quinta-feira, 17 de maio de 2007

Filosofices de Sanitário


No outro dia cheguei a um centro comercial procurando desenfreadamente a placa indicadora dos sanitários. Quando a minha roupa interior se preparava para uma imprevista humidificação, encontrei finalmente o local desejado. Lá estava a placa, depois a porta, a seguir o urinol e finalmente... aquela voz feminina com sotaque ucraniano a dizer: - Ei sinhorrr, estou en limpezzas porr fávor vá á outra sanitario!... O meu mundo ruiu; a urina empederniu. Parece que a senhora esperou que o fecho-éclair das minhas calças chegasse a meio, acalentando alguma esperança na consecução do objectivo, para depois destruir de uma só vez a minha sôfrega aspiração!? Por respeito, retirei-me cabisbaixo do local em busca do outro WC, que nestes casos se encontra invariavelmente no 3ª piso e no lado oposto de onde estamos, o que significa, para um ser fisiologicamente aflito, “longe comó caraças”.
Este episódio remeteu-me para uma questão de índole cultural associada ao surgimento dos centros comerciais, que se traduz na aniquilação do genuíno “Sanitário Lusitano”. Mas o que define um Sanitário à portuguesa? Em primeiro lugar a sua localização. Encontra-se sempre no fim de qualquer coisa: no fim do corredor, no fim da sala, no fim das escadas, no fim da estação, traduzindo logo a ideia de que aquele é o último lugar que se deseja encontrar. No entanto, facilmente o encontraremos, não através de placas indicadoras, mas seguindo aquele cheiro de difícil descrição mas de intensa inalação que foge pelas frestas da porta de entrada.
Uma das grandes características deste local é o super-aproveitamento do micro- espaço disponível. Naqueles 4 metros quadrados, consegue-se encaixar toda a loiça da casa de banho , fazer um compartimento exclusivo para a sanita e ainda conseguir que a porta abra para dentro. O resultado desta última medida faz com que a entrada triunfal neste local, signifique o contacto da porta com o nariz do utilizador anterior. Depois dumas quantas cotoveladas lá conseguimos entrar e percebemos que a nossa margem de manobra está ao nível de qualquer contorcionista chinesa do circo de Pequim. Entramos no compartimento da sanita e deparamo-nos com a regra dos 10 cm. A sanita encontra-se a 10 cm das paredes que a envolvem e a cabeça fica a 10 cm de distância do tecto, transmitindo-nos aquela sensação do “quanto mais aconchegadinho, melhor, e vê lá se te levantas devagarinho!”. Verificamos que não existe nenhum cabide para colocarmos a mochila que levamos a tiracolo. Temos de tomar uma opção: ou a mochila continua a tiracolo e temos de permanecer na posição do tipo Corcunda de Notre Dame, ou a colocamos no chão em cima daquele charco de líquido não identificado, ou seguramo-la entre os dentes durante todo o processo. É neste momento que começamos a suar. Com a mochila presa nos dentes, tentamos despir as calças, sem que entrem em contacto com o dito líquido amarelado. Tarefa nada fácil. Limpamos os pingos e as marcas de botas no rebordo da sanita e finalmente...repousamos... inicia-se o momento de lazer com a leitura dos escritos na porta de madeira à nossa frente. São verdadeiras obras de entretenimento que têm um valor incalculável para todos aqueles que por motivo de obstipação permanecem naquele local mais tempo do que o previsto. Se alguém passar junto a um destes sanitários e encostar o ouvido na porta poderá surpreender-se. Ou ouve sons resultantes de um esforço fisiológico desinibido; ou ouve risadas das babuseiras escritas na porta; ou ouve silêncio porque...não há lá ninguém (?). As leituras são lidas, o acto consumado e a ponta do papel higiénico está dentro daquela poça amarelada. A sua qualidade, longe do scottex de folha dupla, indicia que se não existir um certo cuidado, a palma da mão ficará com outro tipo de tonalidade. Depois temos o autoclismo que raramente funciona; ou quando funciona ninguém o pressiona com medo de apanhar uma micose na ponta do dedo indicador. Saímos do cubículo e, só agora, mais descontraídos, conseguimos reparar na higiene geral do local. Imaginamos que a empregada de limpeza emigrou até ao paquistão para se alistar nas fileiras dos radicais islâmicos.
Dirigimo-nos até ao lavatório e percebemos que, ao contrário dos sanitários contemporâneos, onde as torneiras deitam água sem ser necessário rodar nada, o detergente é libertado de forma automática, e basta colocar as mãos debaixo de uma caixa para em 5 segundos ficarem secas, no Sanitário Lusitano a higiene não é imposta, mas sim dificultada. A torneira abre-se com uma chave inglesa, as mãos lavam-se com sabão clarim acastanhado e as mãos limpam-se a uma toalha com bactérias de pessoas que já morreram há dois anos, significando que ninguém lava as mãos ou se as lava limpa-as às calças.
Chegamos ao objecto que me deixa verdadeiramente constrangido e que felizmente para as mulheres, apenas existe no sanitário masculino: o urinol. Aliás, penso que o urinol foi inventado pela crueldade de uma mulher nos resquícios de uma discussão com o marido. Haverá forma mais humilhante do que urinar com o nariz encostado à parede? Já agora dêem-nos uma orelhas de burro!. Depois não há nada mais desagradável do que ter de se realizar um acto tão íntimo encostado ao indivíduo do urinol ao lado. Se mexermos lateralmente a cabeça, o vizinho parte logo do pressuposto de que temos tendências homossexuais; se não mexermos lateralmente a cabeça, imaginamos que o desconhecido está a troçar do nosso apetrecho. De qualquer das formas é difícil a concretização do repuxo com tanta falta de privacidade. Existem aqueles que adoptam estratégias de descontracção e consequente desinibição como assobiar, entoar canções infantis, reproduzir mentalmente o som da água a correr, fechar os olhos e imaginar a sanita doméstica ou simplesmente pensar em 12 imperiais fresquinhas. Apesar dessas estratégias, na maior parte das vezes só conseguiremos finalizar com total espontaneidade, depois daquele “gajo que não tinha nada de mijar ao meu lado” se ter ido embora.
Felizmente para a nossa identidade nacional e, apesar da proliferação dos modernos e imaculados sanitários, ainda é possível entrar no WC da tasca do Ti Jaquim e encontrar, no interior da porta esculpido a navalha, o dizer bem popular: “Neste local solitário, onde a vontade se apaga, todo o fraco faz força, todo o valente se caga...”

2 comentários:

vitorpt disse...

Miguel, eu e o António Silva, conseguimos chorar a rir com esta tua brilhante crónica do "sanitário lusitano".
Nada melhor que começar o dia com umas boas gargalhadas.
Continua com estes devaneios!

Miguel Sentieiro disse...

o que vale é que não cheira...