sexta-feira, 24 de outubro de 2008

O Bang-bang do Senhor Armando


Há pessoas que nos marcam. E há clichés que nunca pensaríamos usar de forma pública, mas que, por transmitirem tão bem o que sentimos, têm forçosamente de ser utilizados sem qualquer inibição e em escrita bem vincada: Há pessoas que nos marcam!...O senhor Armando é uma dessas pessoas. Para a maioria dos leitores o senhor Armando será alguém desconhecido; para mim não, nem para todos os que, o desconhecendo, o conheciam. O Senhor Armando foi levado por uma daquelas doenças fulminantes, que nos levam as coisas boas com a crueldade de não nos prepararem primeiro. Podiam-nos ter avisado antes, de forma calma e sem dramas; afagarem-nos o cabelo e dizerem entre dentes “olha, prepara-te,…que esta pessoa terá de partir daqui a pouco.”, e seguidamente, encher-nos a imaginação de imagens idílicas da morte, como aquela da estrela no céu representando a alma da perda. E porque escrevo esta crónica? Eu tinha jurado nunca escrever sobre alguém a título póstumo. Não valeria a pena; o visado não iria ler. Escrevo, simplesmente porque muita gente não conhecia o senhor Armando e deveria ter conhecido, mesmo desconhecendo. Todos os dias quando ia buscar a minha filha à escola, esbarrava no seu incondicional sorriso e um vigoroso aperto de mão de quem nunca se queixa da vida. E aquele encontro sempre me parecia fugaz; ocasional; a correr, para meter as mãos na miúda e ir embora. Mas sempre que saía dali, levava debaixo da epiderme aquele sorriso e o calor do cumprimento. Era uma espécie de elixir contra a má disposição que muitos dias nos teima em invadir o espírito. Dizia-se que o Senhor Armando não tinha família, que vivia para o colégio. Mas como um homem assim, não pode ter família? Agora percebo. Ele conseguia fazer de todos nós a sua família. E como pode ser grande a família. Nunca fui a um petisco com o senhor Armando, nem viajei pelo Alentejo dentro do seu citroen; nunca ficámos na conversa até de madrugada, nem bebemos sequer um café juntos e é isso o mais admirável; como uma pessoa que nos toca por tão breves momentos, nos pode deixar uma marca tão grande. De facto, não o conhecia, mas passou-me tudo o que pretendia passar: a simpatia e a positividade perante as agruras do dia-a-dia.
Ouvi hoje alguém dizer “que morreu um senhor que era funcionário do colégio”. O senhor chamava-se Armando e era muito mais do que um funcionário; era parte do colégio. Os cachopos adoravam-no porque ele era licenciado em pedagogia da mais elaborada. Jogava à bola com eles, tocava viola para eles, abraçava-se a eles, contava-lhes histórias e ralhava com eles quando era preciso. Era um professor sem canudo mas cheio de canudo para a coisa.
Estou a escrever esta crónica numa espécie de limbo. Estou triste, mas não posso estar triste, porque o senhor Armando ficaria triste se me visse triste. Tenho assim de fingir que escrevo com alegria, neste momento de enorme tristeza. Ouviu senhor Armando! Eu não estou triste!...estou só a matutar aqui com os meus botões sobre a sua arte de nos animar, de nos tornar pessoas melhores! Hoje tive de explicar ao meu miúdo que já não valia a pena sair do carro a correr para conseguir apanhar o senhor com a sua arma imaginária, antes de ser surpreendido por um Bang-bang seu! Para tornar a coisa mais leve, também tive de lhe passar aquela história de que o senhor agora é uma estrela no céu, à qual poderemos acenar sempre que nos sentirmos tristes.
Pelo sim, pelo não, quando acabar de escrever esta crónica, vou ali fora à procura da sua estrela. Vou acenar-lhe, vou dizer-lhe obrigado e depois, vou espetar o dedo indicador na sua direcção e libertar um sonoro Bang-bang, seguido de uma bela gargalhada.

2 comentários:

Moderadora disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Moderadora disse...

O Sr. Armando, que também conhecia, embora há apenas um ano, tinha, de facto, esse dom. Era um dom, com toda a certeza, nos dias de hoje em que nos assolam tantas dúvidas, tristezas, incertezas, perigos e contrariedades, o dom de nos fazer esquecer, nem que por breves minutos (os necessários para irmos pôr ou buscar a catraia), de nos sorrir e de nos desejar, todos os dias, "um bom dia de trabalho". Também eu fiquei triste, porque num mundo onde esse dom vai escasseando, ficámos todos a perder.