quinta-feira, 17 de maio de 2007

O sapatilha

Ao meu amigo Carlos Fazenda, que vive nos Estates e cuja ligação surgiu através desta crónica...
Um dos meus prazeres quotidianos é a corrida. Aquela coisa em que temos de nos cansar e depois ficamos a cheirar mal a ofegar e a tossir e com uma dor de pernas do caraças e ouvimos a mulher dizer que lava muita roupa e que a lama não sai com o tide,… Muitos de vós estarão a pensar se sofro de algum instinto de masoquismo descontrolado ou se bati com a cabeça no bidé quando ia a sair da banheira, mas a verdade, por muito incompreensível que possa parecer, é que gosto mesmo de correr. Não atrás de nenhuma moçoila engraçada, nem de um prato de migas de bacalhau, simplesmente atrás do meu bem estar. Na realidade, enquanto me canso, não canso os outros que vivem comigo. É uma espécie de terapia ocupacional; há uns que partem pratos contra a parede; outros que falam sozinhos a caminho do emprego e ainda outros que chamam nomes aos árbitros, eu… ganho micoses nos pés e suo camisolas. Enquanto corro, penso em questões existenciais do tipo “o que vai ser o jantar” ou “será que o Porto vai levar mais do que 3 do Real Madrid” ou ainda “qual um bom tema para uma crónica”. E foi por ter descoberto o tema da minha crónica de hoje durante a corrida, que estou a escrever sobre…a própria corrida.
Fui correr para um dos meus percursos predilectos, bem no meio do mato, e, quando estava no ponto mais longínquo do percurso, senti um arfar atrás de mim. De início, com a debilidade do sistema perceptivo própria do cansaço, ainda cheguei a temer que fosse uma donzela carente, atraída pelos meus sexys calções de Lycra. Mas quando olhei para trás, vi um pequeno e estranho cão. A malta que anda nas corridas, sabe que existem três tipos de cães que nos chateiam: aqueles que ladram e não se aproximam, aqueles que ladram, nos perseguem mas fogem quando lhes rosnamos e finalmente os que ladram, que nos perseguem, nos mordem e fogem impunes. Basicamente, todos os cães que se cruzam no caminho dos corredores, ladram. Aquele que eu vi, limitava-se a arfar. Não ladrava, não fugia, não mordia, não abanava o rabo, não dava a pata, limitava-se a estar ali com o focinho encostado aos meus calcanhares. Achei estranho. O cão não tinha aspecto de ter sido abandonado. Mas, naquele sítio?... sem sinal de civilização próxima?... sem sinal de cadela com o cio? Iniciei o meu retorno para casa, na expectativa de ver o cão desistir de seguir as minhas pegadas e decidir-se por uma caçada aos apetitosos coelhos dos matagais. Corri mais um pouco e o arfar continuava colado às minhas sapatilhas. Olhava, e lá vinha ele, em passo de trote, fazendo de conta que não me via, nem era nada com ele, mas não descolava. Ai não descolas? pensei eu. Resolvi acelerar o passo até ao limiar da minha capacidade aeróbia, convencido que as curtas patas do animal claudicariam perante a evidente superioridade das longas pernas do humano. Puro engano, quanto mais acelerava, mais o bicho arfava, e os seus 4 tocos pareciam que ganhavam a vida dos filmes mudos, tal a frequência imposta na passada. Eu já estava a ficar nas últimas, o cão também, mas não dava a pata a torcer; continuava a babar-se e a arfar, mas a sua persistência desesperada chegava a ser confrangedora. Foi então que pensei: espera aí,…se calhar abandonaram este cão e ele está à espera que eu fique com ele!? Realmente a atitude do bicho dava a entender que eu seria a sua última hipótese; a ponte entre a fome e a fartura; entre os mimos e os pontapés; o dono que todos os cães desejam; a luz ao fundo do túnel. A minha introspecção prosseguia e rebuscava as reminiscências católicas: se calhar é um sinal divino que eu não posso ignorar! Olhei para o cachorro e voltei a debater-me: um sinal divino…com pulgas e baba??? Decidi pôr à prova o divino, o cão e as minhas pernas. Iria acelerar mais um pouco. Se o bicho chegasse comigo a casa, ficaria com ele. Quando cheguei ao portão de minha casa, olhei para trás e lá estava ele aos saltos atrás de mim; tinha sobrevivido e ainda conseguia saltar. O raça do micro-cão percorreu 6 quilómetros comigo, e nunca me deixou fugir, mesmo nos momentos em que foi atacado por outros cães, eu permanecia no horizonte do seu desesperado olfacto. Acima de tudo tinha sido uma machadada no meu ego de corredor; não conseguia correr mais do que um projecto de cão. Tinha de cumprir a minha parte do acordo. Enchi-lhe um prato de comida, expliquei às minhas cadelas que tinham um novo irmão e que deviam emprestar os brinquedos, e tinha de ganhar coragem para contar à minha mulher sobre o novo inquilino.
Fui tomar um banho e fazer algumas tarefas afins. Quando voltei a sair, deparei-me com um fenómeno ainda mais estranho. O prato com a comida estava cheio, o cão tinha desaparecido e com ele uma das minhas sapatilhas!? …maldito rafeiro, gamou-me a sapatilha! Qual sinal divino, qual carapuça!
Restava-me tentar perceber porque é que o cão se deu àquela trabalheira desenfreada, só para meter os dentes na lona mal cheirosa da sapatilha. Será que nunca teve umas “adidas”? ou então o bicho era uma reencarnação de Zatopek? ou será que achou que um atleta com a minha lamentável prestação não merecia uma sapatilha daquela qualidade? Para não ferir ainda mais a minha auto-estima decidi eliminar a última opção, e acreditar em qualquer uma das outras.
Aos meus companheiros de corrida deixo o aviso: se encontrarem um cão a arfar nos vossos calcanhares com uma sapatilha adidas calçada, têm de correr mais do que ele. É que ainda lhe faltam 3 sapatilhas…

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