quinta-feira, 24 de maio de 2007

Balconite Aguda

Entra pela porta de uma repartição pública um senhor idoso de aspecto humilde dirigindo-se para o local do balcão onde se encontra uma senhora sentada. Esperou alguns momentos e, perante o estado inerte da suposta anfitriã, o senhor perguntou timidamente:
- Olhe, se fazia o fav... (antes de conseguir terminar a frase é elucidado)
- Não vê que eu estou ocupada!!!
O senhor baixou a cabeça e continuou a apertar o boné entre as duas mãos, acatando pacifica e servilmente a ordem da simpática recepcionista. Ao fim de alguns minutos a doce criatura decidiu interromper (a breve trecho) a leitura da página dos conselhos íntimos da revista “Maria” e dirigiu-se educadamente à pessoa de aspecto humilde e desamparado que se encontrava do outro lado do balcão:
-O que é quer!
-Bom, eu ...bom eu, queria vêr se era possível...
-Mas que folha é essa? Então você não sabe que isso não chega? tem de me preencher 2 requerimentos, arranjar 3 certidões, reconhecer 4 assinaturas e decorar em 5 minutos o Despacho Normativo nº 134/91 do Diário da República!
-Mas minha senhora eu...só vim aqui...
-Será que eu falo Chinês? Você não me ouviu? É que eu tenho mais que fazer do que estar aqui a ouvi-lo (afinal ainda só ia na décima terceira página da revista) !
-É que o meu filho pediu-me que eu viesse aqui só para entregar esta folha. Ele disse que isto chegava e eu pensei...
-Já lhe disse o que tem a fazer e não vou voltar a repetir!
-Mas eu não sei ler nem escrever! confessa o senhor envergonhado
-E que culpa é que eu tenho se não foi à escola!
O senhor pediu desculpas e saiu do estabelecimento tal como entrou, apenas um pouco mais confuso e humilhado.
A senhora que o recebeu aparentava ser uma pessoa normal: Tinha um marido de quem gostava, três magníficos filhos, dois cães e um periquito, uma casa hipotecada ao banco e umas pantufas compradas no mercado. No conforto do seu lar era uma pessoa agradável, divertida, protectora, trabalhadora e atenciosa. Mas as pessoas que a rodeavam não conheciam a sua dupla personalidade. A outra face obscura apenas se manifestava perante aquele objecto de madeira irresistível : o balcão da sua repartição!
Quando inspirava o pó acumulado sobre balcão dava-se a total transfiguração: as pupilas tilintavam, os joelhos tremiam, a voz tornava-se mais firme e grave, a altura dos seus saltos aumentava e o seu sorriso transformava-se numas “trombas” de efeito prolongado. Sentia uma sensação de liberdade mas acima de tudo sentia-se a melhor “espezinhadora” do mundo. Não precisava de fazer a comida sem esturricar, de lavar meias mal cheirosas ou mudar as fraldas do filho mais novo às 4 da manhã. Atrás daquele balcão era ela quem definia as tarefas, quem estipulava o tempo, quem decidia quais os clientes que mereciam ser atendidos e quais as revistas que mais a enriqueceriam culturalmente durante o expediente.
O utente introvertido, que espera pela sua vez, se dirige com uma voz sumida à sua pessoa, e começa o diálogo com um acanhado “por favôr” representa a vítima mais apetecida desta ditadora do balcão. O processo de humilhação passa por duas etapas fundamentais: 1ª etapa “distanciamento punitivo”– agora ficas aí à espera qu’é p’ráprenderes a não seres tão educadinho! Esta etapa demora geralmente entre 5 e 28 minutos ; 2ª etapa “o golpe de mestre” – agora eu estou aqui do lado de dentro do meu balcão e tu aí desse lado ; eu é que tenho as minutas, as esferográficas, os carimbos, os selos e as máquinas de escrever, portanto quem manda aqui sou eu! Esta etapa representa o tempo que a vítima demora a conseguir articular a primeira frase sem interrupções ou a engolir em “seco” pela vigésima quinta vez.
Geralmente o tempo que duram as duas etapas referidas poderá ser reduzido drasticamente caso o utente se apresente da mesma forma como pede uma imperial na tasca da esquina. A sua chegada é anunciada com um vigoroso murro no balcão entoando as suas exigências com voz de tenor embriagado, capaz de ferir os tímpanos à dactilógrafa da sala ao lado. Ao invés do “se faz favor” utiliza a frase bem mais contundente e apelativa “eu quero” . Nem ela resiste a tanto charme... Este é o utente que consegue deitar por terra o seu letal olhar, as palavras incisivas, os gestos reprovadores. Felizmente para ela, estes utentes, que fazem perigar a demonstração da sua força bélica, não são muito frequentes.
Atendeu o último chato do dia e com ele o seu trabalho chegava mais uma vez ao fim. Á medida que se afasta do balcão todas as características genuínas da sua personalidade iam recuperando as funções e quando chegou a casa já conseguia esboçar o seu primeiro sorriso.
Á noite, deitada no seu travesseiro de penas e a dormir profundamente, não conseguia eliminar dos seus sonhos a sequência de letras : olhe, se faz favor....

2 comentários:

vitorpt disse...

Que delícia de crónica, Miguel!
sabes, fui ao centro de saúde anteontem, estava a ler a tua crónica e estava a lembrar-me dessa ida que, de tanta espera, quase não tinha retorno.
É que eu também sou, dizem, funcionário público... nas esta treta de ter uma consulta para as 10 e ser atentido ao meio dia é de morrer!
Continua e que o teu teclado nunca avarie!

Rita Amaral disse...

Obrigada.É o que dizes, é a forma como o dizes, é a forma como escreves ... que encanta, que nos faz rir...
Posso divulgar o teu blogue aos meus amigos?