sábado, 23 de fevereiro de 2008

Pelo canto do olho


A natação é das actividades mais estranhas que existem. O que nos dá a nós, seres terrestres, a mania para nos metermos com as ventas no líquido e esbracejar que nem uns condenados de um lado para o outro? O mais bizarro é assumirmos que até nos dá algum prazer aquele aparentemente desconexo esforço aquático . No outro dia deu-me para nadar, e lá fui eu ao castigo. A água estava um poucachinho a puxar para o frescote e tive de acelerar a braçada logo desde o início optando pela canseira em vez do enregelamento. A arfar e com a cara na água, pus-me a pensar como é possível encontrar um motivo de entretenimento numa actividade que nos faz apanhar frio nos artelhos e nos obriga a manter o olhar no azulejo azul durante a maior parte do tempo. Pensei, pensei e cheguei à conclusão: não penses mais nisso e põe-te mas é a nadar! Mas nem só de azulejo vive o nadador. O nadador anseia pelos ténues momentos em que consegue pôr um olho de fora, em busca de ar e imagens novas. São pequenos momentos de luz que surgem após vários períodos de trevas. Esta alternância entre a imagem turva e a luminosidade, será similar ao que sentiria alguém que visse o filme “Branca de Neve” de João César Monteiro entrecortado por anúncios de carros desportivos. A pasmaceira versus o entretenimento. O grande mal é a pasmaceira representar o dobro do tempo do entretenimento.
Bom, mas voltando às minhas esforçadas braçadas, lá continuei empenhado e, depois de dez piscinas a esbracejar, a saída do olho da água vislumbrou nas cadeiras da bancada um casal de namorados adolescentes. À falta de um anúncio de carros, de um jogo de futebol, de umas Cheerleaders com as proeminências aos saltos, restavam-me aqueles personagens para quebrar a monotonia do fundo azul. Como apenas os conseguia ver por breves períodos ao fim de 50 metros, dei comigo a fazer conjecturas de como os iria encontrar após duas passagens. E não era um exercício de Voyerismo tarado; era antes, um exercício antropológico do comportamento humano em situação de pré-acasalamento. Na primeira passagem estava cada um na sua cadeira agarrados …pela boca . Na segunda, ela estava por baixo e ele por cima, ambos agarrados pela boca e fazendo afagadoras festas no couro cabeludo do parceiro. Na terceira passagem,… não percebi bem aquilo(?). Pus a hipótese, para salvaguardar a privacidade do casal, de fechar o olho durante a breve passagem pela emersão. Não consegui. A curiosidade pelo desfecho da novela falou mais forte. Na quarta vez que o meu olho contactou com o casal, a coisa felizmente estava mais amena. O rapaz, fatigado, deitou-se com a nuca no colo da moçoila, que se entretinha a espremer o pus das suas borbulhas. Na quinta passagem, voltei a não entender aquele exercício de contorcionismo. Tinham voltado à carga em grande. De quem era a cabeça de quem, de quem era aquela mão agarrando a coxa do outro, de quem era o pé no ar?...Será que eles aguentam aquilo muito tempo? Tinha de ver se aquilo terminava sem nenhum ferimento e nadei mais rápido. Eu vi logo. Não suportaram aquilo mais do que duas piscinas e o rapaz voltou a deitar-se em cima do colo da moçoila enquanto esta mandava um sms à mãe, provavelmente a dizer que estava a fazer os TPCs com uma amiga. Quando voltei ao azulejo e à minha reflexão pensei: Espera aí, e se fosse a minha filhinha que estivesse ali com aquele marmanjo ao colo? Fiquei danado e nadei ainda mais rápido. O malandro, ali a aproveitar-se dela; e ela deixa??? Ela que está ali também a espremer-lhe o acne e a fazer festinhas na crista do galináceo? Já estava a ser preconceituoso e … “Não sejas assim tão retrógrado! Tens de acompanhar a modernidade, compreender a exteriorização desinibida do amor!...” Mas não consigo deixar de pensar naquele tipo que irá buscar a minha criança adolescente com a sua moto e a crista levantada, que lançará uma frase do género: Ó cota, diz aí à tua miúda que estou aqui à espera dela p’á levar à discoteca? ...O quêêêê?...Os meus pensamentos sobre tal cenário não os posso exteriorizar aqui,…mas não eram muito católicos. Nadei ligeiro para ver o que aquele crápula estava a fazer à pobre da miúda. Mas é a miúda que está agora em cima dele, espalmando-o contra a cadeira?...Não pode ser. Seria o cloro a enevoar a visibilidade, e qual torpedo, dei em bater pernas freneticamente para tirar o tira-teimas sobre a forma utilizada pelo malandro para aprisionar ali a pobre rapariga indefesa. Quando o meu olho saiu da água em busca da resposta, não viu nada. Rodei o periscópio e continuava sem nada ver. Já não estava ali ninguém. Senti um alívio enorme por ter terminado o indecente assédio à frágil menina. Mas senti sobretudo, uma enorme dor de braços por ter nadado tão rápido naquele dia.

4 comentários:

Carlos Marques disse...

A nadar assim ainda vais a Pequim!!
Espera só pelo momento em que a minha forma te vai atirar para a espuma dos meus pés...

vitorpt disse...

Sabes como é, a ocasião faz o ladrão, lá diz o ditado, mas a malta nova é felizmente mais descontraída e menos preconceituosa... e ainda bem.
Eu por exemplo, sempre fui mais rentável na bancada, só que no meu tempo, havia poucas piscinas.

Unknown disse...

Meu amigo,
o treino é mesmo uma tarefa árdua!...
Essa natação é preparação para alguma descida out-kayak "por esses rios abaixo?"

abração

elsafer disse...

a leveza no deslizar na agua e a paragem dos sentidos e dos pensamentos, sempre me faz sentir os momentos inconscientes vividos no utero de minha mãe ... estranho , mas confortante