quinta-feira, 1 de maio de 2008

O Depósito do nosso contentamento



Comemorei o dia 25 de Abril a meter gasolina em Espanha. Também eu pensei que não seria muito patriótico, num dia tão representativo para nós portugueses, estar ali a encher os bolsos dos espanhóis. De mangueira na mão e a ver o líquido castelhano escorrer para o gargalo do depósito do meu carro, senti que deveria estar, ao invés, a escutar uma melodia do Zeca Afonso com um cravo na lapela e exaltar gritos de liberdade. E a agravante de tudo isto é que não meti gasolina de forma circunstancial por estar a passear em Espanha. Fui propositadamente a Espanha para encher o depósito num acto premeditado e sem escrúpulos. Mas que terra de Espanha visitaste?...Nenhuma! Passei a fronteira, abasteci e vim-me embora todo contente. E isso ainda é mais grave. Depois de atraiçoar a pátria eu ainda vinha contente. Tentava purgar a minha culpa “Bem vistas as coisas, com a gasolina 30 cêntimos mais barata, já me dá para dar umas voltitas ali pelo Alentejo à borla…”, mas a culpa continuava a perseguir-me. Enquanto pressionava no manípulo da mangueira com algum constrangimento, aproveitava para olhar para trás. Via uma fila de carros, todos portugueses, à espera, para também eles encherem os seus depósitos; chegavam cada vez mais e mais. Atenuavam um pouco o meu fardo. Já não me sentia tão só. E depois comecei a vê-los entrar na estação de serviço a abastecer que nem uns alarves de tudo o que os seus braços conseguiam abraçar. “Eu ao menos só encho o meu depósito. Agora estes tipos, no dia 25 de Abril, traírem o país desta forma, grandes malandros!...” sentia-me quase absolvido perante a gula desenfreada dos meus compatriotas. Gritava um para a mulher “Ó Matilde já viste aqui um saco de 20 quilos de batatas por 6 euros?”… “E as cebolas?...” É incrível, até por uma saca de cebolas estes indivíduos se vendem aos espanhóis. Ainda por cima no dia 25 de Abril? “Eu ao menos é só gasolina…” , vem a minha mulher muito contente acenando com um gel de banho na mão que custava metade do preço do que em Portugal e tive de lhe dizer “Leva!” . E já agora aquelas bolachas de 1 euro e os chocolates Milka que lá são um balúrdio e aqui em Espanha só custam… “Leva!”. Saímos de lá com os braços cheios de pequenas coisas que valiam a pena, o depósito cheio de gasolina que valia a pena e na mala do carro esteve perto de entrar aquele saco de 20 quilos de batatas …que pena eu não o ter levado. A minha consciência?...nada que um breve cantarolar de uma música do Zeca não redimisse. Mas ao invés de trautear qualquer melodia interventiva como forma de terapia redentora, deixei a minha mente vaguear por factos muito concretos : “Mas porque raio os espanhóis ganham quase o dobro do que nós e pagam menos pela gasolina , pelas batatas, pelo gel de banho e pelos chocolates Milka?” Não encontrando uma resposta concreta para estes factos concretos apenas me ocorreu um sentimento “Que se lixe!”. Ainda bem que tinha ido abastecer a Espanha naquele dia 25 de Abril. Que bem me sentia depois de ter enchido o depósito com menos uns valentes euros. E que bem se deve ter sentido a Matilde ao descascar aquelas batatas. Passei assim o peso das minhas dúvidas para os tipos que taxam os combustíveis em Portugal de forma alarve e até me apeteceu musicar um poema de Ary dos Santos . Voltei a Portugal e, lá do alto do Marvão, olhando para as ameias construídas sobre aquele abismo de rocha, pensei na trabalheira que um grupo de empreendedores portugueses tiveram para nos proteger dos invasores espanhóis. Uma curiosa ironia; agora somos nós, que invadimos Espanha em busca de víveres mais baratos.
Foi sem grandes preocupações energéticas que percorri muitos quilómetros no Alentejo. Ao encher o depósito do meu deslumbramento com o cheiro da paisagem alentejana, ia pensando que não se pode ter tudo. Eles Ganham mais e pagam menos, e nós,…bom,…nós temos o Alentejo para nos encher o ego. Shiuuuu, não contes a muita gente, mas parece que os espanhóis estão a comprar o Alentejo. Com alguma sorte, pode ser que quando plantarem os seus olivais, também coloquem postos de combustível na banda de cá ao preço da margem de lá. E já agora não se esqueçam das batatas, das cebolas e dos chocolates Milka.

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