terça-feira, 16 de junho de 2009

O Pai do Yakari


A minha filha aproximou-se quando eu estava entretido a ler o jornal. “Oh pai esse aí não é o Primeiro-ministro?”. Olhei com atenção e lá estava ele sorridente no cantinho da página. “É sim filha!” respondi. “Não é este que se porta mal?”. Aí fiquei um pouco mais atrapalhado e não sabia como responder sem faltar muito à verdade. Por um lado, a minha faceta pedagógica dizia-me que teria de contrariar o adjectivo depreciativo da miúda sobre um alto chefe de estado, por outro, existem momentos em que não deveremos ignorar a clareza incorruptível de uma criança. Neste dilema saiu-me um balbuciante e nada convencido “sabes, esse senhor não se porta… mal,… é apenas…um bocadinho,…., deixa ver,….incompetente”. Nisto apareceu o mais novo em passo de corrida e sem respirar atirou-me “incompetente é o quê pai?”. Não me conseguia libertar da parede aonde estava encostado… “Incompetente é uma pessoa que não cumpre bem a sua função. Um professor é incompetente quando não ensina os seus alunos; um médico é incompetente quando não diagnostica bem as doenças; um cozinheiro é incompetente quando coloca ingredientes incorrectos no consumé; um político é incompetente quando contribui para um decréscimo das condições de vida da população”. O miúdo prossegue a inquirição “não estou a perceber bem o que tu queres dizer”. Tive de me empenhar e socorrer-me de linguagem mais infantil “Um país é como a tribo do Yakari, aquele indiozito que tu gostas muito. O Seu pai, como chefe da tribo, é o responsável para que nada falte à aldeia. A comida, a segurança e o bem estar de todos. Quando tu vês o Yakari ele está sempre pronto e contente para mais aventuras em cima do seu cavalo Minitrovão na companhia do sonolento Olho-de-Bolha. Se o Chefe não deixasse os seus índios caçarem búfalos, se não protegesse as mulheres e crianças dos malfeitores ou se passasse o dia a esbofetear o Yakari, este não andava lá muito bem disposto, nem o Olho-de-Bolha teria muita vontade de dormir descansado. Significava que o Chefe não cuidava bem do seu povo e por isso era incompetente” pensei que tinha sido desta “Ahhh, já estou a perceber, era assim uma espécie de pessoa que se… porta mal!?” gritou o miúdo. Voltámos ao início, mas eu não iria argumentar mais. A minha filha atacava de novo “Mas porque é que o senhor está sempre a sorrir, se as pessoas não estão lá muito contentes com ele?”mais uma botifarra para eu descalçar “Ele sorri para que as pessoas acreditem que está tudo melhor…”, “é uma espécie de mentirinha, não é pai?”, tento amenizar “se calhar ele quer que as pessoas fiquem optimistas e também sorriam, mesmo desempregadas”. O mais novo, mais pragmático e sem grande polimento político rematou “Então porta-se mal e diz mentiras?” . Temia que se alongasse mais o debate a coisa se agudizasse e fiquei-me por um descomprometido “Não é bem assim…”. Antes que ele lançasse um “Então é como?” tratei de o despachar “Agora vai lá brincar que eu tenho de pôr a mesa para o almoço!”. Colocava eu os pratos sobre a toalha, quando chegaram os dois cada um com um marcador e, entre sorrisos, começaram a pintar enfeites na cara do senhor do sorriso. Estou a escrever esta crónica com alguns pesos na consciência porque não fiz nada naquele momento em que os petizes riam por cada bigode que punham no engenheiro. Não agi, não repreendi, apenas continuei a colocar talheres e copos, sem interferir naquela espécie de usurpação da imagem de jornal do primeiro ministro. Pensei que a culpa era minha. Quando a miúda disse que o homem se portava mal se calhar já o tinha ouvido da minha boca num momento de desabafo. No entanto senti alívio por ela ter utilizado o adjectivo mais suave que o pai costuma pensar quando se lembra do senhor do sorriso. Mas eu deveria ter impedido que lhe pintassem dentes de azul escuro. O sorriso e o optimismo afundavam-se. Só faltavam os guardanapos e os miúdos continuavam na sua pintura. Eu deveria ter pousado os guardanapos e agido com um veemente “Não façam isso!” , ao invés fui à procura do fundo para os tachos, fingindo que não era nada comigo. Acabei de pôr a mesa e lá me saiu um tímido “Agora já chega de pinturas vamos lá comer a sopa!”. A minha curiosidade não me deixava desfrutar a refeição em paz se não fosse inteirar-me da obra que, no fundo, eu desejaria ter concebido, e lá fui espreitar pelo canto do olho. O senhor do sorriso estava com uma popa, tinha agora óculos, precisava de uma visita ao estomatologista e usava um bigode parecido com o do D. Duarte. Afinal não foi tão mau assim. Com as minhas frustrações latentes eu teria , bem á vontade, pintado uma cicatriz na cara, uns cornichos na cabeça e uma tatuagem “Born to Destroy” no peito. A minha conscienciosa filha durante o almoço lá confessou que não se sentia muito bem por ter pintado o bigode no senhor. Eu tive de concordar e expliquei-lhe, que por muito mal que as pessoas se portem, não deveremos pintar-lhes os dentes com marcador azul. No jornal do dia seguinte, o senhor do sorriso, estava sem sorriso a admitir que dificilmente teria maioria absoluta. Aí eu pensei: “será que a pintura teve um efeito de macumba e o senhor começou a revelar alguns traços de bom senso?” Para a próxima terei mesmo de pintar uma tatuagem no peito do senhor a dizer “Born to Be Good”. Pode ser que resulte…

Um comentário:

Anônimo disse...

Está demais. Parabéns.
Marta Lemos