quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

E ainda temos de gramar com as passas?



Nunca dei grande valor à passagem do ano. Mas todos os anos oiço as pessoas planear de forma efusiva o que vão fazer naquele marcante momento. Combinam-se rebuscados destinos, originais aventuras e caros reveillons para se passar a… passagem(?). Porque é isto que a passagem significa: a ligação rápida entre dois estados: aquele onde se estava e o outro para onde se vai. A minha grande dúvida é porque carga de água se dá tanto valor à passagem do ano e tão pouco valor às pontes? As pontes são também elas uma passagem (para a outra margem como cantavam os Já-Fumega) e a sua existência poderá significar a diferença entre ir-se a pé ou a nado; entre chegar seco ou molhado; entre conseguir ir e ter de se ficar. Mas apesar da sua enorme importância, ninguém lhes liga nenhuma; ninguém come passas ou abre champanhe sempre que passa por cima destas magníficas obras de engenharia; ninguém dá abraços e deseja boa estada na outra margem quando termina a sua transposição. Outra das coisas que me deixa descrente na passagem do ano é o facto de existirem tipos que a passam antes de nós. O que é que os australianos, os alemães ou os espanhóis têm a mais do que nós? Será que tem a ver com as diferenças económicas ou a nossa falta de pontualidade? Toda a gente deveria passar na mesma altura. Saber que só passamos o ano depois dos espanhóis, deverá ser a sensação que o Tiago Monteiro tem sempre que se senta no seu Fórmula Um: Serei o último ou o penúltimo? E já pensaram que basta o nosso relógio estar atrasado dois minutos para já não passarmos para o novo ano no momento certo? Arriscamo-nos a apanhar o novo ano em andamento, mas pior, é contar aos berros aqueles que pensamos ser os últimos dez segundos do velho ano e serem já os quinquagésimos segundos do novo ano. Para o próximo ano vou adiantar o relógio uma hora e dois minutos só para dar o golpe nos espanhóis.
Mas então, qual a causa que levará milhares de pessoas a acreditar que se comer 50 passas de uma só vez naquele último segundo satisfará a maioria dos seus desejos? O que fará alguém pagar 500 euros para ir ver o Paul Anka ao casino do Estoril, ir ao banho à praia da Nazaré todo nu, pedir um empréstimo para ir duas noites à Madeira ver o fogo de artifício que custou 1 milhão de euros? Só um momento de loucura despoletado por algo grandioso como uma…passagem do ano. Sou assim obrigado a pensar naquele momento como uma passagem gloriosa para um estado totalmente novo e desconhecido; uma ruptura abrupta com o ano que findou. Daí se falar em Ano Novo! Mas depois daqueles derradeiros segundos, em que o companheiro do lado nos rega a camisa nova com champanhe, tudo permanece lamentavelmente… igual, ou quase. A passagem ideal seria, em sentido figurado, como separar com um enorme portão o deserto de Marrocos e um frondosa floresta no coração do Oregon. Ao estarmos prestes a deixar para trás o calor tórrido e insuportável para entrarmos por fim no apelativo paraíso natural, faz todo o nexo comemorarmos. Agora, voltemos à nossa realidade e pensemos a surpresa e alívio adjacente à entrada no ano seguinte. Quando todos gritam “Viva o Novo Ano!” apercebem-se que a única coisa nova que se tem, é a camisa estar agora toda pegajosa e com cheiro a espumante. Está ali toda a malta ansiosa, encostada ao portão, com as garrafas na mão a dançar o Kizomba, à espera de ver o paraíso do outro lado do muro, até que finalmente alguém abre ruidosamente o portão. Quando se passa para o outro lado começa-se logo por pisar o faisão com couve lombarda vomitado pelo amigo de reveillon. Depois tem de se gramar com o discurso optimista do Presidente da República sobre as grandes linhas de acção do governo e sobre a floresta do Oregon que existe, mas no continente americano, e por último constata-se que a única coisa que não aumentou com a abertura do novo ano foi a nossa conta bancária. A grande vantagem de se passar o portão embriagado é não se incomodar com os restos de faisão no sapato, é achar que a gravata do Cavaco lhe fica bem e é apetecer dar um beijo na careca do portageiro quando nos pede mais 25 cêntimos pela viagem entre Estarreja e Torres Novas. Um indivíduo sóbrio pergunta logo: -Olhe se faz favor, acha que posso voltar atrás, devolver o champanhe, reaver a massa do jantar e fechar o portão à espera de melhores cenários?

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