quarta-feira, 11 de março de 2009

Uma vista de olhos



“Não é António?” Perguntei a um aluno distraído sobre a matéria que tinha acabado de transmitir. “É sim senhor!” respondeu ele convicto do que não tinha ouvido; a coisa complicou-se quando insisti “É o quê?”. Como o António tinha estado a ouvir a informação ministrada pelo seu colega do lado sobre os atributos anatómicos da Marta, respondeu com um engasgado “Pois…? Sabe…é que…”. Expliquei que nunca se responde “sim” a algo sobre o qual não se faz a mínima ideia, sob pena, de responder afirmativamente a questões comprometedoras sobre a sua vida íntima, ou sobre a sua eventual precária capacidade intelectual. Isto vem a propósito do último congresso do PS. Um verdadeiro festival, com muita bandeirinha a abanar, muito punho no ar, muita beijoca e o tipo que nos “governa” a dizer que melhor do que ele só o Ghandi e, eventualmente, o Dalai Lama . A coisa começou a complicar quando o repórter se lembrou de perguntar aos congressistas o que achavam da moção que estiveram a votar. “Então o que acha da moção?” Pergunta o jornalista. “Eu acho que está muito boa!”; o repórter insiste “mas qual o aspecto da moção que acha mais válido?”,… “bom,… assim de repente,…deixa ver,…acho que estão todos bons!”; o raio do jornalista não dava tréguas e replicava objectivamente “Mas você leu a moção?”, ao que o protagonista responde “dei uma vista de olhos, não aprofundei muito, sabe…”. Dizer que se dá uma vista de olhos é o mesmo que dizer que não se viu a ponta de um chavo, ou seja, que os olhos não tiveram vista nenhuma. É totalmente anti-natura; um insulto a todos os cegos deste país, ávidos que os seus olhos lhes dessem a vista que lhes teima em faltar. O cego não vê porque não consegue; o ignorante não vê porque … quer dar uma vista de olhos. O que estamos a falar não é de cegueira sensorial, mas de cegueira intelectual. Mas voltemos ao espampanante congresso. O jornalista lá percorria os vários congressistas em busca da vista perdida e ia obtendo respostas variadas, mas de conteúdos similares. Os ignorantes mais politizados até arriscavam com respostas abalizadas do tipo “é claramente uma moção que combate a exclusão social, o desemprego, a crise…”, tanga que caía por terra quando se ouvia “ mas o senhor leu a moção?”,… “ ler, ler,…mas é claro que dei uma vista de olhos!”….Nããããõ seu ignorante! Você diz-me que a moção é melhor do que a Madonna nua numa suite do Hilton, quando nem sequer a viu? Deveria dizer o repórter para achincalhar a sua estupidez.
Correcta estava aquela senhora que não teve com meias medidas e disse logo “Olhe, eu não li coisa nenhuma, mas votei “sim” porque gosto muito do homem; é muito simpático e se ele acha que sim eu também acho!”. Ao menos assim assume, sem subterfúgios a sua cegueira…pelo homem. E lá foi comer o pastelinho de bacalhau e beber o seu sumol entre um aceno e um aplauso. Existe um pequeno pormenor que me deixa um pouco incomodado. A moção que se estava a votar intitulada “A força da mudança“ , não propunha uma mudança no guarda-roupa do primeiro-ministro para as suas corridas matinais. A moção, para além de falar da maioria absoluta, tinha aspectos com implicações significativas no nosso dia-a-dia no caso de termos a infelicidade do governo continuar o mesmo. E dão pastelinhos de bacalhau, lá no congresso? Atão eu voto sim!…A expressão “mandar areia para os olhos” nunca fez tanto sentido. Um indivíduo com areia nos olhos pouco vê. E este tipo que nos governa é mestre da propaganda, eficaz na arte de arremesso de areia para o olho alheio, o que até nem é muito difícil com a apetência que o povão sem sentido crítico tem para se deixar cegar com a poeira da “mudança”.
Estou a tentar acabar de ler o livro “Ensaio sobre a cegueira” de Saramago. Nele se fala de uma epidemia que torna todas as pessoas cegas. Todas, excepto uma: A senhora que fica responsável por conduzir todas aquelas dependentes pessoas sem alternativa, em busca de alimento, de uma cama, de uma qualidade de vida aceitável. E a senhora era boa; tinha compaixão; era competente; tentava minorar a cegueira colectiva; A nós, na vida real, calhou-nos um indivíduo que tenta impulsionar a cegueira colectiva. Porque quantos mais forem os ceguinhos, maiores serão as possibilidades das barbaridades que se continuam a cometer, permanecerem impunes e, com alguma sorte, até apreciadas como um sinal de coragem(?).
Lembrei-me agora dos cães guias, esses fabulosos animais que apareceram como uma das melhores ajudas para os cegos se tornarem autónomos . São eles que evitam que os cegos choquem nos carros, embatam nos postes, tropecem nos passeios. Para que consigam assumir essa responsabilidade, de garantir a plena segurança do cego, são exaustivamente treinados, por forma a não se deixarem distrair com facilidade. Parece que nem todos os cães guia serão assim. Existem uns rafeiros que, para além de morderem às pessoas que deveriam proteger, têm um faro que se distrai facilmente com o odor de cadelas com o cio, deixando os cegos entregues à sua sorte. Quando, finalmente, voltam cansados da rebaldaria e, antes de apanharem com o jornal, estendem a pata, abanam o rabo e entregam o pastelinho de bacalhau que surripiaram na mercearia do bairro…

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