sábado, 18 de outubro de 2014

Da Serra Leoa para Portugal...com admiração...

Somos um dos três países mundiais com maior competência no sector. Fiquei estupefacto com a fabulosa notícia. Nós, que perdemos tempo com fatigantes lamúrias e maledicência barata, aprendemos hoje que fazemos parte de uma restrita elite na vanguarda do conhecimento. Pensarão os leitores de que sector se trata, e não adianta perderem tempo a divagar pela pesca, agricultura, economia, justiça e irem logo directos para a área da saúde. Descobrimos que estamos na vanguarda da despistagem do vírus mais falado no momento: o ébola. Mas não confundamos despistagem com …despistagem. A despistagem da qual falamos não termina com o chassis do carocha amolgado na cortiça de um sobreiro; trata-se sim da investigação laboratorial que atesta se o líquido do frasquinho tem vestígios do tal vírus mortal. E sermos um dos três países de referência na despistagem do ébola, resulta em quê?...na escolha dos nossos laboratórios como local privilegiado aonde chegarão amostras de todo o mundo em busca de diagnóstico. Um orgulho nacional. Finalmente o reconhecimento exterior pelos nossos serviços. Numa altura em que tanto se fala de exportação, era disso que nós precisávamos: de importar o vírus ébola. Estava longe do nosso território, mas nós fizemos questão de o chamar para pertinho de nós. Não sei bem como conseguimos ser escolhidos no meio de tantos, mas aproveitemos para cumprir essa função com brio e dedicação. A senhora do laboratório dizia que se despedia dos filhos e encarava a estóica tarefa como um combatente na linha de fogo, sem pensar numa bala perdida, numa luva furada, numa galocha rasgada. À primeira vista, poderíamos esperar a importação de outro tipo de serviços e bens como barcos de pesca noruegueses, organização suíça, tecnologia japonesa, economia alemã, pizzas italianas…o quê?...essas já importámos?... fiquemos pela economia. Mas importamos o Ébola e exportamos o diagnóstico para todo o mundo; um serviço público de valor humanitário. Poderíamos ter ficado na vanguarda das análises do colesterol, da glicemia, da Alina Aminotransferase , mas nós gostamos de fazer as coisas em grande (eu sei que a última designação técnica soava a algo grandioso mas não é nada de especial) e apostámos num vírus que tem uma taxa de mortalidade de 70%, ou seja, mata comó caneco. Não questionamos porque razão são só três os países de referência para a análise do ébola (não sei quais são os outros dois, mas não devem ser os alemães que já têm a economia, nem os noruegueses que já têm os barcos de pesca...), e encaramos a tarefa com o empenhamento e o desprendimento do montanhista que escala nos Himalaias, do pára-quedista que se atira do avião, do piloto que acelera a 300km/h antes da curva, do canoísta que enfrenta os rápidos do rio Zambeze. Recebemos o frasquinho vindo da Serra Leoa em busca de respostas e seremos nós os portadores das mesmas. Temos esse poder entre mãos, esse e o frasquinho que não pode cair ao chão. E é no fio da navalha, com a adrenalina a pulsar nas veias, que trabalhamos em prole dos outros; uma tarefa de pura abnegação. O fato foi bem vestido, as luvas bem colocadas, os óculos acondicionados, as galochas coladas às canelas, a análise realizada, a desinfecção concretizada, os resultados obtidos. E eis que chega o culminar magnânime desta tarefa: a comunicação ao doente se este tem ou não tem o vírus. No caso da análise ser negativa, o doente saltará de alegria e jamais se esquecerá dos portadores da boa nova e ainda acabará a comer sardinhas nas docas de Peniche. No caso da existência do vírus se confirmar , teremos a dolorosa tarefa de dizer ao doente que apanhou ébola e, no caso dele perguntar pelo outro diagnóstico, o da cura, conseguirmos dizer-lhe que: “Cura, cura, ainda não se descobriu,…, mas parece que os americanos estão a testar um medicamento que pode ser que faça qualquer coisinha…”. A nossa tarefa restringe-se pois à despistagem…sim, a despistagem: a do carocha que se estampa contra o sobreiro. Chegamos ao local com a fita métrica debaixo do braço e, depois de várias medições e análises, afiançamos o diagnóstico com propriedade: “O senhor tem a chaparia do seu Volkswagen em estreita comunhão com a cortiça do sobreiro; basicamente tem o carro feito num oito e acaba de destruir uma árvore centenária”. Ao que o acidentado responde: “Isso dá para ver com facilidade; mas acha que tem solução???”. “Solução, solução,..., olhe tenho aqui o contacto de um bate chapas; pode ser que lhe resolva isso.” O que não me sai da cabeça é a imagem da investigadora do laboratório, acondicionada dentro de todo aquele aparato de isolamento, com a mão trémula segurando o frasco com o possível líquido mortal; sem margem para erro, ou vacilação. O que acontecerá no caso da senhora não conseguir conter um espirro?..... alguém tem o contacto do bate-chapas?....

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