terça-feira, 29 de maio de 2007

O nosso Kangchenjunga mensal

À Rita e ao Pedro pelas muitas escaladas aos Kangchenjungas que têm no currículum...



Enquanto esperava para levantar dinheiro numa caixa Multibanco, estava entretido a ver umas imagens de João Garcia no topo do pico de Kangchenjunga, a 3ª montanha mais alta do mundo, a agradecer o apoio do banco que lhe patrocinou tão relevante façanha. Levantei a massa, e, ao olhar para o talão do saldo disponível, fiquei a cismar no tipo lá em cima com a respiração ofegante e com cara de quem já respirava um arzito menos rarefeito. E pus-me a pensar na enorme aventura que representa, depois de olhar para o talão do saldo disponível, arranjar forma de chegar ao fim do mês respirando um ar minimamente oxigenado. Não menosprezando a difícil subida a picos míticos como Evereste, Annapurna, K2, Kangchenjunga, a montanha que a maioria dos portugueses tem de escalar entre dois vencimentos está bem ao nível das anteriores. Epá, não achas que estás a exagerar um bocadito? Então não viste que o nosso mais distinto escalador até congelou os dedos e o nariz ao subir o Evereste devido ao frio extremo! É verdade, sim senhor, mas também nós vimos congeladas as nossas…progressões e provisões, com a agravante de não percebermos bem as razões da mudança para um estado sólido mais inerte. Ao menos o alpinista sabe que foi do frio, agora a malta vê a massa congelada mais dois anos, porquê? porque o ministro acordou com um torcicolo? porque teve de nomear mais umas comissões para avaliar outro local para o outro aeroporto? porque alguém disse mais uma graçola sobre o diploma do primeiro ministro? Não sabendo as causas, não temos maneira de nos protegermos contra este tipo de congelamento; não há luva, casaco ou gorro que nos valha.
Estou agora a matutar sobre o acampamento base que os alpinistas utilizam para adaptação e aclimatização. Vão subindo e descendo até se adaptarem à falta de oxigénio na alta montanha. Os aventureiros da escalada quotidiana, assim que põem a vista no ordenado, começam logo a escalar rumo ao “entesamento” sem tempo para aclimatização. Parece que existem seres ocultos, esperando ansiosamente por esse dia, no campo base, para nos tirarem o oxigénio sem sequer termos tempo de chegar ao campo 1 de adaptação. Casa, luz, água, escolas, telefone, comida, e mais comida, ténis para o filho que jogou demais à bola e rebentou os que tinha semi-novos, o imposto, o outro imposto, o seguro,…já nos falta o ar e ainda não chegámos nem a metade da subida. Então e os riscos de avalanche, a queda em buracos ou a derrocada de pedras a que estão sujeitos os alpinistas? Haverá maior avalanche que um tipo, depois de já ter conseguido pagar muitas das contas a essas sugadoras entidades, partir a embraiagem do carro?...também nunca percebi porque é que as embraiagens se partem sempre na fase em que um indivíduo está quase teso. Cair num buraco?...será depois de ter pago a embraiagem ao mecânico aparecer-lhe uma dor insuportável no dente do siso e ter de ir a correr para o dentista. Derrocada de pedras? Que tal depois de pagar a conta no dentista, chegar a casa e verificar que o esquentador deu o berro?...depois do esquentador estar operacional e já dar chama, a nossa chama está nas últimas, pronta a sumir-se de vez. Ainda nos faltam 8 dias para receber e já começámos a comer as latas de feijão frade que tínhamos guardado para uma emergência. Andamos muito devagar de carro para não gastar gasolina e estamos fartos de ouvir o filho repetir a frase mais batida: “pai, quando tiveres dinheiro podes-me comprar aquela tartaruga ninja?...”
Ao contrário de muitos alpinistas que chegam aos grandes picos com a ajuda de oxigénio artificial, João Garcia continua a sofrer da sua privação para os alcançar, aliás, tal como nós. Existem momentos no mês em que gostaríamos de nos virar para a nossa companheira de escalada e pedir-lhe oxigénio, sem corrermos o risco dela nos responder: O quêêê?...Ah,ah,ah! Ela está ali, a 8 dias do final da escalada, tão ofegante quanto eu, em busca de um pouco de oxigénio. Quando chegamos finalmente ao cume, ao dia do vencimento, sabemos que não podemos baixar a guarda, apenas contamos com umas quantas bombadas de oxigénio regenerador para, logo ali, iniciar a próxima subida.
Fui levantar dinheiro no Multibanco e tinha gostado de ver ali, depois do João Garcia anunciar a sua aventura, o António Joaquim, operário fabril, que recebe 400 euros ao mês empunhar a bandeira portuguesa e dizer ofegante: Consegui sobreviver a mais uma aventura, das doze escaladas que me propus conquistar este ano! Agradeço ao banco que patrocinou esta minha sensação de falta de ar permanente com as suas taxas de juro bonificadas. Espero brevemente pela vossa próxima ajuda, olhem, podem começar por aquela de cobrar taxa por cada operação no Multibanco…a ver se consigo aguentar mais tempo sem oxigénio.

segunda-feira, 28 de maio de 2007

Sair para fora cá dentro


Num destes fins-de-semana fora de época, decidimos rumar até ao algarve, essa região bem nacional onde o sol e as praias nos garantem momentos bem passados. Quando chegámos ao empreendimento onde ficaríamos alojados, verificámos um movimento pouco usual para uma época supostamente baixa. Aquilo parecia Oxford Street em dia de saldos no Arrods. Ingleses radiantes por todo o lado. A velhinha com a pele cor de lixívia e um corte “pente quatro”, o casal de “lagostins” que não sabia que o sol existia e queimava tanto, ou os putos bem comportados daqueles que não fazem birras nem atiram baldes de areia ao ocupante da toalha ao lado, todos eles estavam lá!
Logo na primeira noite saímos em direcção à rua principal para ver a animação nocturna naquelas paragens. À nossa frente ia um casal de ingleses já idosos conversando descontraidamente quando, qual filme de aventuras, salta do escuro uma criatura esguia com voz de grilo afónico, desbobinando em cima deles no espaço de 5 segundos toda a ementa do restaurante dos seus pais, com ingredientes e tudo. Ao mais comum dos mortais, aquela abordagem seria suficiente para originar um espancamento imediato à agressora ou 2 enfartes de miocárdio consecutivos. Aqueles idosos mantiveram-se inalteráveis e responderam com um delicado “tank you, we allredy eat”. Ficámos atónitos. Como é possível, aqueles senhores depois de serem “esfaqueados” por um estridente e inesperado “Hillo” e agredidos por 37.768 palavras em inglês sem vírgulas no meio, retribuirem com um agradecimento em vez de um estaladão. À medida que caminhávamos, assistimos a mais 3 assaltos ao simpático casal, todos eles vindos de “carraças” contratadas pelos restaurantes, que, tal como mosquitos que nos acordam às 4 da manhã com o seu agradável zumbido junto aos nossos ouvidos, nos apetece espalmá-los entre o chinelo de quarto e a parede. Apesar de todos os defeitos, esses seres repugnantes tinham a capacidade de seleccionar criteriosamente o tipo de cliente. E a ordem que teriam dos donos seria: “ó meu, eu só quero aqui malta da grana, topas? tudo o que seja português, marroquino, ou guineense não interessa! Eu só quero “steaks”, daqueles que confundem as notas de 5 com as de 50! O que é certo é que, mesmo que estivéssemos embrenhados no meio de 30 ingleses, disfarçados com bigodes e cabeleiras loiras, de meias de lã e chinelos, éramos descobertos e votados ao desprezo.
Procurávamos um restaurante onde pudéssemos comer um bom peixe assado na brasa.. À medida que avançamos, rapidamente descobrimos que dificilmente nos desenvencilhamos sem a ajuda dum dicionário de bolso. Os nomes dos restaurantes, transburdando de latinidade, perspectivavam uma busca dolorosa: “Jack’s grill”, “Irish Spot”, “Rick’s place”, “Frog’s”, “Garage”, “Mary Anns”, “Cross road”. Quanto às ementas, essas sim tinham todas um cunho bem lusitano : “Bacon and eggs”, “Full english breakfeast”, “roast chicken”, “chips and salad”, “apple pie and cream”, “special spare ribs”.
Depois de comermos um hamburguer, decidimos ir averiguar os programas de animação nocturna que os bares e esplanadas nos ofereciam. Então vejamos: para os mais desportistas ...“Tonigth at 10 pm football - England v Germany”; para os apreciadores de boa música ao som de bandolim...“Live music with Tom McLoughlin”; para os candidatos a cantores... “Karaoke - english and american music only”.
Porra! então e nós? não temos uma noite da água pé, um jogo de futebol entre o Tavira e o Quarteirense, ou um Karaoke com músicas da Agatha e dos excesso? Que discriminação vem a ser esta?
Depois de sentirmos uma revolta patriótica por descobrirmos que os ingleses tinham colonizado uma parte do nosso país, descobrimos que nem era tão mau assim. Afinal estávamos noutro país sem termos pago a passagem de avião, o aluguer do carro e a estada no hotel. Podíamos comer comida inglesa, ouvir música inglesa, falar a língua inglesa, bastando para tal percorrer 300 km num ferrugento citroen AX.
Quem deveria estar furioso, seriam todos aqueles britânicos que, ao pagarem uma passagem de avião, alugado o carro e pago a estada no hotel, em busca de uma nova gastronomia, de uma nova língua, de uma nova cultura, chegam à conclusão saíram de casa para chegar a... casa(?). And this explendid sun? Quanto ao sol,... bom,... que tal um “holofotezito” escondido no canto do quarto e um cenário artificial com traineiras e varinas? Sairia decerto bem mais barato. Mas não!...
...We love Portugal! Mas vocês não estão em Portugal seus ignorantes! como podem dizer que gostam de uma coisa sem a conhecerem? Para conhecerem Portugal vão ter que sujar as vossas delicadas mãozinhas com a gordura de uma sardinha assada, de beber um vinho Vidigueira sem o objectivo de se engrossarem, de trocar os passos ao tentar aprender dançar o corridinho, de fazer um esforço para perceber a nossa estranha linguagem, enfim, de se abstrair um pouco da cultura egocêntrica onde foram criados e se abrir a novas culturas numa atitude de clara humildade. Só assim, poderão dizer aos amigos, quando chegarem a casa, que conheceram uma região daquele pequeno país peninsular junto ao oceano atlântico, que para além do sol, tinha outros aspectos interessantes.
No final do fim de semana entregámos as chaves do apartamento à senhora da recepção que, curiosamente, foi bem mais simpática do que no dia da chegada. A resposta dada a um “Adeus” português era igual ao “Hello” inglês;...estranha coincidência(?).
Decidimos regressar no nosso Ax pelo interior alentejano, para melhor apreciar os montes multicolores próprios da época. Quando parámos num café para desentorpecer e ouvimos falar alentejano, sentimos uma alegria imensa por finalmente passarmos a fronteira para o nosso país. Aquele “atão compadre”, cheirava a casa e garantia-nos que aquela pessoa à nossa frente, de boné na cabeça e patilhas prolongadas, jamais libertaria um “Hello, how are you!”.

