quinta-feira, 17 de maio de 2007

O poiso e a poia


Existem enormes vantagens de se viver no campo. Não há buzinas, aglomeração, discotecas, lojas, bicha para os correios, prédios , arrumadores de carros . Somos apenas nós e a natureza: as árvores, as carraças, o pó dos fenos, as ovelhas, as moscas, os passarinhos. É precisamente sobre este belo ser esvoaçante ao qual dedicarei hoje a minha crónica. Uma das preocupações que nos perseguiu ao decidirmos construir a nossa casa no meio campestre, seria se o meio campestre ficaria satisfeito com a nossa presença, ou seja, até que ponto não seria melhor deixar a paisagem natural tal como estava. Foi com alguma surpresa e algum alívio que constatámos a alegria de centenas de pássaros que pareciam ter encontrado um refúgio à altura para as suas noites de inverno. Seria como os habitantes das barracas do Casal Ventoso receberem as chaves das suas novas casas. Acabaram-se os ninhos nas oliveiras, a chuva nas delicadas penugens ou a fuga a caçadores incómodos. Aquele espaço cor de laranja por cima de uma paredes brancas, era um verdadeiro oásis no meio do deserto. Era como se Belmiro de Azevedo decidisse construir um shopping center no meio de um monte alentejano. Resultaria numa eufórica animação.
Iniciou-se esta convivência bucólica com o chilrear dos pássaros, a observação sistemática dos seus rituais, a sua alimentação com as migalhas do pequeno almoço, os ninhos que se protegeram das ávidas cadelas domésticas. Esta salutar harmonia homem/pássaro durou alguns meses. Os problemas começaram a surgir quando o “homem” percebeu que os seus amigos pássaros, em troca dos pequenos mimos, era presenteado com cagadelas por todas as paredes de sua casa. Se calhar seria a forma dos passarinhos agradecerem a hospitalidade; como não tinham mais nada à mão, vá de elaborar pinturas artesanais por tudo o que é branco e limpo. O verdadeiro desagrado surgiu quando, de pano molhado na mão, comecei a esfregar, a esfregar, a esfregar e a pequena mancha da cagadela transformava-se numa enorme mancha amarela de difícil remoção. Foi a olhar desconsolado para aquela insolúvel mancha amarela que percebi um pouco mais a dimensão dos “graffitis” nas paredes do metro da capital. Se querem pintar paredes pintem as de vossas casas, seus porcos! Era este o sentimento amargurado de alguém que via a sua imaculada tela ser vilipendiada por pintores de quinta categoria e ainda por cima de...penas. Sem saber porquê veio-me à memória a factura paga pelas latas de 20 litros da melhor tinta robbialac, o que agravou de sobremaneira a minha irritação. Apesar dos bombardeamentos fecais prosseguirem, a faceta ecológica foi suplantando a materialista e a irritação foi sendo progressivamente diluída
Quando já tinha esquecido o preço das latas de tinta, os passarinhos descobriram nas calhas do telhado um parque de diversão aquática. Assim, todas as manhãs, e aproveitando a geada que escorre nas placas zincadas, deslizam pelo tobogam em verdadeiro deleite radical competindo entre si para ver quem sai com mais “gáspia” pelo bordo do beirado. Os menos alucinados limitam-se a passear ou a esvoaçar energicamente sobre as calhas húmidas para sentirem a água lavando-lhe as delicadas penas. Este facto, até poderia ter alguma graça, não fosse a hora vespertina a que ocorre. Todos os dias às 7 da manhã, lá está toda a passarada nos seus banhos matinais. O eco que gera esse seu chapinhar no zinco molhado, se a qualquer hora do dia seria incomodativo, naquele momento, naquela cabeça, deitada naquele travesseiro, sonhando com aquele descanso, tem um efeito tão devastador como qualquer martelo hidráulico a dar cabo do chão da casa do vizinho. A ironia de tudo isto é que vivemos no campo para estarmos longe do ruído . Mais uma vez nos convencemos que teríamos de encarar este barulho como um presente da natureza, afinal era fruto das brincadeiras dos simpáticos passarinhos.
A gota de água surgiu, com a gota de água que me caiu em cima da ponta do nariz naquela noite chuvosa. Estava na sala, olhei para o tecto e reparei na enorme mancha húmida que augurava uma mais que provável infiltração de água. De início pensei tratar-se de uma telha partida, mas constatei que a infiltração se devia ao entupimento das calhas por ervas secas utilizadas para a construção dos ninhos dos pássaros. Malditos pássaros! Foi o desmoronar da empatia; o momento de compreender melhor os utilizadores da pressão de ar, os apreciadores de passarinho frito ou os fabricantes de almofadas com penas de passarinho. Deitei-me a congeminar qual o método mais eficaz para por cobro à tormenta: tiro, pedrada, veneno, gás mostarda, cocktail molotof , bazuca, tudo o que servisse para exterminar aqueles seres voadores era bem vindo.
No outro dia de manhã o novo despertar ao som da onda na calha, levantei-me furioso, abri a portada e vi sobre o beirado do alpendre um casal de passarinhos pavoneando bem à minha frente um ritual de acasalamento. Pareciam chacotear o meu mau humor, exibindo poses luxuriantes de reprodução animal, como que a lembrar que mais passarinhos resultariam daquele acto, o que quereria dizer mais bombardeiros de parede, mais surfistas de calhas molhadas e mais manhãs sobressaltadas ao som de martelos hidráulicos. - Chega! Pensei revoltado. Subi ao telhado decidido a eliminar tudo o que estivesse relacionado com passarada. Ao chegar ao primeiro ninho, pronto para assumir um papel de Miloshevic versão ornitológica, deparei com cinco criaturas de bico aberto, à espera da mãe com a minhoca matinal. Não tive coragem... Desci cabisbaixo e sentei-me a observar a passarada. Na realidade não eram os pássaros os forasteiros...

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