terça-feira, 25 de novembro de 2008

A arte do Simulacro


A catástrofe assolou o país durante dois dias. Caiu um viaduto, incendiou-se um posto de combustível, desabaram dezenas de casas, explodiu uma fábrica, descarrilou um comboio, soterrou-se uma escola, despenharam-se carros, deram-se fugas de gás e rupturas de condutas de água, pessoas feridas no chão, rostos de sofrimento,…Corta!!! Já chega!...Terminou o simulacro! … Um simulacro, pá? E vem a malta aqui a esta hora, ao frio, convencidos que o sangue era mesmo a sério, mas afinal é tudo a fingir!? Indignam-se os curiosos que assistem incrédulos às operações de salvamento. Mas o espectáculo foi em grande; rivalizava com qualquer filme de Ridley Scott. Bombeiros, helicópteros, forças militares, ambulâncias, polícias e tudo para salvar malta que… não precisava de ser salva. Falava alguém sobre a importância dos simulacros, para estudar as lacunas da protecção civil em caso de emergência. “Para se perceber como agir em situações reais é necessário fazer simulações, criar situações a fingir…” , “A fingir o catano! Atão e a minha horta? Quem me paga os estragos nos tomateiros?” gritava a dona Idalina depois dos solícitos soldados da marinha lhe terem partido a porta de casa e pisado as hortaliças, para conseguirem chegar ao cenário de derrocada…a fingir. Parece que os rapazes levaram mesmo aquilo à séria e vai disto ó Evaristo, pensando que a idosa era também figurante daquele filme. “Em vez de andarem a pisar tomates, vão mas é apanhar os traficantes de droga na costa vicentina!”, parecia querer dizer a dona Idalina.
Mas de resto a coisa até correu benzito. As pessoas estavam calmas, os polícias estavam calmos, os bombeiros estavam tão calmos que parece que demoraram algum tempo a chegar. Aliás, uma das grandes conclusões do simulacro, foi a grave lacuna associada ao tempo excessivo que os mortos demorariam a chegar ao instituto de medicina legal. Um aspecto verdadeiramente importante, até porque as dezenas de mortos estavam vivos e cheios de frio.
O simulacro representou também uma experiência extraordinária para toda a ladroagem que existia em Lisboa e arredores. É que grande parte das forças de segurança estava distraída a resolver problemas a fingir. “Ó Jota, já sabes, quando a chota for ali ajudar os bombeiros na derrocada do viaduto em Alcântara-Mar, tu atacas na ourivesaria do Lumiar!”…”E se ouvires sirenes, não te preocupes que são os gajos a levar mortos a fingir…”
Gosto muito de ver espectáculos megalómanos de muita luz e acção. E apreciei de sobremaneira toda esta encenação, até porque a conjugação de várias sonoridades de sirenes, do ruído das hélices e todo o colorido das fardas, deixou no ar uma imagem arrebatadora de estoicismo. Só não percebi bem a parte do simulacro. Sinceramente, acho que gastar dinheiro a simular catástrofes, quando o país se encontra mergulhado numa tão grande, seria escusado. Com assaltos a bancos quase todos os dias; acidentes de viação hora a hora; assassinatos várias vezes ao dia; tráfico de droga e de armas em barda; pedófilos a atacar crianças que ninguém quer conhecer; bancários a roubar à bruta; políticos amigos de bancários que roubam à bruta. Então para quê o simulacro? Por causa dos sismos. Têm razão. Para a coisa parecer mais negra, só falta mesmo a terra tremer e abrir brechas, para nós cairmos definitivamente no buraco, embora eu pense que num sismo a sério a malta vai toda sair a correr para todo o lado, se possível para longe das sirenes.
Mas se a catástrofe grassa no nosso quotidiano, então e o simulacro? Não existe uma especialidade em mentir à descarada? A grande novidade reside no facto de habitualmente se usarem simulacros para se esconderem as catástrofes. Aliás, o nosso Primeiro ministro é um mestre na arte de bem simular. Simula licenciaturas, simula empregos, simula competência, simula riqueza, simula ordem, simula julgamentos, simula educação e tudo com muita calma, com muito descaramento. E, se lhe perguntarem como resolveria o transporte dos mortos, diria logo que ninguém morreria, mas no caso (remoto) de isso acontecer, os corpos chegariam à morgue em segundos e, ele próprio, patrocinava funerais com belas coroas de flores para todos.
A grande vantagem de termos à frente do país um tipo especialista no simulacro é que, no caso de surgir um terramoto a sério, ele conseguirá como ninguém, iludir o pessoal de que aquilo, quanto muito, será o resultado de uma má digestão de um qualquer elefante perdido na mata de Monsanto. É caso para Recuperar as palavras de Pinheiro de Azevedo, primeiro-ministro em 75, depois de um quantos petardos lançados num terreiro do Paço a abarrotar de manifestantes em pânico, ele gritava: “O povo é sereno! o povo é sereno!...isto é só fumaça!...”. A essas palavras só faltaria acrescentar: “E já agora tenham cuidado para não pisar a horta da dona Idalina!...”

2 comentários:

José Ricardo Costa disse...

Eu acho que este tipo de simulacros resulta de um certo complexo de inferioridade português. Nós temos inveja de países como a China, o Irão ou o México onde acontecem grandes catástrofes que enchem as notícias do mundo inteiro. Já que não os temos, fingimos que os temos. Sei lá, é uma aprendizagem, tipo crianças a brincar às casinhas, às lojas ou aos médicos.

JR

Profantonio disse...

Estamos tão habituados a viver em situações de catástrofe - e para contrariar a má língua do Miguel que só viu aspectos negativos no simulacro - que, no caso do Metropolitano, os meios de socorro chegaram antes do desastre. Isto sim. É categoria. Imaginem o ar desiludido do pessoal do INEM quando apanhou as vítimas descansadas a tomar um cafézinho: «Então você ainda não está todo partido?»