Troquei de carro. Ou antes, fui
obrigado a trocar de carro, uma vez que o meu veículo decidiu falecer à revelia do dono. Ainda
tentei reanimá-lo, com umas festinhas no capô e uns pontapés nas jantes, mas
ele claudicou. Mas não se limitou a claudicar de forma passiva; até chegarmos
às festinhas no capô, já ele tinha feito grandes festinhas na carteira do dono,
entre tubagens, embraiagens, motor de arranque, correia de distribuição. Mas os
laços que nos uniam eram de tal maneira fortes, que ele decidiu que gostaria de
levar o dono para a cova com ele. Percebe-se que nunca esqueceu os momentos
fraternos que vivemos juntos, das peúgas suadas debaixo dos bancos, dos caminhos
em terra batida que percorremos, dos iceteas
espalmados no banco do passageiro, das cascas de banana em compostagem
no guarda-luvas. Decidiu então falecer neste momento de prosperidade económica
em que vivemos, para que o dono esbanjasse também ele a sua própria prosperidade. Em sua memória fiz-lhe a vontade e adquiri um
veículo afogado em tecnologia onde tudo apita e nos faz pensar que prevaricamos
a toda a hora. Apita quando não se põe o cinto, apita quando se tira o cinto,
apita quando as luzes estão ligadas, apita quando é preciso fazer a revisão,
apita quando não pressionamos o travão de mão, apita quando saímos do carro em
andamento…?...(já um tipo não pode saltar do carro). Este árbitro de futebol de
quatro rodas, tem, contudo, uma apitadela que me faz babar de contentamento: o
apito do sensor da marcha atrás. E não se limita a apitar quando estamos
prestes a embater na oliveira lá de casa. Avisa com uma luz que vai passando de
verde para vermelho à medida que o pára choques se aproxima do estado de
espalmamento, terminando com um enorme e reluzente STOP antes do impacto. Bem
sei que nesta fase deveria estar a fazer o luto pelo meu falecido carro, mas
estou naquela fase de afogamento tecnológico, qual criança inebriada com a
playstation recebida no Natal, e sem qualquer sinal de nostalgia das avarias do meu chaço anterior.
Decidi então pegar no meu
compacto amovível de tecnologia e ir até ao multibanco ver o recibo de
vencimento. Olhei para o tal recibo e , depois de soltar um termo imperceptível,
consegui sentir um misto de alegria e tristeza. Por um lado, ao fim de 25 anos
a trabalhar, nunca o meu salário se aproximou tanto daquele que eu recebia no
meu primeiro ano de vencimento. E essa sensação nostálgica transportou-me à minha primeira ferrugenta renault 4L, aos
0,6 cêntimos do litro de gasolina, aos 0,4 escudos do preço da bica, ao meu ano
de jovem estagiário, que não pensava em custos do rolo de papel higiénico. Mas
o recibo do meu “vencimento nostalgia” deixou-me com alguma pena dos nossos decisores políticos por, no meio
de tanto Mercedes e BMW onde sentam as majestosas bundas, ainda não terem adquirido um veículo daqueles
à séria, com sensores de marcha atrás. A atestar pela velocidade de recuo a que
sujeitam as economias familiares, que nos levam a sentir os costázios a furar
sucessivos muros de betão, decerto que não têm o apito milagroso nem a luzinha
vermelha a acender. Ei, Meus senhores!...comprem lá o tal sensor, que a minha
carroçaria de retaguarda não aguenta
muito mais espalmamento!!... Quando pensava que não me ouviam, eis que surgem
os primeiros sinais de se querer inverter a tendência de regressão económica.
Uma medida de fundo, que revolucionará o panorama de desenvolvimento nacional
concertado: Um referendo!...Isso!...consulte-se o povo para que esta carroça
ande para a frente! O tema do referendo?...É…?...Vamos lá, deixem-se de suspense…(decerto
um dos grandes temas aglutinadores do desenvolvimento nacional e social como a privatização
da energia, a regularização dos impostos, o funcionamento da justiça,…)…a
Co-adopção por casais homossexuais!? Muito bem! Finalmente alguém com clarividência
para pôr isto a andar para a frente. Eu
compreendo o pensamento do tipo que teve essa “holofótica” ideia. “Deixa cá
ver; podíamos legislar directamente sobre a co-adopção por casais homossexuais,
mas gastando 10 milhões de euros é outra coisa! Tem mais impacto, faz com que
os cidadãos sintam essa medida como sua!...” De impacto a nossas carroçaria de
retaguarda percebe, depois de vários estampanços contra oliveiras no caminho.
Aguardo ansioso pela próxima ideia de referendo sobre a proibição de lançamento
de cascas de amendoim pela janela do carro, ou sobre a limitação do consumo de
bolacha Maria a partir das 23 h, ou a imprescidível abolição das brocas dos
dentistas.
A avaliar pelo ritmo da marcha
atrás ininterrupta que este veículo assumiu, rapidamente a magnitude do meu
salário, encontrar-se-á com a nostalgia da mesada que a minha mãe me dava nos
tempos de adolescente. Mas, mas,.... já há malta de 40 anos que voltou a viver
com a mesada das mães???... Grandes malandros, vão comprar os livros do Tex e
pacotes de batatas Pala-pala antes de eu lá chegar.
3 comentários:
Caro Miguel, é com muita tristeza que tomo conhecimento de mais um corte no teu vencimento... concerteza o governo soube que tinhas comprado um carro novo, Já te disse muitas vezes que trabalhar a sério e com profissionalismo na função pública em Portugal, só podia dar mau resultado, mas prevejo que ainda vas ser despedido antes da reforma, por insuficiente preparação pedagógica. Eu fugi para o Brasil e faço pasteis de bacalhau que se vendem melhor que pão de lo, muito melhor que ver isso tudo aí a ficar em águas de bacalhau. Um grande abraço e espero que saibas dar uma resposta proporcional a quem te trata mal, ou seja, dá o teu maximo para fazer o mínimo, que é isso que esse governo merece.
Caro Miguel, é com muita tristeza que tomo conhecimento de mais um corte no teu vencimento... concerteza o governo soube que tinhas comprado um carro novo, Já te disse muitas vezes que trabalhar a sério e com profissionalismo na função pública em Portugal, só podia dar mau resultado, mas prevejo que ainda vas ser despedido antes da reforma, por insuficiente preparação pedagógica. Eu fugi para o Brasil e faço pasteis de bacalhau que se vendem melhor que pão de lo, muito melhor que ver isso tudo aí a ficar em águas de bacalhau. Um grande abraço e espero que saibas dar uma resposta proporcional a quem te trata mal, ou seja, dá o teu maximo para fazer o mínimo, que é isso que esse governo merece.
Vitor Lucio
Por este andar, eu ainda irei aos pasteis de bacalhau...
Abraço
Miguel
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