quinta-feira, 17 de maio de 2007

Murraça Virtual



Peguei no comando da televisão parabólica e fiz um zaping. Um canal americano transmitia um espectáculo de “wrestling”, que supostamente se trata de uma luta entre dois ou mais “mastodontes” onde as regras limitadoras de golpes parecem não existir. O pavilhão está repleto de pessoas em total histerismo impacientes pela entrada dos lutadores. O apresentador anuncia o 1º lutador: o “Furacão do Mississipi” surge no meio de efeitos pirotécnicos com ar de poucos amigos, exibindo um casaco cor-de-rosa florescente e umas calças justas de “lycra”, simbolizando a sua inegável masculinidade. O 2º lutador, de nome “Macho Man” apresentava o aspecto de um cruzamento entre um buldogue inglês e o “Flash Gordon”. Óculos espelhados, rabicho no cabelo untado com óleo de girassol, 5 brincos na orelha esquerda, 3 fios de ouro, fato negro com estrelas prateadas e músculos aparentemente insuflados. O árbitro chama os dois atletas ao ringue e entrega o microfone ao “Furacão do Mississipi” para ele tecer alguns comentários ao seu adversário:
- I want to tell this sucker that he will suffer on my hands before I break his neck!
Traduzindo para a língua de Camões ele estaria a dizer ao seu amigo que antes de lhe fazer cócegas no umbigo lhe iria oferecer duas das suas melhores caretas e quatro beijinhos na testa. O outro ficou de tal maneira agradecido que logo lhe saltou para o pescoço e o lançou efusivamente contra o chão. Mas o inesperado aconteceu: o solo estava com alguma poeira e sujou o casaco cor- -de-rosa do Furacão. Gerou-se a confusão! O visado enfurecido lança-se ao “Macho” e espeta-lhe um valente pontapé nas partes baixas que o faz dar um salto mortal à retaguarda. Já no chão meio atordoado este último é presenteado com 8 cotoveladas, 5 cabeçadas e dezanove chapadas. Quando se pensava que tinha desfalecido, “Macho” ressurge das trevas, pega no seu adversário e lança-o para fora do ringue. Coloca-se em cima das cordas de protecção, atira-se para cima do seu oponente e retribui-lhe as acções anteriores multiplicando-as ao som da contagem do público entusiasta. O árbitro assumia um papel de observador activo, ou seja, batia palmas ao atleta que produzisse a acção mais sórdida, espectacular e anti-regulamentar. A resistência dos oponentes era de tal ordem, que cada um conseguia ressuscitar no mínimo 7 vezes. O combate terminava quando um deles piscava o olho ao árbitro e o autorizava a bater com a mão no solo, sinal de fim do espectáculo.
Se o espectador menos atento percebia, logo no primeiro pontapé, que aquilo não passava de encenação, o mesmo não se poderá dizer dos milhares de fãs que pagaram 60 euros por cada bilhete e produziam quantidades consideráveis de baba cada vez que o seu ídolo puxava pelos cabelos do adversário.
Apaguei a televisão imaginando se aquelas pessoas não teriam comido hamburgueres estragados ou se lhes tinha caído um piano em cima da cabeça antes de terem comprado os bilhetes. Afinal eram pessoas iludidas por nunca terem andado à estalada, para perceber que dar e levar murros é no mínimo desagradável e bastante atordoante. Quem acredita que um homem, depois de levar um pontapé nas partes reprodutoras, consegue continuar aos saltos e com um sorriso nos lábios, decerto também acreditará na descida dos impostos ou nas renas voadoras do Pai Natal. A questão será saber qual a razão que levará as pessoas a se deixarem levar por aquela sequência infindável de pontapés, cotoveladas, torcedelas de pescoços, murros e puxões de cabelos, sabendo à partida de que não passam de realidades absurdamente virtuais.
Mas esta exploração da violência virtual não é de hoje. Lembro-me das “cowboiadas” onde o John Wayne, perante o nosso júbilo, prolongava as suas murraças durante 5 minutos, sem denotar qualquer sinal de fadiga ou dor. Também não é em vão que Jean Claude Van Dame perca sempre a arma no momento em que se prepara para matar o assassino da sua mulher, permitindo-lhe exibir os seus dotes marciais e prolongar o sofrimento do mau da fita, aumentando também o prazer dos espectadores no emocionante momento da vingança.
Imagino o contraste produzido pelos escassos espectadores do filme “Ao encontro de Maria”, que saem da sala de cinema cabisbaixos porque afinal o personagem principal acabou por procurar... mas não encontrar Maria e acabou suicidando-se nas águas do rio Sena. Pelo contrário, os inúmeros espectadores da sala ao lado, saem radiantes com o desfecho do filme “ Exterminador impraticável – o 26º regresso” onde o herói, depois de matar os 38 inimigos, levar duas facadas e alguns tiros, consegue ter forças e fôlego para chegar até aos braços de uma loiraça e beijá-la apaixonadamente.
Os produtores de séries infantis já perceberam a receita e substituíram os desenhos animados da “Abelha Maia” , da “Heidi” ou do “Tom and Jerry” pelos filmes do “Dragon Ball”, dos “Moto-Ratos” e dos “Power Ranger” onde a acção é muito mais interessante. O jogo da carica, do berlinde, do peão, da apanhada, do monopólio e dos carrinhos deram lugar a jogos de guerra virtual, onde não é raro ouvir entre a criançada que se vai matar , partir o pescoço ou torturar o “mau”. Talvez por isso os adultos passem pela frustração tão comum de oferecer um jogo educativo a uma criança e ela perguntar onde estão a pistola e as algemas; ou a dificuldade que representa a remoção do filho da secção de brinquedos bélicos do hipermercado sem a ajuda de uma palmada ou de uma venda e mordaça.
E assim começa a história de dois jovens amigos que pegam nas armas dos pais, muito parecidas com as dos filmes, entram numa escola secundária e disparam contra os alunos e professor de uma turma. Quando conseguem a colaboração de toda aquela malta para a veracidade das suas acções, dizem iludidos:
- Pronto acabou a brincadeira, já se podem levantar!

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