Feijoada à transmontana




A análise da ementa no restaurante é uma das tarefas mais atractivas que conheço. Sabe-se à partida que serão outros a lavar a loiça mas fundamentalmente, com tantas e tão variadas opções, não se corre o risco, de ter de se comer o jantar da véspera, aquele arroz de pato empapado e insosso que entrou no frigorífico quase intacto por ninguém o conseguir consumir. Para além da regalia de alguém nos questionar acerca das nossas preferências para o almoço, a leitura da ementa é um momento de verdadeiro deleite para um espírito salivador. Cada prato que se encontra escrito naquele pedaço de papel leva-nos a imaginar a confecção, a apresentação, o odor , o sabor, a textura e as pastilhas Alka Selzer que teremos de tomar após a sua ingestão. Quando nos preparamos para fazer o nosso pedido, eis que surge no ar aquela palavra emitida pela boca da amiga do nosso amigo, sentada na nossa mesa: - Sabes quantas calorias têm esses bifinhos com cogumelos e natas que acabaste de pedir?
Como é possível transformar um tenro bife de lombo, banhado com aquele suculento molho esbranquiçado, estaladiças batatas fritas, um arroz saboroso e uma salada bem avinagrada por um conjunto de calorias? A paranóia das calorias destrói qualquer leitura prazerosa de um menu. A análise dos ingredientes é ultrapassada por um estudo de conversão calórica apenas ao alcance de especialistas dietéticos ou ilustres matemáticos.
A obsessão calórica surge geralmente, não por motivos de saúde, mas sobretudo por exigências de índole estética. Curiosamente, o valor da palavra caloria aumentou quando se diminuiram as peças de vestuário. Enquanto os fatos de banho tapavam o corpo dos joelhos ao pescoço e as saias rodadas terminavam no rebordo das solas dos sapatos, nenhum destes traumas calóricos era conhecido. A culpa é do criador do...biquini que descobriu a forma de se poupar em tecido e de esbanjar partes carnais expostas a olhares alheios. A par deste des...cobrimento progressivo do corpo, aumentou gradual e compreensivelmente a importância dada ao mesmo. Para agravar , o ideal de beleza promovido pelos anúncios da “pepsi diet”, dos filmes da Palmela Anderson ou dos desfiles de Gaultier nada tem a ver com o conceito tão propagandeado de outros tempos de que “Gordura é formosura” . A beleza da roliça e anafada mulher que constituiu no início do século fonte de inspiração a poetas, escultores e pintores, deu lugar ao culto da mulher esquelética sem vestígio de qualquer prega de adiposidade. As revistas femininas, repletas de receitas anti-celulite, dietas milagrosas à base de extractos de algas e verduras orientais, exercícios específicos para reforçar o traseiro e consolidar os volumes peitorais, vendem-se a ritmos colossais.
Nas academias de ginástica multiplica-se a oferta de actividades que “garantem” uma silhueta agradável. Nas paredes dos ginásios, exibem-se posters de homens musculados e mulheres adelgaçadas, como se de objectivos esculturais se tratassem para os frequentadores do espaço.
- Quer ficar como eles? Então terá de gastar muitas calorias nas nossas aulas de Cardiofitness, levar muita estalada nas coxas pelas mãos do nosso massagista, fazer 150 repetições nas nossas máquinas de musculação, suar que nem um louco na nossa sala de sauna, beber as bebidas energéticas no nosso bar e pagar uma mensalidade irrisória na nossa recepcionista. Se depois de tudo isto necessitar de esconder o seu fabuloso corpo durante as férias balneares, venha cá que nós puxamos mais um bocadinho por esse “cabedal”!
Quando não se consegue mudar o “cabedal” com ginástica e iogurtes magros, recorre-se ao bisturi de um cirurgião plástico. “Quanto custa um corpo perfeito?” era o título de uma revista Mulher Activa num dos meses que antecedia o verão. Abriam-se as páginas e verificava-se que os “milagres” estéticos existem, e por “meia” dúzia de tostões consegue-se, sem grande esforço, um novo corpo. Claro que os respectivos maridos terão de ter algum cuidado no manuseamento das novas criações para não correrem o risco de ficar com uma bola de silicone nas mãos. Mas para alguém que tinha a aparência da Sara Ferguson, ficar de repente transformada em Michelle Pfeiffer, todos os sacrifícios serão compensados. Serão mesmo? valerá a pena abdicar dum bom cozido à portuguesa ou suportar o pós operatório de uma cirurgia plástica para se conseguir encaixar na roupa da Mango, exibir a silhueta na Praia da Rocha ou apreciar a sua imagem na montra da loja? A resposta afirmativa que obteria numa amostra considerável da população, não pode ser dissociada da promoção estereotipada e exacerbada que a poderosa máquina publicitária faz de um ideal de beleza voltado para a exterioridade. Acho uma certa piada quando perguntam a uma actriz vaporosa qual a característica que mais admira nos homens e ela responde prontamente que aprecia fundamentalmente a sua inteligência e beleza interior. Adivinha-se que depois de tão íntima revelação, regresse ao aconchego do seu lar onde a espera o seu marido, atarracado cientista de metro e cinquenta com estrabismo acentuado, dentes amarelados e um capachinho tapando a escassez capilar.
Talvez daqui a uns anos a mulher ideal, magra, de nariz implantado e com distúrbios maníaco-depressivos causados pela abstinência alimentar, dê novamente lugar a uma mulher mais redondinha, mais alegre, com a capacidade de olhar para a ementa do restaurante e, sem qualquer tipo de pejo, pedir uma calórica feijoada à transmontana.

sábado, 26 de maio de 2007

E por falar em gases...



Alegrem-se torrejanos! Daqui a uns séculos, a vossa casa construída no meio do olival vai beneficiar de uma esplêndida e inesperada vista para o mar. Acabar-se-ão as longas horas de abarrotamento do automóvel com tralha para os 15 dias de férias na praia do Pedrogão , isto porque, segundo previsões fidedignas transmitidas pela revista Visão, “o mar vai engolir Portugal”. Em boa verdade o mar vai engolir o actual litoral. A malta do interior é que vai gozar à fartazana. Podemos andar de chinelos de dedo durante todo o ano, os mini-mercados aumentarão os preços dos produtos para o dobro no verão, os estrangeiros invadirão a nossa Albergaria, a venda de protectores solares nas farmácias subirá em flecha, espalhar-se-ão vendedores de pulseiras e pintores de retratos na rua da Levada. É certo que também acabarão pequenos devaneios turísticos como visitas à baía de Cascais, compras na rua Augusta, ingestão de pastéis de Belém, doces de ovos de Aveiro, sardinhas em Portimão ou francesinhas na ribeira, tudo porque estes locais ficarão transformados numa espécie de Atlântida submergida no oceano. Em contrapartida Beja passar-se-á a chamar Malibu Alentejana, Coimbra será baptizada com o título de Côte Azur de Capa e Batina e Setúbal converter-se-á numa espécie de Porto Santo continental. Não me agrada o panorama...
As causas para esta transformação de Torres Novas em colónia balnear estão nos gases; no efeito de estufa; nos americanos; no George Bush e fundamentalmente na Coca-Cola (?).Mas vamos por partes. É tudo uma questão de gaseificação. Existe uma excessiva emissão de gases industriais e urbanos para a atmosfera o que leva ao sobreaquecimento do planeta com consequente descongelamento do gelo polar e aumento da água nos oceanos. Por seu turno, milhares de americanos consumiram demasiada Coca-cola levando a que existisse uma sobreprodução de gases ao nível intestinal e intelectual levando-os a elegerem um bronco para seu presidente que por sua vez se está marimbando para os gases na atmosfera porque na sua cabeça o espaço reservado à massa encefálica está condicionado pela existência de uma imensa nuvem de gases. Agora que já cumpri um desejo de escrever um parágrafo à imagem de Saramago, vou explicar mais pausadamente. O bronco do Bush, presidente do país responsável pela produção de 25% dos gases malignos, ignorou o protocolo de Quioto que previa a redução da emissão de gases a nível global em 5,2%. O parceiro do jogo que mandou mais cascas de tremoços para o chão foi um dos poucos que se recusou a deitá-las no caixote do lixo. Isto porque Bush contestou as provas apresentadas sobre os malefícios do Dióxido de Carbono na atmosfera. O homem até conseguiu fazer uma associação. Mas que mal poderia fazer o CO2 à atmosfera se a Coca-Cola, refrigerante mais vendido no mundo inteiro, tem na sua composição esse gás? Então, ora bem... se as pessoas gostam de Coca-cola, também gostam de CO2, como tal, não vale a pena reduzir da atmosfera um gás que as pessoas consomem voluntariamente e ainda pagam para o ter. Pensamento de mestre. O mundo agradecerá o desaparecimento maciço de cidades e países, os verões tropicais de 45 graus à sombra, o uso generalizado de máscaras que evitem bronquites asmáticas, a redução de reservas de água doce e tudo isto em troca... dos gases da Coca-cola. O que me deixa louco é o facto de nada podermos fazer para alterar alguma coisa que seja, porque quem manda é o bronco. Alguma coisa poderemos fazer, nem que seja chamar-lhe um nome feio, ou atribuir-lhe uma alcunha...isso,... uma alcunha bem depreciativa. Ao menos ficaremos com um certo alívio. E vendo bem as coisas, se na escola colegas se alcunham por muito menos : pudim flan por ser gordo, palito por ser magro, dentuças por proeminência dental exagerada, chegou a altura de alcunharmos alguém que realmente merece. Lembrei-me de utilizar o nome dos gases que poluem a atmosfera: não ficaria mal um George Óxido Nitroso ou Clorofuorcarboneto Bush, mas pensei melhor e cheguei à conclusão que seria mais adequado usar um dos ingredientes da Coca-cola. Entre o corante, o caramelo, os acidificantes, os edulcorantes e a cafeína, encontrei designações que apesar de aparentemente menos sonantes seriam muito bem empregues como alcunhas: os “És” seguidos de três números. Os “És” poderiam abarcar várias alcunhas numa só. O “E” representaria a característica, e o número a magnitude da característica. Por exemplo o E-338 poderia significar “- Este gajo é 338 vezes estúpido”. Para o “E” poderíamos enumerar adjectivos como Energúmeno, Esbofeteador, Errante, Estroina, Epidémico, Estrumeiro, Estrupício, Enxavido, Estupor, todos eles bem contundentes e provavelmente exagerados. Mas é isso que me está a apetecer: alcunhar exageradamente. E para ser mais exagerado, optei pela Coca-cola Light que tem mais e maiores “És”. Portanto senhor George E-952 Bush, não se esqueça de colocar no rótulo das garrafas de Coca-cola o aviso : “Os gases desta bebida prejudicam gravemente a saúde”.

