segunda-feira, 28 de maio de 2007

Feijoada à transmontana




A análise da ementa no restaurante é uma das tarefas mais atractivas que conheço. Sabe-se à partida que serão outros a lavar a loiça mas fundamentalmente, com tantas e tão variadas opções, não se corre o risco, de ter de se comer o jantar da véspera, aquele arroz de pato empapado e insosso que entrou no frigorífico quase intacto por ninguém o conseguir consumir. Para além da regalia de alguém nos questionar acerca das nossas preferências para o almoço, a leitura da ementa é um momento de verdadeiro deleite para um espírito salivador. Cada prato que se encontra escrito naquele pedaço de papel leva-nos a imaginar a confecção, a apresentação, o odor , o sabor, a textura e as pastilhas Alka Selzer que teremos de tomar após a sua ingestão. Quando nos preparamos para fazer o nosso pedido, eis que surge no ar aquela palavra emitida pela boca da amiga do nosso amigo, sentada na nossa mesa: - Sabes quantas calorias têm esses bifinhos com cogumelos e natas que acabaste de pedir?
Como é possível transformar um tenro bife de lombo, banhado com aquele suculento molho esbranquiçado, estaladiças batatas fritas, um arroz saboroso e uma salada bem avinagrada por um conjunto de calorias? A paranóia das calorias destrói qualquer leitura prazerosa de um menu. A análise dos ingredientes é ultrapassada por um estudo de conversão calórica apenas ao alcance de especialistas dietéticos ou ilustres matemáticos.
A obsessão calórica surge geralmente, não por motivos de saúde, mas sobretudo por exigências de índole estética. Curiosamente, o valor da palavra caloria aumentou quando se diminuiram as peças de vestuário. Enquanto os fatos de banho tapavam o corpo dos joelhos ao pescoço e as saias rodadas terminavam no rebordo das solas dos sapatos, nenhum destes traumas calóricos era conhecido. A culpa é do criador do...biquini que descobriu a forma de se poupar em tecido e de esbanjar partes carnais expostas a olhares alheios. A par deste des...cobrimento progressivo do corpo, aumentou gradual e compreensivelmente a importância dada ao mesmo. Para agravar , o ideal de beleza promovido pelos anúncios da “pepsi diet”, dos filmes da Palmela Anderson ou dos desfiles de Gaultier nada tem a ver com o conceito tão propagandeado de outros tempos de que “Gordura é formosura” . A beleza da roliça e anafada mulher que constituiu no início do século fonte de inspiração a poetas, escultores e pintores, deu lugar ao culto da mulher esquelética sem vestígio de qualquer prega de adiposidade. As revistas femininas, repletas de receitas anti-celulite, dietas milagrosas à base de extractos de algas e verduras orientais, exercícios específicos para reforçar o traseiro e consolidar os volumes peitorais, vendem-se a ritmos colossais.
Nas academias de ginástica multiplica-se a oferta de actividades que “garantem” uma silhueta agradável. Nas paredes dos ginásios, exibem-se posters de homens musculados e mulheres adelgaçadas, como se de objectivos esculturais se tratassem para os frequentadores do espaço.
- Quer ficar como eles? Então terá de gastar muitas calorias nas nossas aulas de Cardiofitness, levar muita estalada nas coxas pelas mãos do nosso massagista, fazer 150 repetições nas nossas máquinas de musculação, suar que nem um louco na nossa sala de sauna, beber as bebidas energéticas no nosso bar e pagar uma mensalidade irrisória na nossa recepcionista. Se depois de tudo isto necessitar de esconder o seu fabuloso corpo durante as férias balneares, venha cá que nós puxamos mais um bocadinho por esse “cabedal”!
Quando não se consegue mudar o “cabedal” com ginástica e iogurtes magros, recorre-se ao bisturi de um cirurgião plástico. “Quanto custa um corpo perfeito?” era o título de uma revista Mulher Activa num dos meses que antecedia o verão. Abriam-se as páginas e verificava-se que os “milagres” estéticos existem, e por “meia” dúzia de tostões consegue-se, sem grande esforço, um novo corpo. Claro que os respectivos maridos terão de ter algum cuidado no manuseamento das novas criações para não correrem o risco de ficar com uma bola de silicone nas mãos. Mas para alguém que tinha a aparência da Sara Ferguson, ficar de repente transformada em Michelle Pfeiffer, todos os sacrifícios serão compensados. Serão mesmo? valerá a pena abdicar dum bom cozido à portuguesa ou suportar o pós operatório de uma cirurgia plástica para se conseguir encaixar na roupa da Mango, exibir a silhueta na Praia da Rocha ou apreciar a sua imagem na montra da loja? A resposta afirmativa que obteria numa amostra considerável da população, não pode ser dissociada da promoção estereotipada e exacerbada que a poderosa máquina publicitária faz de um ideal de beleza voltado para a exterioridade. Acho uma certa piada quando perguntam a uma actriz vaporosa qual a característica que mais admira nos homens e ela responde prontamente que aprecia fundamentalmente a sua inteligência e beleza interior. Adivinha-se que depois de tão íntima revelação, regresse ao aconchego do seu lar onde a espera o seu marido, atarracado cientista de metro e cinquenta com estrabismo acentuado, dentes amarelados e um capachinho tapando a escassez capilar.
Talvez daqui a uns anos a mulher ideal, magra, de nariz implantado e com distúrbios maníaco-depressivos causados pela abstinência alimentar, dê novamente lugar a uma mulher mais redondinha, mais alegre, com a capacidade de olhar para a ementa do restaurante e, sem qualquer tipo de pejo, pedir uma calórica feijoada à transmontana.

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