investido na angariação de um subsídio de reinserção social, ou à falta de melhor, ter comprado uma bandeirinha de um partido político. Mas não. Tinha de descambar em Funcionário Público. Antigamente era insultuoso alguém gritar para o outro “Não sejas cigano!”. Hoje em dia um Cigano é um tipo que singrou na vida, um modelo a seguir. É aquele que sabe todos os passos para sacar o subsídio de Reinserção Social e de vez em quando ainda dá uma perninha a vender camisolas Saccor falsificadas na feira. É nesses empreendedores que nós, os parasitas públicos, deveríamos colocar os olhos. Nos que têm a habilidade de ludibriar os impostos como Cristiano Ronaldo dribla adversários. Um funcionário público mediano nem esperteza tem para se safar ao imposto de televisão. Agora, para se achincalhar alguém a sério, é dizer “Oh meu g’anda Funcionário Público!”. Ser hoje funcionário público é pior do que se ser proxeneta, drogado ou cronista social. Transpira a imagem de um protagonista de violência doméstica, que, em vez de dar umas chapadas na mulher, espanca o frágil equilíbrio das contas públicas. Equilíbrio que até aqui se tinha mantido firme mesmo com os milhões roubados no BCP, os milhões torrados nos submarinos, os milhões enterrados nos estádios, os milhões esfumados em contrapartidas não reivindicadas, os milhões imaginados para o TGV ou lá o que é isso, os milhões que esvoaçaram nos “Magalhães” que os subsidiados receberam à borla e venderam aos amigos, os milhões gastos em campanhas eleitorais, os milhões escondidos em comissões de inquérito e fundações várias. Este país só sobreviverá quando conseguir exterminar essa corja social chamada funcionalismo público da gama média. Funcionários públicos só de gama alta ou de gama subsidiada. Depois é privatizar tudo o que mexa e, nós os ex-funcionários públicos medianos, não passaremos mais pelo constrangimento daquele olhar de reprovação sempre que assumirmos a nossa envergonhada opção. Os privados, esses, conseguirão com facilidade produzir fundos suficientes para pagar viagens dos altos funcionários públicos a Paris em voo executivo e os irrisórios milhões necessários para manter algumas economias familiares em desenvolvimento.

sábado, 3 de abril de 2010

Aquele Sorriso...

Existem coisas que nos deixam tristes. E assim ando desde que me disseram que o filho da Paula teve um daqueles ataques fulminantes que aparecem sem avisar e varrem a vida com a violência de um tufão. A notícia deixou-me triste porque este tufão escolheu um miúdo como alvo; mas deixou-me mais triste por ser o filho da Paula. E o filho da Paula poderia ser o filho de qualquer um de nós. É nisto que pensamos quando não sabemos o que dizer a uma mãe que acaba de perder um filho. Que imaginamos a dor de vê-lo partir? Apenas poderemos imaginar que deverá ter uma intensidade similar à soma de todos os momentos que o acompanhámos na construção da sua vida. Do dia da primeira palavra até ao exame de Português; do dia do primeiro passo até à corrida em direcção ao cesto; da sopa vomitada no babete até ao hambúrguer no Mac; do primeiro chapinhar na água piscina até ao mergulho de cabeça da prancha; do abraço desinibido na infância, ao embaraço pelo carinho materno na adolescência. Não estamos preparados para deixar este ciclo de desenvolvimento a meio. Depois da adolescência deveria surgir a idade adulta, para acompanharmos o crescimento dos netos, e dizer mal das noras. Não seria suposto a morte aparecer tão cedo, mas ela aparece. Apareceu com o filho da Paula como aparece com milhares de filhos de milhares de mães por esse mundo fora, todos os dias. E nenhuma mãe está preparada para este tufão. Não estamos preparados para que a única coisa certa que a vida tem, se meta logo com algo que cresceu das nossas entranhas. Socorremo-nos da lógica para iludirmos receios. Na probabilidade de ser o filho a assistir à morte do pai e não o contrário. Esta é uma ordem natural que muitas vezes não acontece. E ao não acontecer com alguém que nos é próximo, faz-nos pensar na volatilidade desta pequena passagem por aqui. Uma passagem muitas vezes inebriada por conflitos, invejas, discussões, disputas que se esfumam num breve sopro. Não conhecia o filho da Paula; Conheço apenas a Paula. Só agora fiquei a saber que o seu nome é João. Parece que o João conseguiu construir ao longo da sua vida muitas amizades. E, se construiu muitas amizades, é sinal que aplicou bem o seu tempo de vida. Que brincou, que estudou, que se embeiçou por uma cachopa, que se divertiu a fazer desporto, que gozou a vida como muitos de nós nos esquecemos inúmeras vezes de gozar. Hoje vi no jornal a fotografia do filho da Paula. Vi um miúdo de sorriso aberto e espontâneo, abraçado aos seus companheiros de equipa. E aquele sorriso traquinas fez-me lembrar o nosso sorriso quando invadíamos as casas uns dos outros em busca das doçarias manufacturadas pelas mães; o sorriso das jogatanas de futebol até ao anoitecer; o sorriso da ameixa que se tirou da árvore do vizinho; o sorriso do jogos de berlinde; o sorriso das conquistas, o sorriso da exterminação do pacote de batatas fritas partilhado entre nós, o sorriso de quem não se importa com o dia de amanhã. Lembras-te desse sorriso, Paula? Chegará o dia em que conseguirás largar a mão do miúdo e deixá-lo ir libertar esse sorriso para junto de uma outra equipa de basquetebol que o espera lá em cima.
Um sorriso para a Paula e para a D. Odete, duas lutadoras, que irão encontrar forças para superar mais este desafio que a vida lhes propôs...