sexta-feira, 25 de maio de 2007

A problemática da flatulência

Um dos maiores tabus do nosso século é sem dúvida o flato. Tecnicamente, o flato representa a exteriorização da acumulação de gases no intestino. De uma maneira simples, é a libertação para o exterior de gases produzidos no interior do organismo. Essa libertação poderá ser materializada sob duas formas: O peido, é uma ventosidade extrovertida que anuncia a sua chegada ao exterior de maneira ruidosa. Quando a saída dos gases se processa sem qualquer sinal sonoro, dando um certo anonimato ao responsável pela acção, toma a designação de bufa. Em ambas as formas é libertado um odor geralmente pouco agradável para as pessoas próximas do autor. Nesta fase já o leitor estará chocado com o conteúdo desta crónica, demonstrando que realmente a flatulência é um tema tabu. No entanto toda a gente se peida, assim como urina ou defeca, por ser uma necessidade fisiológica. Se uma pessoa disser a outra que vai à casa de banho fazer Xi-xi, ninguém se escandaliza, até incentiva. O que soa mal é alguém dizer:
- Olha vou-me peidar ali na casa de banho e volto já!
A reprovação é imediata, o que nem tem muita lógica, dado que o visado foi realizar a sua acção de forma isolada com a preocupação de não incomodar o seu amigo. Pior seria se libertasse uma bufa e culpasse, com um olhar acusador, a inocente senhora que passava ao seu lado.
O desenvolvimento deste tabu ao longo dos anos tem uma relação directa com a sonoridade do nome atribuído ao mesmo. Se repararmos com atenção, o termo bufa é mais bem aceite do que peido. Soa melhor, é menos agressivo e mais suave. A bufa está para o peido como o xi-xi está para o mijar. Designam actos semelhantes mas produzem reacções bem diversas. Xi-xi é sem dúvida o termo mais agradável de entre os quatro e curiosamente o único que não vem no dicionário. É a tentativa de dar um ar mais infantil e carinhoso ao que é reprovado socialmente. Assim criou-se o “pum” para peido, lembrando a batida de um tambor, ou “cócó” para defecar, dando uma aparência galinácea e divertida ao acto.
O que todos deverão ter em comum é o condicionamento da sua prática à intimidade. São acções eminentemente solitárias, excepto para os menos recatados que guardam as bufas para serem libertadas no autocarro em hora de ponta, analisando a reacção das vítimas a posteriori. Na realidade os efeitos da bufa em locais públicos são similares aos provocados pelo fumo do tabaco. Ambos incomodam quem deles não usufrui. O caso do tabaco é um pouco mais perturbador porque traz malefícios à saúde dos outros. Daqui a uns anos aparece a LBI, “Liga dos Bufadores Inveterados” a reivindicar locais para se poder bufar à vontade sem medo de represálias. Nos aviões, restaurantes, cafés e bibliotecas será obrigatória a existência de lugares para Bufadores e Não Bufadores, devidamente sinalizados.
Mas se é aceite que o flato deverá ser libertado em privado, já não é tão claro qual o melhor local para o fazer. A casa de banho é o primeiro refúgio que vem à cabeça. No entanto, não existe lugar mais inadequado para a consecução do acto, fundamentalmente quando se têm visitas em casa, sabendo-se da excelente acústica proporcionada pelo formato da sanita. Por outro lado, a generalidade das casas de banho são locais exíguos e pouco arejados, sendo à partida desaconselhado o abandono de uma desagradável lembrança olfactiva aos utilizadores que se seguem, que não têm culpa da alimentação desregrada do “bufador”. O ar livre é o espaço no qual os riscos de agressão exterior dos nossos humores interiores são mais reduzidos. Se a libertação do flato coincidir com a passagem de um bando de aves migradoras e se realizar debaixo de 3 eucaliptos, os seus efeitos serão perfeitamente dissipados e imperceptíveis aos ouvidos sensíveis de um pianista e ao olfacto treinado de um criador de perfumes.
O tabu criado em torno do flato prende-se com regras socialmente e culturalmente enraizadas. No entanto, as normas sociais que reprimem o flato apresentam algumas lacunas. Vejamos o caso das crianças que são estimuladas a libertar a sua flatulência sem qualquer sinal de relutância. Até se acha uma certa piada e se comenta o cheiro da bufa do menino. Se um adulto, por descuido, deixa escapar um traque e diz: “Desculpem lá, mas acabei de me peidar!” , é aconselhado pelos amigos a consultar um psiquiatra, ou então a regredir cronologicamente até uma idade que lhe permita dizer e fazer o que lhe apetece sem ser reprimido, ou seja, aos 5 meses.
Quando alguém diz que peido é uma asneira, está a dizer uma grande...asneira. Peido, tal como flato, bufa ou traque, são palavras que fazem parte do vocabulário português e como tal jamais deverão ser rejeitadas ou originadoras de tabus. O flato contribui para a nossa sanidade e, renegar a sua existência, é esquecer que temos um aparelho digestivo incluído nessa criação suprema que é o corpo humano. Não se esperará que a flatulência seja o principal tema de conversa entre empresários numa reunião de negócios ou motivo de discussão entre senhoras finas num encontro de canasta. No entanto, se alguém “ousar” soletrar a palavra peido, não fará mais do que falar de algo banal e intrínseco à própria natureza humana.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Balconite Aguda

Entra pela porta de uma repartição pública um senhor idoso de aspecto humilde dirigindo-se para o local do balcão onde se encontra uma senhora sentada. Esperou alguns momentos e, perante o estado inerte da suposta anfitriã, o senhor perguntou timidamente:
- Olhe, se fazia o fav... (antes de conseguir terminar a frase é elucidado)
- Não vê que eu estou ocupada!!!
O senhor baixou a cabeça e continuou a apertar o boné entre as duas mãos, acatando pacifica e servilmente a ordem da simpática recepcionista. Ao fim de alguns minutos a doce criatura decidiu interromper (a breve trecho) a leitura da página dos conselhos íntimos da revista “Maria” e dirigiu-se educadamente à pessoa de aspecto humilde e desamparado que se encontrava do outro lado do balcão:
-O que é quer!
-Bom, eu ...bom eu, queria vêr se era possível...
-Mas que folha é essa? Então você não sabe que isso não chega? tem de me preencher 2 requerimentos, arranjar 3 certidões, reconhecer 4 assinaturas e decorar em 5 minutos o Despacho Normativo nº 134/91 do Diário da República!
-Mas minha senhora eu...só vim aqui...
-Será que eu falo Chinês? Você não me ouviu? É que eu tenho mais que fazer do que estar aqui a ouvi-lo (afinal ainda só ia na décima terceira página da revista) !
-É que o meu filho pediu-me que eu viesse aqui só para entregar esta folha. Ele disse que isto chegava e eu pensei...
-Já lhe disse o que tem a fazer e não vou voltar a repetir!
-Mas eu não sei ler nem escrever! confessa o senhor envergonhado
-E que culpa é que eu tenho se não foi à escola!
O senhor pediu desculpas e saiu do estabelecimento tal como entrou, apenas um pouco mais confuso e humilhado.
A senhora que o recebeu aparentava ser uma pessoa normal: Tinha um marido de quem gostava, três magníficos filhos, dois cães e um periquito, uma casa hipotecada ao banco e umas pantufas compradas no mercado. No conforto do seu lar era uma pessoa agradável, divertida, protectora, trabalhadora e atenciosa. Mas as pessoas que a rodeavam não conheciam a sua dupla personalidade. A outra face obscura apenas se manifestava perante aquele objecto de madeira irresistível : o balcão da sua repartição!
Quando inspirava o pó acumulado sobre balcão dava-se a total transfiguração: as pupilas tilintavam, os joelhos tremiam, a voz tornava-se mais firme e grave, a altura dos seus saltos aumentava e o seu sorriso transformava-se numas “trombas” de efeito prolongado. Sentia uma sensação de liberdade mas acima de tudo sentia-se a melhor “espezinhadora” do mundo. Não precisava de fazer a comida sem esturricar, de lavar meias mal cheirosas ou mudar as fraldas do filho mais novo às 4 da manhã. Atrás daquele balcão era ela quem definia as tarefas, quem estipulava o tempo, quem decidia quais os clientes que mereciam ser atendidos e quais as revistas que mais a enriqueceriam culturalmente durante o expediente.
O utente introvertido, que espera pela sua vez, se dirige com uma voz sumida à sua pessoa, e começa o diálogo com um acanhado “por favôr” representa a vítima mais apetecida desta ditadora do balcão. O processo de humilhação passa por duas etapas fundamentais: 1ª etapa “distanciamento punitivo”– agora ficas aí à espera qu’é p’ráprenderes a não seres tão educadinho! Esta etapa demora geralmente entre 5 e 28 minutos ; 2ª etapa “o golpe de mestre” – agora eu estou aqui do lado de dentro do meu balcão e tu aí desse lado ; eu é que tenho as minutas, as esferográficas, os carimbos, os selos e as máquinas de escrever, portanto quem manda aqui sou eu! Esta etapa representa o tempo que a vítima demora a conseguir articular a primeira frase sem interrupções ou a engolir em “seco” pela vigésima quinta vez.
Geralmente o tempo que duram as duas etapas referidas poderá ser reduzido drasticamente caso o utente se apresente da mesma forma como pede uma imperial na tasca da esquina. A sua chegada é anunciada com um vigoroso murro no balcão entoando as suas exigências com voz de tenor embriagado, capaz de ferir os tímpanos à dactilógrafa da sala ao lado. Ao invés do “se faz favor” utiliza a frase bem mais contundente e apelativa “eu quero” . Nem ela resiste a tanto charme... Este é o utente que consegue deitar por terra o seu letal olhar, as palavras incisivas, os gestos reprovadores. Felizmente para ela, estes utentes, que fazem perigar a demonstração da sua força bélica, não são muito frequentes.
Atendeu o último chato do dia e com ele o seu trabalho chegava mais uma vez ao fim. Á medida que se afasta do balcão todas as características genuínas da sua personalidade iam recuperando as funções e quando chegou a casa já conseguia esboçar o seu primeiro sorriso.
Á noite, deitada no seu travesseiro de penas e a dormir profundamente, não conseguia eliminar dos seus sonhos a sequência de letras : olhe, se faz favor....

