segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Novas Oportunidades


Estava na banca dos jornais a dar uma olhadela pela imprensa diária e do meu lado ouvi: “Isto só lá vai a tiro!”. Olhei e era um senhor com aspecto distinto, que folheava um jornal e não conteve a sua indignação quando os olhos absorviam uma qualquer alarvidade que todos os dias vamos lendo. “Mas que país é este que deixa os bandidos impunes?...”. Abanei a cabeça com o habitual “Pois é...” e retirei-me com o jornal debaixo do braço a matutar. O que levará um homem daqueles, aparentemente civilizado, com bom aspecto, dizer que sai por aí aos tiros para parar com os tiros da bandidagem? Cheguei a casa e pus-me a ler o Diário de Notícias. Os olhos não descolavam da notícia do idoso que foi trancado pelo filho numa garagem guardada por um cão feroz durante 14 anos, para lhe ficar com a reforma milionária de …200 euros mensais(?). Foram 14 anos a comer latas de feijão e a defecar dentro da sua prisão de zinco. 14 anos é muito ano; 14 anos é muito dia; muito dia a cheirar as fezes e urina, a coçar as pulgas da barba, a pensar em morrer para se ver livre daquilo. Descobriram o velhote, meteram-no num lar e parece que chora todos os dias. Não sei se chora pela experiência desumana por que passou, se pela condenação de 3 anos e meio de pena suspensa que o carrasco do filho “sofreu” pelo seu acto bárbaro. Aliás, tenho algumas dúvidas em classificar se o acto mais bárbaro foi a barbárie cometida por aquele traste disfarçado de homem, ou a barbárie da impunidade expressa na decisão daquela pessoa disfarçada de Juiz. “Isto só lá vai a tiro!...” eram as palavras que não me largavam as têmporas. Mas, como não queria deixar-me levar por tão primários sentimentos de justiça popular, tentei sair daquela notícia de forma impune mas tropecei logo na que estava por baixo. Um sequestro em tudo semelhante ao anterior, de uma mãe com um filho deficiente que foram mantidos trancados durante um ano, pelo outro filho, que em vez de comida e água lhes dava uns valentes tabefes. “Isto só lá vai a tiro!....”. Vá deixa-te disso e passa mas é para a página seguinte!... “Mulher raptada e mantida sob sequestro por pretendente” . Não! Não quero mais sequestros, não aguento isto sem me vir à memória o som libertado pelo maxilar do senhor com bom aspecto “Isto só lá vai a tiro!”. Ainda bem que o senhor tinha um aspecto distinto; um tipo mais rude diria logo “A esses cabrões era amarrá-los a um poste e enchê-los de porrada!”. Avança, vá,… avança para a notícia seguinte e não deixes que a fúria te cegue. “Brasileiro morto à pedrada em parque de Setúbal” . Epá ao menos este não foi sequestrado pelo filho, só foi apedrejado até à morte por dois indivíduos, aliás, dois jovens (são sempre jovens que matam) que andam a monte para serem apanhados e libertados ao fim de meia dúzia de anos por não terem antecedentes criminais. “Isto só lá vai …com medidas de fundo!” Ufa, pensei que irias voltar àquela coisa dos tiros, mas assim está melhor; medidas de fundo soam a resolução ponderada dos problemas. Na verdade, se a justiça funcionasse viveríamos muito melhor. Atenção que falei em Justiça, daquela a sério, daquela sem a venda nos olhos. Não sei quem foi o iluminado que criou o mito da justiça cega. Para se fazer justiça, não se pode fechar de forma sobranceira os olhos e decidir, sem confrontar o código penal com o olhar das vítimas. Esta sensação de nos apetecer sair por aí aos tiros, despoletada por uma indignação incontrolada, seria resolvida com formação adequada. Os juízes, especialistas em facultar Novas Oportunidades a homicidas, e violadores, poderiam também eles frequentar os cursos de Novas Oportunidades, tão em voga, que têm o mérito de oferecer muitas habilitações em muito pouco tempo. Assim, os Juízes teriam a oportunidade de se colocarem por momentos na pele da vítima. O curso, cujo tema aglutinador seria “Um dia como…”, facultaria aos formandos módulos experimentais divididos em vivências diárias contundentes. “Um dia como um polícia no Bairro da Bela vista”; “Um dia como um velhote fechado numa garagem escura”, “Um dia apedrejado por dois jovens delinquentes”, “Um dia como criança sodomizada nas mãos de um pedófilo”, “Um dia como taxista de navalha encostada à glote”, “Um dia como uma mulher a levar tabefes do marido”. Bastariam poucos dias para que, na hora da decisão, não se deixassem acometer pela tal cegueira judicial, encoberta em códigos e artigos. No caso de muitos magistrados optarem pela não frequência dessas Novas Oportunidades, e continuarem a presentear-nos com as suas aberrantes decisões, dever-se-iam criar cursos de Novas Oportunidades, para todos os cidadãos com algum bom senso, para que estes conseguissem lidar melhor com a indignação. A formação teria a designação de “Como perder a vontade de andar para aí aos tiros perante factos paranormais”, e teria como objectivo levar o cidadão a conseguir transformar os “factos paranormais” em “factos perfeitamente normais”. As aulas consistiriam numa leitura exaustiva de 5 jornais diários seguida de um ritual oratório, onde se teria de repetir durante 3 vezes seguidas a frase: “Não me vou exaltar, porque isto é perfeitamente normal!”. Eu próprio já comecei, de forma autodidacta, neste exercício de autocontrolo. Voltei a folhear o jornal e, na notícia do marido que matou a esposa grávida a tiro, que foi posto em liberdade 6 meses depois e reclama agora a guarda dos filhos que vivem com os avós, já ia conseguindo um certo distanciamento, uma certa compreensão para com aquele marido e pai homicida que só queria estar com os filhos, excepto aquele filho que matou na barriga da mãe…?... Ainda não consigo. Preciso de mais oportunidades para conseguir assimilar isto sem me lembrar do senhor de aspecto civilizado a dizer “Isto só lá vai a tiro!”.


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