quinta-feira, 24 de maio de 2007

O Ás do volante


Depois de dar à chave pela 8ª vez consecutiva e de não conseguir ouvir o característico ruído produzido pela (super)potência do motor do seu citroen AX, Ediberto percebeu que aquele companheiro de 4 rodas decidira uma vez mais fazer greve ao deslocamento. Apesar da provecta idade, o seu carro dispunha de sensores totalmente inovadores para avaliar a urgência da situação: se o seu dono abria a porta bruscamente, sinal que estava atrasado para o emprego e os riscos de o maltratar serem maiores, accionava o mecanismo de auto-protecção, imobilizando-se de imediato.
Mas o esperto do Ediberto que já conhecia a má disposição matinal do seu veículo, na noite anterior, tomou as medidas necessárias para o demover da inércia, colocando-o numa descida. A aceleração intensa que realizou depois de conseguir pôr o seu carro em funcionamento servia para o penitenciar e, simultaneamente comunicar aos 11 vizinhos, que até aí dormiam profundamente, que o habitante do 3º esquerdo tinha saído para o emprego.
No primeiro cruzamento que encontrou não reparou no sinal hexagonal vermelho com quatro letras escritas, nem tão pouco na outra viatura que circulava na via para onde entrou e que obrigou a travar bruscamente. Incomodado com barulho emanado pelo (legítimo) buzinar do carro atrás do seu, ainda por cima vermelho (a cor rival do clube do seu coração) , Ediberto não é de modas e acena-lhe com todos os dedos flectidos excepto um, como que a dizer:
-Ó palerma, tu não sabias comprar um carro verde com uma buzina que entoasse música “Rave”?
Pode-se considerar que Ediberto encarna o verdadeiro artista do volante; sem grande esforço e circulando a alta velocidade consegue fazer passar o carro entre uma moto, um tractor, duas bicicletas e uma mãe empurrando o carrinho de bébé, sem ter de desligar o telemóvel.
O único contratempo que pode retardar aquele exímio condutor são as...filas. A sequência de carcaças metálicas que estava à sua frente e o obrigam a pressionar o bolorento pedal central representa uma penitência difícil de superar. Para amenizar o sofrimento da terrível espera tem ao seu dispor 2 métodos recreativos: ou se entretêm a observar as moçoilas que passam acompanhando a análise com alguns piropos picantes, ou diverte-se pressionando a buzina, tentando estabelecer, em código morse, laços de amizade com o condutor da frente.
Acaba por fim o congestionamento e inicia-se a aceleração triunfante rumo ao local de trabalho. Quando se prepara para explorar todas as potencialidades do seu carro, encontrou mais um obstáculo à sua progressão: veículo a circular a 50 Km/h...50 km/h? mas ninguém anda a 50km/h ainda mais dentro duma localidade!?
- Ó “abrolho”, tira essa lata da frente! Gritava Ediberto enfurecido.
Escusado será dizer que a “lata” era um BMW último modelo com ar condicionado, jantes de liga leve e air bag para todos os ocupantes (inclusive o gato) , e o “abrolho” do condutor era um senhor descontraído que a avaliar pelo aspecto fino deveria ter a carteira cheia de cartões de crédito.
Quando Ediberto consegue ultrapassar em plena curva o seu opositor, olhou para ele e liberta um reparo cheio de intimidade:
- Ouve lá ó Amélinha, recebeste a carta nos pacotes da farinha “maizena”? Vai mas é p’ra casa lavar a roupa!
Depois de se desembaraçar de mais um “empecilho” prossegue viagem e começa a antecipar o seu momento de glória. Orienta o espelho retrovisor para o bigode, penteia a longa cabeleira, coloca os óculos escuros, retira a cera dos ouvidos com a unha, ensaia o sorriso mais cinematográfico, liga a aparelhagem sonora nos 150 decibéis e, com a mão pendente fora da janela, segura o cigarro aceso. Quando passa a 8 Km/h em frente da Escola Secundária o seu Ego fervilha de confiança; sente-se o Humphrey Bogart nos seus melhores dias. Como um verdadeiro macho latino, não diz nenhuma palavra, apenas lança um olhar aglutinador e pedófilo pelos 17 melhores “collants” que se encontram ao portão daquele estabelecimento de ensino. Para as raparigas menos atentas à sua inebriante passagem, Ediberto oferece como despedida uma das suas sonoras e olfactivas acelerações, deixando de recordação metade do rastro dos pneus “mabor” no alcatrão.
As poucas centenas de metros que faltavam para o emprego, eram preenchidas com a retrospectiva da acção de galanteio elaborado que tinha acabado de produzir junto do público feminino. Os pensamentos inibiam de tal maneira os actos que Ediberto apenas se apercebeu do senhor idoso que passava lentamente na passadeira, já quase encostado à sua bengala. Mas como a perícia suplantava qualquer sobressalto, travou bruscamente e evitou o impacto eminente. Perante a queda do senhor, Ediberto colocou a cabeça fora da janela e, num acto de solidariedade gratuita prontificou-se de imediato a ajudar:
-Ó velhadas, não sabes andar com mais atenção? Tira esses ossos caquéticos de cima da passadeira senão passo-te por cima!
Finalmente chega ao local de trabalho e, quando questionado pelos colegas sobre o facto de ter chegado atrasado, Ediberto com um ar visivelmente agastado responde:
-O trânsito na cidade está impossível ! Um gajo encontra cada maluco ao volante...

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