O Ás do volante


Depois de dar à chave pela 8ª vez consecutiva e de não conseguir ouvir o característico ruído produzido pela (super)potência do motor do seu citroen AX, Ediberto percebeu que aquele companheiro de 4 rodas decidira uma vez mais fazer greve ao deslocamento. Apesar da provecta idade, o seu carro dispunha de sensores totalmente inovadores para avaliar a urgência da situação: se o seu dono abria a porta bruscamente, sinal que estava atrasado para o emprego e os riscos de o maltratar serem maiores, accionava o mecanismo de auto-protecção, imobilizando-se de imediato.
Mas o esperto do Ediberto que já conhecia a má disposição matinal do seu veículo, na noite anterior, tomou as medidas necessárias para o demover da inércia, colocando-o numa descida. A aceleração intensa que realizou depois de conseguir pôr o seu carro em funcionamento servia para o penitenciar e, simultaneamente comunicar aos 11 vizinhos, que até aí dormiam profundamente, que o habitante do 3º esquerdo tinha saído para o emprego.
No primeiro cruzamento que encontrou não reparou no sinal hexagonal vermelho com quatro letras escritas, nem tão pouco na outra viatura que circulava na via para onde entrou e que obrigou a travar bruscamente. Incomodado com barulho emanado pelo (legítimo) buzinar do carro atrás do seu, ainda por cima vermelho (a cor rival do clube do seu coração) , Ediberto não é de modas e acena-lhe com todos os dedos flectidos excepto um, como que a dizer:
-Ó palerma, tu não sabias comprar um carro verde com uma buzina que entoasse música “Rave”?
Pode-se considerar que Ediberto encarna o verdadeiro artista do volante; sem grande esforço e circulando a alta velocidade consegue fazer passar o carro entre uma moto, um tractor, duas bicicletas e uma mãe empurrando o carrinho de bébé, sem ter de desligar o telemóvel.
O único contratempo que pode retardar aquele exímio condutor são as...filas. A sequência de carcaças metálicas que estava à sua frente e o obrigam a pressionar o bolorento pedal central representa uma penitência difícil de superar. Para amenizar o sofrimento da terrível espera tem ao seu dispor 2 métodos recreativos: ou se entretêm a observar as moçoilas que passam acompanhando a análise com alguns piropos picantes, ou diverte-se pressionando a buzina, tentando estabelecer, em código morse, laços de amizade com o condutor da frente.
Acaba por fim o congestionamento e inicia-se a aceleração triunfante rumo ao local de trabalho. Quando se prepara para explorar todas as potencialidades do seu carro, encontrou mais um obstáculo à sua progressão: veículo a circular a 50 Km/h...50 km/h? mas ninguém anda a 50km/h ainda mais dentro duma localidade!?
- Ó “abrolho”, tira essa lata da frente! Gritava Ediberto enfurecido.
Escusado será dizer que a “lata” era um BMW último modelo com ar condicionado, jantes de liga leve e air bag para todos os ocupantes (inclusive o gato) , e o “abrolho” do condutor era um senhor descontraído que a avaliar pelo aspecto fino deveria ter a carteira cheia de cartões de crédito.
Quando Ediberto consegue ultrapassar em plena curva o seu opositor, olhou para ele e liberta um reparo cheio de intimidade:
- Ouve lá ó Amélinha, recebeste a carta nos pacotes da farinha “maizena”? Vai mas é p’ra casa lavar a roupa!
Depois de se desembaraçar de mais um “empecilho” prossegue viagem e começa a antecipar o seu momento de glória. Orienta o espelho retrovisor para o bigode, penteia a longa cabeleira, coloca os óculos escuros, retira a cera dos ouvidos com a unha, ensaia o sorriso mais cinematográfico, liga a aparelhagem sonora nos 150 decibéis e, com a mão pendente fora da janela, segura o cigarro aceso. Quando passa a 8 Km/h em frente da Escola Secundária o seu Ego fervilha de confiança; sente-se o Humphrey Bogart nos seus melhores dias. Como um verdadeiro macho latino, não diz nenhuma palavra, apenas lança um olhar aglutinador e pedófilo pelos 17 melhores “collants” que se encontram ao portão daquele estabelecimento de ensino. Para as raparigas menos atentas à sua inebriante passagem, Ediberto oferece como despedida uma das suas sonoras e olfactivas acelerações, deixando de recordação metade do rastro dos pneus “mabor” no alcatrão.
As poucas centenas de metros que faltavam para o emprego, eram preenchidas com a retrospectiva da acção de galanteio elaborado que tinha acabado de produzir junto do público feminino. Os pensamentos inibiam de tal maneira os actos que Ediberto apenas se apercebeu do senhor idoso que passava lentamente na passadeira, já quase encostado à sua bengala. Mas como a perícia suplantava qualquer sobressalto, travou bruscamente e evitou o impacto eminente. Perante a queda do senhor, Ediberto colocou a cabeça fora da janela e, num acto de solidariedade gratuita prontificou-se de imediato a ajudar:
-Ó velhadas, não sabes andar com mais atenção? Tira esses ossos caquéticos de cima da passadeira senão passo-te por cima!
Finalmente chega ao local de trabalho e, quando questionado pelos colegas sobre o facto de ter chegado atrasado, Ediberto com um ar visivelmente agastado responde:
-O trânsito na cidade está impossível ! Um gajo encontra cada maluco ao volante...

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Rosto Pálido tem um novo LCD


A minha adolescência foi marcada de forma determinante pelos livros do Tex. Chegava da escola extenuado, arranjava as minhas 4 sandes com tulicreme e punha-me no quarto a ler as histórias do meu herói predilecto, aproveitando para encher o livro com as migalhas que iriam cair no colo da minha irmã quando os abrisse de seguida. Partilho esta enternecedora história de infância para perceberem que a minha personalidade foi, em grande medida, moldada pelos duelos fratricidas entre índios e cowboys nos tempos do faroeste que se traduziam posteriormente, nos duelos fratricidas entre eu e a minha irmã, porque ela não gostava lá muito das migalhas dentro do livro. E Foi, com esta imagem dos pistoleiros bons a dominarem os índios quase sempre maus, que eu cresci. Raras eram as histórias em que os índios, representavam o bem, salvavam velhinhas, ajudavam a montar os acampamentos dos colonos e comiam xupa-xupas daqueles que pintam a língua de verde. Em quase todas elas, os Peles Vermelhas (até lhes atribuíram uma cor sanguinária para realçar a sua malvadez) atiravam flechas a fazendeiros indefesos, arrancavam escalpes a criancinhas loiras e ainda por cima pintavam a cara e grunhiam em cima de cavalos sem selas. Tudo isto para que o Grande Tex, pudesse salvar os fazendeiros, as criancinhas loiras, mandasse umas murraças nas pinturas foleiras dos peles vermelhas e nós continuássemos radiantes a encher os livros com migalhas. No meio de todo este endeusamento do pistoleiro americano, surgiu o Gerónimo para nos baralhar as voltas. Gerónimo, grande chefe apache, revoltou-se contra o Rosto Pálido porque este queria ficar com as suas terras e vá de lhe dar umas coças valentes. Aí um tipo fica baralhado. Os cowboys não deveriam levar tareias dos índios. Mas se os tipos ocuparam as suas terras queriam o quê? E a partir daí foi-se dando a minha viragem enquanto admirador do Cowboy bom que dá enxertos nos índios maus, para admirador do índio bom que dá enxertos nos cowboys maus.
Tudo isto vem a propósito do dia em que tomei consciência da magnitude do imposto(?) que irei ter de pagar pela minha casa e pelo meu terreno a uns tipos que não me são nada. Ao perceber do absurdo que é pagar a outros, algo que é… meu(?), apeteceu-me fazer um arco de madeira, flechas com penas de ganso, montar-me no meu…cão…, e passar ao ataque da revolta. Tenho a impressão que, com algum jeito, até conseguiria fazer um grito parecido com o dos índios com a mão na boca sem parecer um bocado amaricado. Gerónimo como eu te percebo! Volta Cochise estás perdoado!... Este “Rosto Pálido” está cada vez mais pálido de pagar, até o que já é seu. Há momentos em que me apetecia ser índio. A primeira grande vantagem é não ter de pagar imposto, bom, exceptuando as peles de urso ao futuro sogro pela mão da sua futura esposa. Mas sobretudo não tinha dinheiro para gastar, nem nada em que gastar dinheiro. Não sabia do último modelo do hi-pod nem tão pouco do portátil com mais gigas e dual band e sei lá mais o quê; os últimos sapatos da timberland que são caros como camandro mas também muito engraçados não rivalizariam com os mocassins; não tinha problemas de obesidade, porque tinha de perseguir e apanhar os búfalos e não levar uma cornada deles; não tinha carro para mudar o óleo ou as pastilhas; e era dono das terras…até vir o camelo do “rosto pálido” dizer que ou pagava imposto ou teria de sair. E assim estamos nós na época do nosso grande chefe Sócrates que taxa tudo o que mexe e o que não mexe; taxa tudo o que é dele e o que é nosso.
O cartoon de Grezegorz Szumovski, vencedor de um prémio no Porto, retrata um indígena segurando um arco a lançar um telemóvel que se encontra agarrado à sua flecha. Nele se pode ver o sorriso do índio quando estica a corda atrás e se prepara para mandar o pobre do telemóvel para as malvas. E esse sorriso é sintomático de que ele está feliz. A minha interpretação para o seu pensamento será: “é melhor mandar esta coisa com botões para longe não vá ela explodir nas minhas mãos e depois já não posso caçar javalis”. Obviamente que para os críticos, a imagem traduz algo bem mais rebuscado como a própria evolução do homem, a imagem da globalização. Um homem que nada tinha, evolui para um homem que toda a tecnologia tem. A tecnologia que lhe iria permitir ter mais tempo livre (?) e com isso maior qualidade de vida(?). Como se deve estar a rir Gerónimo da triste figura do rosto pálido. O tal que lhe retirou as terras para lá se estabelecer, passa os dias em frente a umas caixas com imagens esquisitas e a fazer contas a todas as contas que terá de pagar a outros rostos pálidos. É esta a sina do rosto pálido dos tempos modernos, montado no seu cavalo, tentando escapar a umas flechadas atiradas por outros da sua raça, à espera do momento em que cai desamparado no chão e ouve: Rosto Pálido Morde o Pó!
Agora chega de escrita, porque aqui o rosto pálido vai ali ver umas imagens numa outra caixa esquisita que não tem botões para escrever, sempre à espera que a mesma avarie, para o rosto pálido ter uma boa desculpa para comprar o tal LCD que dizem ser uma coisa em grande….

