sábado, 19 de maio de 2007

Desenrascanços


O dia fatídico começou como começam todos os dias fatídicos: com uma avaria. Para solucionar o problema telefonei ao técnico. Ouçamos a sua resposta: - Tenho de arranjar um tempinho para ir aí desenrascá-lo! Aí está ela. Que palavra tão subtil e singela. Geralmente é empregue por prestadores de serviços com muitos serviços para fazer. Canalizadores, Mecânicos, Bate-chapas, técnicos de Ar Condicionado, Pedreiros, empregados de mesa, electricistas e afins. O trabalho é muito, o tempo é pouco e todo esse tempo é utilizado para desenrascar alguém que se enrascou primeiro do que nós. Mas é isso que se pretende com o desenrascar. Pressupõe que haja alguém à rasca; nas últimas; no ponto de ruptura; no limiar do abismo. Quando chega o técnico para desenrascar geralmente já ultrapassámos o estado de à rasca e estamos em plena queda no abismo prontos para entrar em decomposição. Não é em vão que o termo “desenrascar” se parece com “desenroscar”, uma vez que a sofreguidão inerente ao primeiro tem grandes afinidades com o acto de desenroscar a rolha comprimida de um qualquer espumante francês. Só à custa de um grande esforço conseguimos ver a rolha sair disparada e danificar o estuque.
Finalmente chega o desenrascador e pensamos que vamos ser salvos com a calma e eficiência exigidas à nossa ansiedade...puro engano. Outro dos pressupostos do desenrascanço é o “tempinho” disponível, o mesmo será dizer, a falta de “Tempão”. O conceito de disponibilidade causa alergia a este indivíduo. Tudo tem de ser rápido, a despachar, a abrir, para se ir desenrascar rapidamente mais tipos enrascados. É chegar, ver, bater, apertar e ir embora. O Desenrascanço nunca é definitivo. Desenrasca-se hoje para voltar a desenrascar amanhã.
Pensem bem naquele dia que levaram a família ao restaurante económico à uma da tarde num Domingo. Estão na mesa mais afastada de tudo, à espera que vos tragam a ementa e as azeitonas. Olham à procura de alguém que vos sacie o voraz apetite e o que vêem? Um empregado em passo de corrida tentando servir o prato do dia às 30 mesas sem deixar cair nenhuma batata. Levantam o braço repetidas vezes à procura de auxílio e nada. Aquele Bip-bip de bandeja não olha para a vossa mesa (um bom desenrascador não pode olhar para ninguém para não se distrair). Ao fim de vinte levantamentos de braços, para além de se sentirem empenhados frequentadores de aulas de cardio-fitness, percebem que estão a ser completamente ignorados por alguém que apenas chegará para vos desenrascar quando já estiverem muito à rasca p’ra comer. Depois de o conseguirem agarrar pela camisola , mesmo apresentando sinais de hipoglicemia avançada, têm de tentar manter a lucidez necessária para o momento do pedido. É que, se por um acaso se esquecerem de pedir algo antes de soltarem a fera, saberão que muito dificilmente o apanharão tão cedo.
O desenrascanço apenas serve para quem não se importa de conviver com o rápido e mau. Fortalece-se à medida que se vai cultivando esta coisa da “última da hora”. O IRS acaba hoje? Vou lá amanhã! O teste é daqui a uma hora? Deixa-me ler os apontamentos! A inspecção do carro deveria ter sido feita há dois meses? A ver se a faço daqui a um mês! Enquanto houver este gosto pela pressão e enquanto se alimentar esta sensação do estar à rasca, sempre existirá alguém pronto para nos desenrascar...quando tiver um tempinho.

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