segunda-feira, 21 de maio de 2007

Curto-circuito

Tenho de confessar que me assustei quando ouvi repetidamente o termo “Choque Tecnológico” como a grande prioridade do governo. O tecnológico até soa bem, lembra-me aqueles filmes do Espaço 1999, da Guerra das Estrelas ou do Matrix. Naves espaciais com homens orelhudos, lutas com espadas florescentes e tipos contorcionistas a fugirem de balas que voam em câmara lenta. O que me custa perceber é de onde é que se desencantou o termo “choque” como uma proposta dinamizadora e estimulante. Será que nunca apanharam uma descarga eléctrica na vida, para saber do desagradável que é um tipo ficar ali em tremideira à espera que alguém desligue a corrente? Se choque fosse algo de bom, não dizíamos aos nossos filhos: Ó Zé tira lá os dedos da tomada senão ainda apanhas um choque e duas palmadas! Assim de repente não me lembro de nenhum choque divertido. Temos o exemplo do choque térmico sentido pelo indivíduo que está 2 horas a comer camarões tigre à torreira do sol e depois da última imperial resolve dar um mergulho nas águas gélidas da nossa costa. Fica logo com azia e cheio de vontade de voltar à toalha e às gambas. O choque entre um carro e um eucalipto adulto. Os bombeiros a desencarcerar os ocupantes do veículo sinistrado dizem para um deles: Valente choque, eim? Vá, agora deixe-se de fitas e corra até à ambulância que é p’rá gente o levar ao hospital tratar desses ossos fracturados! Será também ridículo imaginarmos os prisioneiros das cadeias em Bagdade a levarem com uns choques nos costázios e, enquanto se contorcem vigorosamente, os guardas pensam: - Pára lá com essas risadas para aplicarmos mais uma descarga de volts nesse corpinho. Mas o Primeiro Ministro percebeu que meteu o pé na argola. Descobriu que a palavra “choque” soava mal a qualquer indivíduo lúcido e resolveu trocá-la por “Plano”. Assim, se repararem, ultimamente fala-se apenas em “Plano Tecnológico”; eliminou-se a sensação de “fronha contra o inamovível eucalipto” e passou-se a um termo mais simpático, menos abrupto. No “plano” ficamos com a ideia que existiu um estudo prévio; não é só meia bola e força. O “plano” é algo para ser ir fazendo, pode ser alterado ao longo do tempo, ou não ser feito de todo; não é como o “choque” que se apanha e pronto. E chegou-se assim ao “plano tecnológico”; a prioridade que ninguém percebe bem o que é, mas que todos apoiam por se lembrarem com saudosismo do mundo ficcionado do Mr Spock na nave “Enterprise” a dar palmadinhas nas costas ao capitão Kirk. Explicou-me um amigo mais iluminado que o plano tecnológico pretende, entre outras coisas, ligar todas as escolas entre si via Internet, para os alunos terem assim um acesso mais rápido e fácil à informação. Depois vi o engenheiro Sócrates dentro de uma Sala de Aula Virtual todo contente a explicar como o aluno poderia ver no ecrã gigante toda a informação de que precisava. São destas medidas de fundo que o ensino precisa; cada aluno com o seu computador conseguindo aceder a toda a informação fundamental ao seu desenvolvimento. - Ó stôr, pode vir aqui explicar como se chega à página das “Loiras aos saltos”! Disseram-me que nesse site se aprende com facilidade as leis da Física e os conceitos de anatomia aplicada às…loiras! Mas a sala de aula virtual, espelha bem o ensino que nos pretendem impingir daqui a pouco tempo…um ensino integralmente virtual, onde o professor está ali para ir buscar uns sumos ao bar, apanhar pastilhas do chão e eventualmente, com sorte, assumir um papel mais activo a matar uma aranha que passe por cima do teclado. Mas será que estes tipos são mesmo idiotas ou acreditam sinceramente nisto? Desculpem-me lá mas isto só vai com linguagem de choque. Se colocarmos um imbecil em frente a um computador com acesso a toda a informação disponível na Internet, ao fim de um ano ele passará para um estádio de desenvolvimento humano superior? Não. E sabem porquê? Porque para o desenvolvimento humano efectivo, é necessário contacto humano. Contacto com alguém que nos diga sem ecrã que o pacote de leite chocolatado não se atira para o chão; alguém que nos puna quando não somos responsáveis; que nos recompense quando somos solidários; alguém que seja exigente e retire de nós o que pensamos não ter para dar; alguém que nos dê uma reprimenda quando faltamos ao respeito a outro. É disto que a Educação trata e é isso que as escolas estão progressivamente a perder, porque todos esses indivíduos que enchem a boca com planos tecnológicos, que decidem sobre o funcionamento das escolas sem as conhecerem, acham que o que faz falta na escola actual não é a disciplina, o trabalho, a exigência, o tempo para o convívio, mas sobretudo um acesso facilitado à informação, seja ela qual for. Espero melhor para os meus filhos; espero que tenham aulas interessantes dadas por professores motivados e competentes; espero que lhes seja incutido o valor do trabalho como forma de singrar na vida; espero que não sejam enclausurados durante todo o dia numa sala repleta de computadores; espero que possam gritar de vez em quando “Feriado! Vamos jogar à bola!” quando o professor não vem; espero que sejam punidos quando se portarem mal e elogiados quando fizerem bem. Pelo rumo que isto está a tomar, temo que a sua geração possa ficar conhecida como a geração dos trabalhadores virtuais, composta por indivíduos fantásticos na manipulação do teclado. O único problema do ensino cibernético será se, por qualquer imponderável, a luz for abaixo.

sábado, 19 de maio de 2007

Desenrascanços


O dia fatídico começou como começam todos os dias fatídicos: com uma avaria. Para solucionar o problema telefonei ao técnico. Ouçamos a sua resposta: - Tenho de arranjar um tempinho para ir aí desenrascá-lo! Aí está ela. Que palavra tão subtil e singela. Geralmente é empregue por prestadores de serviços com muitos serviços para fazer. Canalizadores, Mecânicos, Bate-chapas, técnicos de Ar Condicionado, Pedreiros, empregados de mesa, electricistas e afins. O trabalho é muito, o tempo é pouco e todo esse tempo é utilizado para desenrascar alguém que se enrascou primeiro do que nós. Mas é isso que se pretende com o desenrascar. Pressupõe que haja alguém à rasca; nas últimas; no ponto de ruptura; no limiar do abismo. Quando chega o técnico para desenrascar geralmente já ultrapassámos o estado de à rasca e estamos em plena queda no abismo prontos para entrar em decomposição. Não é em vão que o termo “desenrascar” se parece com “desenroscar”, uma vez que a sofreguidão inerente ao primeiro tem grandes afinidades com o acto de desenroscar a rolha comprimida de um qualquer espumante francês. Só à custa de um grande esforço conseguimos ver a rolha sair disparada e danificar o estuque.
Finalmente chega o desenrascador e pensamos que vamos ser salvos com a calma e eficiência exigidas à nossa ansiedade...puro engano. Outro dos pressupostos do desenrascanço é o “tempinho” disponível, o mesmo será dizer, a falta de “Tempão”. O conceito de disponibilidade causa alergia a este indivíduo. Tudo tem de ser rápido, a despachar, a abrir, para se ir desenrascar rapidamente mais tipos enrascados. É chegar, ver, bater, apertar e ir embora. O Desenrascanço nunca é definitivo. Desenrasca-se hoje para voltar a desenrascar amanhã.
Pensem bem naquele dia que levaram a família ao restaurante económico à uma da tarde num Domingo. Estão na mesa mais afastada de tudo, à espera que vos tragam a ementa e as azeitonas. Olham à procura de alguém que vos sacie o voraz apetite e o que vêem? Um empregado em passo de corrida tentando servir o prato do dia às 30 mesas sem deixar cair nenhuma batata. Levantam o braço repetidas vezes à procura de auxílio e nada. Aquele Bip-bip de bandeja não olha para a vossa mesa (um bom desenrascador não pode olhar para ninguém para não se distrair). Ao fim de vinte levantamentos de braços, para além de se sentirem empenhados frequentadores de aulas de cardio-fitness, percebem que estão a ser completamente ignorados por alguém que apenas chegará para vos desenrascar quando já estiverem muito à rasca p’ra comer. Depois de o conseguirem agarrar pela camisola , mesmo apresentando sinais de hipoglicemia avançada, têm de tentar manter a lucidez necessária para o momento do pedido. É que, se por um acaso se esquecerem de pedir algo antes de soltarem a fera, saberão que muito dificilmente o apanharão tão cedo.
O desenrascanço apenas serve para quem não se importa de conviver com o rápido e mau. Fortalece-se à medida que se vai cultivando esta coisa da “última da hora”. O IRS acaba hoje? Vou lá amanhã! O teste é daqui a uma hora? Deixa-me ler os apontamentos! A inspecção do carro deveria ter sido feita há dois meses? A ver se a faço daqui a um mês! Enquanto houver este gosto pela pressão e enquanto se alimentar esta sensação do estar à rasca, sempre existirá alguém pronto para nos desenrascar...quando tiver um tempinho.

Diabruras do Cupido




Naquele dia o homem sentiu-se assolado por um espírito de romantismo exacerbado, e decidiu levar a mulher ao shopping. Por muito que a mulher diga que sonha com um jantar à luz de velas em frente a uma baía paradisíaca, ou receber um ramos de rosas vermelhas e ser levada a um concerto sinfónico, ou passear num barco a remos num lago cheio de patos e moscas, ou ver o pôr do sol numa praia tropical, no íntimo o que ela gosta é de esbanjar uma bela maquia nas lojas de uma grande superfície comercial. É sabido que a relação estabelecida entre a mulher e o shopping center é similar à do homem com as revistas de automóveis; o tempo que cada um passa a analisar é absurdo atendendo às compras que se fazem. No entanto, o gozo implícito de revirar todos os montes de cuecas no cesto dos produtos com desconto ou pasmar-se com o tablier em madeira da carrinha Volvo de luxo são traços inter-sexuais que devem ser preservados.
Chega-se ao shopping e o marido percebe que já não tem mão para segurar a sua cara metade. Esta parece um felino que encontrou a presa: A sua cabeça levanta, os seus olhos brilham e as suas pernas aceleram. O homem, ou acelera também o passo, ou é deixado para trás sem remissão. Mas naquele dia em que o Cupido acertou em cheio, teria de levar a sua demonstração de afecto até ao fim. E lá segue com dificuldade num passo de marcha rápida em direcção às lojas. Ela ataca em várias frentes; na secção das saias, nos cabides dos vestidos; na prateleira das camisolas; no balde das meias. O marido procura um local para se sentar, em vão. Incompreensível. As lojas deveriam ter em atenção o conforto dos acompanhantes, até porque um acompanhante confortável transmite também conforto à compradora que poderá demorar mais algum tempo a escolher e a comprar. Se o marido fica encostado a um pilar com cara de que já sentava a sua bunda em qualquer sítio, a mulher, se tiver alguma consideração não faz uma pesquisa tão meticulosa como pretenderia. Sai-se da primeira e entra-se na segunda loja. Os olhos do homem buscam apressadamente o bendito assento mas mais uma vez sem sucesso. Muda-se de loja, de pilar e de ombro encostado no mesmo; apenas o espalhafato da esposa na procura das melhores peças se mantém inalterável. Como não quer estragar o momento, o marido mantém uma cara sorridente, como que a dizer: querida, este pilar até é bastante razoável, não me dói nada o ombro esquerdo e quando troco de perna, não é cansaço mas apenas um exercício lúdico. Na quarta loja, já existia o bendito banco. O homem senta-se e agora pode observar com toda a atenção a movimentação que ali se desenrola. Repara que não existe nenhum outro homem romântico naquelas bandas; ele está só na missão de acompanhamento incondicional da esposa. Todas as outras mulheres não têm que se preocupar com o entrave masculino para as apressar ou reprimir. Depois de pegar em seis peças de roupa a mulher passa contente e diz que vai experimentar. Veste cada uma das peças e vem cá fora com uma pergunta que começa sempre da mesma maneira, mas no final é completada por diversos adjectivos: - “Não achas que me fica muito”… “apertada”,“curta”, “comprida”,“larga”? O que ela está à espera é que o marido lhe diga: - Não! Eu acho que ficas Esplendorosa com essa saia! Mas, naquele momento de conflito interno “sou um romântico disponível” versus “já não tenho pachorra p’ra tanta escolha”, o máximo que o marido consegue responder é: - eu acho que fica bem! Essa resposta para a esposa é de todo insuficiente para levar qualquer uma das 6 peças, e suficiente para ir à procura de mais seis. O marido mete os cotovelos sobre os joelhos e a mandíbula inferior sobre as mãos e apenas mexe os olhos. Procura novos estímulos e, para além das simpáticas empregadas de mini-saia, só consegue ver mulheres correndo de um lado para o outro, disputando roupas como se as mesmas se preparassem para fugir. Lá passa outra vez a sua cara metade em direcção à cabine de provas e o marido exemplar lança-lhe aquele sorriso (re)forçado do “estás à vontade querida!” No fim daquele tempo interminável de análise e experimentação, a mulher conclui que existe uma certa incompatibilidade entre a sua constituição morfológica e as tendências actuais da moda que a deixam invariavelmente com o umbigo ou a celulite à mostra e não leva “porra” nenhuma! O marido está fulo mas exterioriza uma enorme compreensão: - se quiseres podemos ir a outro lado ver alguma coisa que te sirva!? A esperança de uma resposta negativa cai por terra e espera-o mais um sem número de lojas e de outras tantas peças de roupa para vestir. Terminou a busca de 4 horas para a compra de 3 peças de roupa. O extenuado marido conseguiu chegar a casa vivo, mas imbuído de uma certeza: se o Cupido lhe voltar a lançar o projéctil do amor, um jantar à luz das velas em frente a uma baía paradisíaca está muito bem.

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Filosofices de Sanitário


No outro dia cheguei a um centro comercial procurando desenfreadamente a placa indicadora dos sanitários. Quando a minha roupa interior se preparava para uma imprevista humidificação, encontrei finalmente o local desejado. Lá estava a placa, depois a porta, a seguir o urinol e finalmente... aquela voz feminina com sotaque ucraniano a dizer: - Ei sinhorrr, estou en limpezzas porr fávor vá á outra sanitario!... O meu mundo ruiu; a urina empederniu. Parece que a senhora esperou que o fecho-éclair das minhas calças chegasse a meio, acalentando alguma esperança na consecução do objectivo, para depois destruir de uma só vez a minha sôfrega aspiração!? Por respeito, retirei-me cabisbaixo do local em busca do outro WC, que nestes casos se encontra invariavelmente no 3ª piso e no lado oposto de onde estamos, o que significa, para um ser fisiologicamente aflito, “longe comó caraças”.
Este episódio remeteu-me para uma questão de índole cultural associada ao surgimento dos centros comerciais, que se traduz na aniquilação do genuíno “Sanitário Lusitano”. Mas o que define um Sanitário à portuguesa? Em primeiro lugar a sua localização. Encontra-se sempre no fim de qualquer coisa: no fim do corredor, no fim da sala, no fim das escadas, no fim da estação, traduzindo logo a ideia de que aquele é o último lugar que se deseja encontrar. No entanto, facilmente o encontraremos, não através de placas indicadoras, mas seguindo aquele cheiro de difícil descrição mas de intensa inalação que foge pelas frestas da porta de entrada.
Uma das grandes características deste local é o super-aproveitamento do micro- espaço disponível. Naqueles 4 metros quadrados, consegue-se encaixar toda a loiça da casa de banho , fazer um compartimento exclusivo para a sanita e ainda conseguir que a porta abra para dentro. O resultado desta última medida faz com que a entrada triunfal neste local, signifique o contacto da porta com o nariz do utilizador anterior. Depois dumas quantas cotoveladas lá conseguimos entrar e percebemos que a nossa margem de manobra está ao nível de qualquer contorcionista chinesa do circo de Pequim. Entramos no compartimento da sanita e deparamo-nos com a regra dos 10 cm. A sanita encontra-se a 10 cm das paredes que a envolvem e a cabeça fica a 10 cm de distância do tecto, transmitindo-nos aquela sensação do “quanto mais aconchegadinho, melhor, e vê lá se te levantas devagarinho!”. Verificamos que não existe nenhum cabide para colocarmos a mochila que levamos a tiracolo. Temos de tomar uma opção: ou a mochila continua a tiracolo e temos de permanecer na posição do tipo Corcunda de Notre Dame, ou a colocamos no chão em cima daquele charco de líquido não identificado, ou seguramo-la entre os dentes durante todo o processo. É neste momento que começamos a suar. Com a mochila presa nos dentes, tentamos despir as calças, sem que entrem em contacto com o dito líquido amarelado. Tarefa nada fácil. Limpamos os pingos e as marcas de botas no rebordo da sanita e finalmente...repousamos... inicia-se o momento de lazer com a leitura dos escritos na porta de madeira à nossa frente. São verdadeiras obras de entretenimento que têm um valor incalculável para todos aqueles que por motivo de obstipação permanecem naquele local mais tempo do que o previsto. Se alguém passar junto a um destes sanitários e encostar o ouvido na porta poderá surpreender-se. Ou ouve sons resultantes de um esforço fisiológico desinibido; ou ouve risadas das babuseiras escritas na porta; ou ouve silêncio porque...não há lá ninguém (?). As leituras são lidas, o acto consumado e a ponta do papel higiénico está dentro daquela poça amarelada. A sua qualidade, longe do scottex de folha dupla, indicia que se não existir um certo cuidado, a palma da mão ficará com outro tipo de tonalidade. Depois temos o autoclismo que raramente funciona; ou quando funciona ninguém o pressiona com medo de apanhar uma micose na ponta do dedo indicador. Saímos do cubículo e, só agora, mais descontraídos, conseguimos reparar na higiene geral do local. Imaginamos que a empregada de limpeza emigrou até ao paquistão para se alistar nas fileiras dos radicais islâmicos.
Dirigimo-nos até ao lavatório e percebemos que, ao contrário dos sanitários contemporâneos, onde as torneiras deitam água sem ser necessário rodar nada, o detergente é libertado de forma automática, e basta colocar as mãos debaixo de uma caixa para em 5 segundos ficarem secas, no Sanitário Lusitano a higiene não é imposta, mas sim dificultada. A torneira abre-se com uma chave inglesa, as mãos lavam-se com sabão clarim acastanhado e as mãos limpam-se a uma toalha com bactérias de pessoas que já morreram há dois anos, significando que ninguém lava as mãos ou se as lava limpa-as às calças.
Chegamos ao objecto que me deixa verdadeiramente constrangido e que felizmente para as mulheres, apenas existe no sanitário masculino: o urinol. Aliás, penso que o urinol foi inventado pela crueldade de uma mulher nos resquícios de uma discussão com o marido. Haverá forma mais humilhante do que urinar com o nariz encostado à parede? Já agora dêem-nos uma orelhas de burro!. Depois não há nada mais desagradável do que ter de se realizar um acto tão íntimo encostado ao indivíduo do urinol ao lado. Se mexermos lateralmente a cabeça, o vizinho parte logo do pressuposto de que temos tendências homossexuais; se não mexermos lateralmente a cabeça, imaginamos que o desconhecido está a troçar do nosso apetrecho. De qualquer das formas é difícil a concretização do repuxo com tanta falta de privacidade. Existem aqueles que adoptam estratégias de descontracção e consequente desinibição como assobiar, entoar canções infantis, reproduzir mentalmente o som da água a correr, fechar os olhos e imaginar a sanita doméstica ou simplesmente pensar em 12 imperiais fresquinhas. Apesar dessas estratégias, na maior parte das vezes só conseguiremos finalizar com total espontaneidade, depois daquele “gajo que não tinha nada de mijar ao meu lado” se ter ido embora.
Felizmente para a nossa identidade nacional e, apesar da proliferação dos modernos e imaculados sanitários, ainda é possível entrar no WC da tasca do Ti Jaquim e encontrar, no interior da porta esculpido a navalha, o dizer bem popular: “Neste local solitário, onde a vontade se apaga, todo o fraco faz força, todo o valente se caga...”

O poiso e a poia


Existem enormes vantagens de se viver no campo. Não há buzinas, aglomeração, discotecas, lojas, bicha para os correios, prédios , arrumadores de carros . Somos apenas nós e a natureza: as árvores, as carraças, o pó dos fenos, as ovelhas, as moscas, os passarinhos. É precisamente sobre este belo ser esvoaçante ao qual dedicarei hoje a minha crónica. Uma das preocupações que nos perseguiu ao decidirmos construir a nossa casa no meio campestre, seria se o meio campestre ficaria satisfeito com a nossa presença, ou seja, até que ponto não seria melhor deixar a paisagem natural tal como estava. Foi com alguma surpresa e algum alívio que constatámos a alegria de centenas de pássaros que pareciam ter encontrado um refúgio à altura para as suas noites de inverno. Seria como os habitantes das barracas do Casal Ventoso receberem as chaves das suas novas casas. Acabaram-se os ninhos nas oliveiras, a chuva nas delicadas penugens ou a fuga a caçadores incómodos. Aquele espaço cor de laranja por cima de uma paredes brancas, era um verdadeiro oásis no meio do deserto. Era como se Belmiro de Azevedo decidisse construir um shopping center no meio de um monte alentejano. Resultaria numa eufórica animação.
Iniciou-se esta convivência bucólica com o chilrear dos pássaros, a observação sistemática dos seus rituais, a sua alimentação com as migalhas do pequeno almoço, os ninhos que se protegeram das ávidas cadelas domésticas. Esta salutar harmonia homem/pássaro durou alguns meses. Os problemas começaram a surgir quando o “homem” percebeu que os seus amigos pássaros, em troca dos pequenos mimos, era presenteado com cagadelas por todas as paredes de sua casa. Se calhar seria a forma dos passarinhos agradecerem a hospitalidade; como não tinham mais nada à mão, vá de elaborar pinturas artesanais por tudo o que é branco e limpo. O verdadeiro desagrado surgiu quando, de pano molhado na mão, comecei a esfregar, a esfregar, a esfregar e a pequena mancha da cagadela transformava-se numa enorme mancha amarela de difícil remoção. Foi a olhar desconsolado para aquela insolúvel mancha amarela que percebi um pouco mais a dimensão dos “graffitis” nas paredes do metro da capital. Se querem pintar paredes pintem as de vossas casas, seus porcos! Era este o sentimento amargurado de alguém que via a sua imaculada tela ser vilipendiada por pintores de quinta categoria e ainda por cima de...penas. Sem saber porquê veio-me à memória a factura paga pelas latas de 20 litros da melhor tinta robbialac, o que agravou de sobremaneira a minha irritação. Apesar dos bombardeamentos fecais prosseguirem, a faceta ecológica foi suplantando a materialista e a irritação foi sendo progressivamente diluída
Quando já tinha esquecido o preço das latas de tinta, os passarinhos descobriram nas calhas do telhado um parque de diversão aquática. Assim, todas as manhãs, e aproveitando a geada que escorre nas placas zincadas, deslizam pelo tobogam em verdadeiro deleite radical competindo entre si para ver quem sai com mais “gáspia” pelo bordo do beirado. Os menos alucinados limitam-se a passear ou a esvoaçar energicamente sobre as calhas húmidas para sentirem a água lavando-lhe as delicadas penas. Este facto, até poderia ter alguma graça, não fosse a hora vespertina a que ocorre. Todos os dias às 7 da manhã, lá está toda a passarada nos seus banhos matinais. O eco que gera esse seu chapinhar no zinco molhado, se a qualquer hora do dia seria incomodativo, naquele momento, naquela cabeça, deitada naquele travesseiro, sonhando com aquele descanso, tem um efeito tão devastador como qualquer martelo hidráulico a dar cabo do chão da casa do vizinho. A ironia de tudo isto é que vivemos no campo para estarmos longe do ruído . Mais uma vez nos convencemos que teríamos de encarar este barulho como um presente da natureza, afinal era fruto das brincadeiras dos simpáticos passarinhos.
A gota de água surgiu, com a gota de água que me caiu em cima da ponta do nariz naquela noite chuvosa. Estava na sala, olhei para o tecto e reparei na enorme mancha húmida que augurava uma mais que provável infiltração de água. De início pensei tratar-se de uma telha partida, mas constatei que a infiltração se devia ao entupimento das calhas por ervas secas utilizadas para a construção dos ninhos dos pássaros. Malditos pássaros! Foi o desmoronar da empatia; o momento de compreender melhor os utilizadores da pressão de ar, os apreciadores de passarinho frito ou os fabricantes de almofadas com penas de passarinho. Deitei-me a congeminar qual o método mais eficaz para por cobro à tormenta: tiro, pedrada, veneno, gás mostarda, cocktail molotof , bazuca, tudo o que servisse para exterminar aqueles seres voadores era bem vindo.
No outro dia de manhã o novo despertar ao som da onda na calha, levantei-me furioso, abri a portada e vi sobre o beirado do alpendre um casal de passarinhos pavoneando bem à minha frente um ritual de acasalamento. Pareciam chacotear o meu mau humor, exibindo poses luxuriantes de reprodução animal, como que a lembrar que mais passarinhos resultariam daquele acto, o que quereria dizer mais bombardeiros de parede, mais surfistas de calhas molhadas e mais manhãs sobressaltadas ao som de martelos hidráulicos. - Chega! Pensei revoltado. Subi ao telhado decidido a eliminar tudo o que estivesse relacionado com passarada. Ao chegar ao primeiro ninho, pronto para assumir um papel de Miloshevic versão ornitológica, deparei com cinco criaturas de bico aberto, à espera da mãe com a minhoca matinal. Não tive coragem... Desci cabisbaixo e sentei-me a observar a passarada. Na realidade não eram os pássaros os forasteiros...

Grunhopitecus

Ao fim de alguns anos de observação exaustiva do comportamento humano descobriu-se que a evolução do homem não termina onde todos pensávamos que terminava. A descoberta de uma nova espécie humana, denominada por Grunhopiteco, veio revolucionar todas as teses existentes sobre o processo evolutivo. A dificuldade inerente a esta descoberta é tanto maior, quanto maiores são as semelhanças exteriores com o comum dos humanos. O grunhopiteco pode ser o seu vizinho, o seu padeiro, o seu médico, o seu contabilista, o seu marido e, simplesmente, nunca ter dado por isso. A grande característica revelada pelo grunhopiteco é o patológico saudosismo por tempos muito remotos; tal como existem pessoas que sonham viver no Antigo Oeste Americano; indivíduos que gostariam de ter vivido nos tempos da corte de Luis XIV, ou personagens que se deliciariam encarnar um gladiador durante o império romano, o grunhopiteco é uma espécie que vive na ânsia de retornar a 1,8 milhões de anos atrás(?), mais precisamente ao início da hominização com o aparecimento do Australopiteco, a espécie que representa o salto do macaco para o homem. Tal como o australopiteco apresentava progressos notáveis relativamente ao macaco, nomeadamente a posição erecta, a oposição do polegar , a modificação da dentição e um cérebro proporcionalmente maior, o grunhopiteco apresenta como principais evoluções relativamente ao australopiteco , a roupa que usa, a época em que vive e o uso do telemóvel. Tristemente, o grunhopiteco, ao pretender retroceder cronologicamente até junto do seu irmão australopiteco, cometeu um erro de cálculo, e saiu um apeadeiro mais à frente, ou seja, junto do chimpanzé. As consequências dessa pequena desconcentração levaram a que o grunhopiteco apresente um comportamento consideravelmente mais primitivo do que o australopiteco. Enquanto o australopiteco, mesmo com as barbas cheias de pulgas e a genitália em contacto directo com os raios ultravioletas, era capaz de manifestar gestos de alguma delicadeza para com os seus companheiros, como deixar uma doce australopiteca dar a primeira trincadela no osso do javali ou permitir a um amigo usar a sua fogueira para grelhar umas febras, o grunhopiteco é um espécime desprovido de qualquer tipo de sinal civilizacional,
Em termos taxonómicos, a espécie grunhopiteco subdivide-se em várias subespécies agrupadas em termos de similitudes comportamentais, eis algumas delas:
Passadeiropiteco – este tipo de grunhopiteco encontra-se em locais bem definidos e restritos. Surge invariavelmente em passadeiras de peões quando um automobilista está atrasado para o emprego. Começa por se lançar bruscamente sobre a passadeira por forma a fazer dois passos antes da chegada do apressado condutor. Depois de o obrigar a parar, abranda o passo, coloca as mãos nos bolsos e lança sobre o automobilista um olhar altivo e dominador. Se repara na impaciência excessiva do condutor, simula que perdeu uma lente de contacto para o fazer esperar mais um bocadinho. O que as pessoas não sabem é que esta lentidão na marcha do peão, para além de revelar uma clara dificuldade de sociabilização, prende-se com carências ao nível do bipedismo, tal como o seu primo chimpanzé.
Porcopiteco – Esta subespécie caracteriza-se por uma total incapacidade na identificação de caixotes do lixo. Como tal, todos os excedentes da sua actividade quotidiana são colocados em objectos fixos ou amovíveis, desde que não estejam pintados de verde com quatro letras escritas . A atribuição do nome “porcopiteco” a este espécime gerou alguns conflitos entre os Paleoantrolpólogos. O porco vive no meio do esterco porque não tem alternativa (o espaço é pequeno para o que produz) ao passo que o porcopiteco faz da alternativa o esterco. O sufixo “piteco” também não será adequado, pela notória dificuldade do espécime na preensão de objectos, que lhe caem das mãos duma forma perfeitamente espontânea.
Buzinopiteco – é o grunhopiteco infantil. Descobriu o som da buzina do carro, como poderia ter descoberto o som de um piano da “Chico” com ruídos dos animais da selva. Tal como os australopitequinhos se divertiam a atazanar o juízo dos pais batendo com as mocas nas paredes das cavernas, esta subespécie percebeu que o som da buzina estimula sensações de mal estar no condutor da frente, especialmente se a ouvir 5 segundos depois do semáforo ter ficado verde. Não pode ser levado a mal, pois é apenas um brincalhão que utiliza a própria buzina para exterminar a paciência alheia.
Trombopiteco – encontramo-lo em qualquer local de atendimento público. O seu comportamento é caracterizado por uma total ausência de sensibilidade no contacto com outros seres humanos. É um contrariado. Queria ser jogador de futebol, cabeleireiro, aviador, modelo, camionista, tudo...menos estar atrás do balcão a atender aqueles seres execráveis e ainda por cima receber dinheiro (!?). Hospitais, repartições públicas, cafés, são alguns dos locais onde facilmente se poderão encontrar exemplares deste espécime. A agressividade com que recebe os utentes, vem do instinto de defesa dos símios. Nos tempos do australopiteco, um macaco que esboçasse um sorriso, não era viril, como tal uma potencial e fácil presa para as bocas dos ferozes predadores.
Deficientopiteco – Constitui sem dúvida o espécime menos bafejado pela sorte. Este é o ser que estaciona o carro em segunda linha ou no local dos deficientes para ir fazer as compras da semana. É incompreendido por todos. O deficiente chama-lhe deficiente mental e o condutor do carro (que queria sair mas não pode) chama-lhe imbecil e manda-lhe um estalo nas ventas. As razões estão novamente na idade da pedra. Esta espécie herdou do gorila dois tipos de handicaps: a menor visão diurna para identificar o carro bloqueado ou a placa azul e o facto de se deslocar em quadrupedia, dificulta a sua mobilidade, compreendendo-se que queira estacionar a 4 passos da mercearia.
Clacopiteco – os exemplares desta subespécie também conhecidos por energumenopitecos encontram-se geralmente nas bancadas de estádios de futebol sob a forma de Claques. O seu comportamento tem duas facetas distintas: por um lado apresentam fortes ligações com o orangotango, quer no tipo de fonética rudimentar, terminando todos os grunhidos em “ão” ou “alho” , quer no tipo de linguagem gestual, muito similar à utilizada pelo símio na fase de pré-acasalamento; No entanto também apresentam uma faceta social de acção consertada com o grupo, ou seja, gostam de partilhar vivências entre si; não são egoístas. Se um apedreja uma montra, todos poderão apedrejar; se um agride uma velhinha, todos poderão agredir; se um rouba um chocolate todos ficarão com...cáries.
A comunidade científica ainda está atordoada com este regresso ao passado feito de forma massiva. Constata-se diariamente um aumento exponencial do número de casos descobertos assim como a proliferação de mais subespécies de grunhopitecos, sendo de prever que daqui a meio século mais de metade da população coma carne crua, se pendure nos galhos das árvores e cate pulgas nas orelhas dos amigos.

O sapatilha

Ao meu amigo Carlos Fazenda, que vive nos Estates e cuja ligação surgiu através desta crónica...
Um dos meus prazeres quotidianos é a corrida. Aquela coisa em que temos de nos cansar e depois ficamos a cheirar mal a ofegar e a tossir e com uma dor de pernas do caraças e ouvimos a mulher dizer que lava muita roupa e que a lama não sai com o tide,… Muitos de vós estarão a pensar se sofro de algum instinto de masoquismo descontrolado ou se bati com a cabeça no bidé quando ia a sair da banheira, mas a verdade, por muito incompreensível que possa parecer, é que gosto mesmo de correr. Não atrás de nenhuma moçoila engraçada, nem de um prato de migas de bacalhau, simplesmente atrás do meu bem estar. Na realidade, enquanto me canso, não canso os outros que vivem comigo. É uma espécie de terapia ocupacional; há uns que partem pratos contra a parede; outros que falam sozinhos a caminho do emprego e ainda outros que chamam nomes aos árbitros, eu… ganho micoses nos pés e suo camisolas. Enquanto corro, penso em questões existenciais do tipo “o que vai ser o jantar” ou “será que o Porto vai levar mais do que 3 do Real Madrid” ou ainda “qual um bom tema para uma crónica”. E foi por ter descoberto o tema da minha crónica de hoje durante a corrida, que estou a escrever sobre…a própria corrida.
Fui correr para um dos meus percursos predilectos, bem no meio do mato, e, quando estava no ponto mais longínquo do percurso, senti um arfar atrás de mim. De início, com a debilidade do sistema perceptivo própria do cansaço, ainda cheguei a temer que fosse uma donzela carente, atraída pelos meus sexys calções de Lycra. Mas quando olhei para trás, vi um pequeno e estranho cão. A malta que anda nas corridas, sabe que existem três tipos de cães que nos chateiam: aqueles que ladram e não se aproximam, aqueles que ladram, nos perseguem mas fogem quando lhes rosnamos e finalmente os que ladram, que nos perseguem, nos mordem e fogem impunes. Basicamente, todos os cães que se cruzam no caminho dos corredores, ladram. Aquele que eu vi, limitava-se a arfar. Não ladrava, não fugia, não mordia, não abanava o rabo, não dava a pata, limitava-se a estar ali com o focinho encostado aos meus calcanhares. Achei estranho. O cão não tinha aspecto de ter sido abandonado. Mas, naquele sítio?... sem sinal de civilização próxima?... sem sinal de cadela com o cio? Iniciei o meu retorno para casa, na expectativa de ver o cão desistir de seguir as minhas pegadas e decidir-se por uma caçada aos apetitosos coelhos dos matagais. Corri mais um pouco e o arfar continuava colado às minhas sapatilhas. Olhava, e lá vinha ele, em passo de trote, fazendo de conta que não me via, nem era nada com ele, mas não descolava. Ai não descolas? pensei eu. Resolvi acelerar o passo até ao limiar da minha capacidade aeróbia, convencido que as curtas patas do animal claudicariam perante a evidente superioridade das longas pernas do humano. Puro engano, quanto mais acelerava, mais o bicho arfava, e os seus 4 tocos pareciam que ganhavam a vida dos filmes mudos, tal a frequência imposta na passada. Eu já estava a ficar nas últimas, o cão também, mas não dava a pata a torcer; continuava a babar-se e a arfar, mas a sua persistência desesperada chegava a ser confrangedora. Foi então que pensei: espera aí,…se calhar abandonaram este cão e ele está à espera que eu fique com ele!? Realmente a atitude do bicho dava a entender que eu seria a sua última hipótese; a ponte entre a fome e a fartura; entre os mimos e os pontapés; o dono que todos os cães desejam; a luz ao fundo do túnel. A minha introspecção prosseguia e rebuscava as reminiscências católicas: se calhar é um sinal divino que eu não posso ignorar! Olhei para o cachorro e voltei a debater-me: um sinal divino…com pulgas e baba??? Decidi pôr à prova o divino, o cão e as minhas pernas. Iria acelerar mais um pouco. Se o bicho chegasse comigo a casa, ficaria com ele. Quando cheguei ao portão de minha casa, olhei para trás e lá estava ele aos saltos atrás de mim; tinha sobrevivido e ainda conseguia saltar. O raça do micro-cão percorreu 6 quilómetros comigo, e nunca me deixou fugir, mesmo nos momentos em que foi atacado por outros cães, eu permanecia no horizonte do seu desesperado olfacto. Acima de tudo tinha sido uma machadada no meu ego de corredor; não conseguia correr mais do que um projecto de cão. Tinha de cumprir a minha parte do acordo. Enchi-lhe um prato de comida, expliquei às minhas cadelas que tinham um novo irmão e que deviam emprestar os brinquedos, e tinha de ganhar coragem para contar à minha mulher sobre o novo inquilino.
Fui tomar um banho e fazer algumas tarefas afins. Quando voltei a sair, deparei-me com um fenómeno ainda mais estranho. O prato com a comida estava cheio, o cão tinha desaparecido e com ele uma das minhas sapatilhas!? …maldito rafeiro, gamou-me a sapatilha! Qual sinal divino, qual carapuça!
Restava-me tentar perceber porque é que o cão se deu àquela trabalheira desenfreada, só para meter os dentes na lona mal cheirosa da sapatilha. Será que nunca teve umas “adidas”? ou então o bicho era uma reencarnação de Zatopek? ou será que achou que um atleta com a minha lamentável prestação não merecia uma sapatilha daquela qualidade? Para não ferir ainda mais a minha auto-estima decidi eliminar a última opção, e acreditar em qualquer uma das outras.
Aos meus companheiros de corrida deixo o aviso: se encontrarem um cão a arfar nos vossos calcanhares com uma sapatilha adidas calçada, têm de correr mais do que ele. É que ainda lhe faltam 3 sapatilhas…

Murraça Virtual



Peguei no comando da televisão parabólica e fiz um zaping. Um canal americano transmitia um espectáculo de “wrestling”, que supostamente se trata de uma luta entre dois ou mais “mastodontes” onde as regras limitadoras de golpes parecem não existir. O pavilhão está repleto de pessoas em total histerismo impacientes pela entrada dos lutadores. O apresentador anuncia o 1º lutador: o “Furacão do Mississipi” surge no meio de efeitos pirotécnicos com ar de poucos amigos, exibindo um casaco cor-de-rosa florescente e umas calças justas de “lycra”, simbolizando a sua inegável masculinidade. O 2º lutador, de nome “Macho Man” apresentava o aspecto de um cruzamento entre um buldogue inglês e o “Flash Gordon”. Óculos espelhados, rabicho no cabelo untado com óleo de girassol, 5 brincos na orelha esquerda, 3 fios de ouro, fato negro com estrelas prateadas e músculos aparentemente insuflados. O árbitro chama os dois atletas ao ringue e entrega o microfone ao “Furacão do Mississipi” para ele tecer alguns comentários ao seu adversário:
- I want to tell this sucker that he will suffer on my hands before I break his neck!
Traduzindo para a língua de Camões ele estaria a dizer ao seu amigo que antes de lhe fazer cócegas no umbigo lhe iria oferecer duas das suas melhores caretas e quatro beijinhos na testa. O outro ficou de tal maneira agradecido que logo lhe saltou para o pescoço e o lançou efusivamente contra o chão. Mas o inesperado aconteceu: o solo estava com alguma poeira e sujou o casaco cor- -de-rosa do Furacão. Gerou-se a confusão! O visado enfurecido lança-se ao “Macho” e espeta-lhe um valente pontapé nas partes baixas que o faz dar um salto mortal à retaguarda. Já no chão meio atordoado este último é presenteado com 8 cotoveladas, 5 cabeçadas e dezanove chapadas. Quando se pensava que tinha desfalecido, “Macho” ressurge das trevas, pega no seu adversário e lança-o para fora do ringue. Coloca-se em cima das cordas de protecção, atira-se para cima do seu oponente e retribui-lhe as acções anteriores multiplicando-as ao som da contagem do público entusiasta. O árbitro assumia um papel de observador activo, ou seja, batia palmas ao atleta que produzisse a acção mais sórdida, espectacular e anti-regulamentar. A resistência dos oponentes era de tal ordem, que cada um conseguia ressuscitar no mínimo 7 vezes. O combate terminava quando um deles piscava o olho ao árbitro e o autorizava a bater com a mão no solo, sinal de fim do espectáculo.
Se o espectador menos atento percebia, logo no primeiro pontapé, que aquilo não passava de encenação, o mesmo não se poderá dizer dos milhares de fãs que pagaram 60 euros por cada bilhete e produziam quantidades consideráveis de baba cada vez que o seu ídolo puxava pelos cabelos do adversário.
Apaguei a televisão imaginando se aquelas pessoas não teriam comido hamburgueres estragados ou se lhes tinha caído um piano em cima da cabeça antes de terem comprado os bilhetes. Afinal eram pessoas iludidas por nunca terem andado à estalada, para perceber que dar e levar murros é no mínimo desagradável e bastante atordoante. Quem acredita que um homem, depois de levar um pontapé nas partes reprodutoras, consegue continuar aos saltos e com um sorriso nos lábios, decerto também acreditará na descida dos impostos ou nas renas voadoras do Pai Natal. A questão será saber qual a razão que levará as pessoas a se deixarem levar por aquela sequência infindável de pontapés, cotoveladas, torcedelas de pescoços, murros e puxões de cabelos, sabendo à partida de que não passam de realidades absurdamente virtuais.
Mas esta exploração da violência virtual não é de hoje. Lembro-me das “cowboiadas” onde o John Wayne, perante o nosso júbilo, prolongava as suas murraças durante 5 minutos, sem denotar qualquer sinal de fadiga ou dor. Também não é em vão que Jean Claude Van Dame perca sempre a arma no momento em que se prepara para matar o assassino da sua mulher, permitindo-lhe exibir os seus dotes marciais e prolongar o sofrimento do mau da fita, aumentando também o prazer dos espectadores no emocionante momento da vingança.
Imagino o contraste produzido pelos escassos espectadores do filme “Ao encontro de Maria”, que saem da sala de cinema cabisbaixos porque afinal o personagem principal acabou por procurar... mas não encontrar Maria e acabou suicidando-se nas águas do rio Sena. Pelo contrário, os inúmeros espectadores da sala ao lado, saem radiantes com o desfecho do filme “ Exterminador impraticável – o 26º regresso” onde o herói, depois de matar os 38 inimigos, levar duas facadas e alguns tiros, consegue ter forças e fôlego para chegar até aos braços de uma loiraça e beijá-la apaixonadamente.
Os produtores de séries infantis já perceberam a receita e substituíram os desenhos animados da “Abelha Maia” , da “Heidi” ou do “Tom and Jerry” pelos filmes do “Dragon Ball”, dos “Moto-Ratos” e dos “Power Ranger” onde a acção é muito mais interessante. O jogo da carica, do berlinde, do peão, da apanhada, do monopólio e dos carrinhos deram lugar a jogos de guerra virtual, onde não é raro ouvir entre a criançada que se vai matar , partir o pescoço ou torturar o “mau”. Talvez por isso os adultos passem pela frustração tão comum de oferecer um jogo educativo a uma criança e ela perguntar onde estão a pistola e as algemas; ou a dificuldade que representa a remoção do filho da secção de brinquedos bélicos do hipermercado sem a ajuda de uma palmada ou de uma venda e mordaça.
E assim começa a história de dois jovens amigos que pegam nas armas dos pais, muito parecidas com as dos filmes, entram numa escola secundária e disparam contra os alunos e professor de uma turma. Quando conseguem a colaboração de toda aquela malta para a veracidade das suas acções, dizem iludidos:
- Pronto acabou a brincadeira, já se podem levantar!