domingo, 27 de janeiro de 2008

Palhacinhos...


“Olhe, não quer ajudar as crianças desprotegidas?... A pergunta é feita para um tipo não conseguir fugir. Se respondo “Não” é o mesmo que dizer que “não quero ajudar as crianças desprotegidas”, sou um crápula insensível, digno de ser votado ao desprezo público e deixar a consciência entregue a uma carga de 6 sacos de cimento. Se respondo sim, lá tenho de comprar mais um daqueles bonecos de borracha que ficam sem braços à primeira esticadela e que custam 5 euros. Mas é por uma boa causa,… O pior é que a qualquer lado que vá, lá estão mais boas causas para a malta despender umas massas para a protecção de alguém desprotegido. Antigamente sabíamos que existia a Caritas, a Unicef, a Liga Portuguesa contra o cancro, a Cruz vermelha, que até tinham umas latas onde púnhamos a moedita e recebíamos um autocolante na lapela. Era um peditório anual e já estávamos à espera, contribuindo sem reservas. Agora, multiplicam-se organizações de recuperação de tóxico-dependentes, de protecção de menores, de vítimas de furacões, de sapadores de bombeiros, de portadores de doenças raras, de refugiados em África. E agora já não acham muita piada à moedita; agora é mais nota, senão ainda fazem aquela cara de quem está perante um crápula quase sensível mas forreta. A solidariedade é louvável desde que nos deixe respirar um bocadito entre cada contribuição. Na semana passada penso que todos os voluntários dos peditórios combinaram entre si, e, decidiram perseguir-me até à exaustão contributiva. A qualquer loja que fosse, qualquer esquina que virasse, qualquer café que frequentasse, lá estavam eles com bonecos, porta-chaves, blocos, prontos para receber um contributo a favor de uma qualquer causa nobre. Nem no descanso do lar estava a salvo de um toque de campainha e da frase já batida “Não quer ajudar…..?”.
Entrei numa loja, e reparei numa senhora com um nariz de palhaço a pedir a sua contribuição a um casal desprotegido. Afastei-me um pouco, mas fiquei atento à abordagem insistente da senhora. Entre “sorrisos de crianças”, “apoio voluntário”, “oferta solidária”, o casal lá conseguiu ripostar com um “hoje não obrigado!”. A senhora com nariz de palhaço virou-lhes as costas e olhou para outra senhora que passava, fazendo aquela cara de reprovação onde transparece a expressão “olha-me bem estes malandros, que vêm aqui estoirar dinheiro em fatos de treino e não têm uma nota para dar ao palhacinho!” . E o sentimento de culpabilização é tão grande, que eu próprio comecei a pensar “pois é, não custava nada dar uma notita à senhora do nariz vermelho,…” quando caí em mim e percebi “se calhar os tipos estão a ser perseguidos por palhacinhos há uma semana, tal como eu; e estão fartos, tal como eu”. A senhora estava agora livre para um novo ataque e eu, vi-me ali desamparado, à mercê da sua implacável abordagem. Tinha três hipóteses: ou ia ter com ela , dava-lhe a nota em jeito de Hara-kiri e despachava logo a questão; ou passava eu ao ataque com um “Não posso contribuir e veja lá se tira essa bola ridícula do nariz”; ou optava pelo caminho da fuga airosa camuflada entre duas secções de roupa desportiva, esperando que o seu faro felino tapado pelo bola vermelha não descobrisse o cheiro da presa em perigo. Optei pela fuga airosa, para não correr o risco de me sentir um crápula insensível e forreta, porque naquele dia eu não conseguiria dizer que sim, nem que não, a uma senhora simpática com nariz de palhaço.
Mas se existem peditórios organizados por instituições de solidariedade social, também proliferam aqueles realizados por entidades de solidariedade… individual. Estou-me a lembrar daqueles personagens que nos vêem vender pensos rápidos. Mas porquê pensos rápidos? Por serem úteis? Deixa cá ver,…eu não uso um penso rápido há,… ora bem, …mais ou menos… 30 anos. Depois a escolha nem é muito inteligente; augura um sentimento de flagelação a quem os compra do tipo “Ó senhor, compre estes pensos, que vai precisar deles quando tropeçar no degrau do passeio ali da frente e fazer uma ferida na cabeça!...”. De qualquer das formas, pela multiplicação de tanto palhacinho à espera da nota, qualquer dia aparece, com a lata ao pescoço, um voluntário da Associação de Vítimas dos Peditórios, entidade que visa recuperar indivíduos que se empenharam financeiramente para responder ao empenhamento manifestado por todos os palhacinhos à cata do ofertório. Esses indivíduos necessitam de uma terapia específica no sentido de os conseguir pôr a dizer “Não! Hoje não contribuo mais! Deixem-me em paz!...E já agora, não acha que esse nariz lhe dá um ar um pouco ridículo?”
Lembrei-me agora daquele senhor velhinho, sem nariz de palhaço, com corpo magro e rugas vincadas por uma vida dura. Lembrei-me agora da cara de felicidade e do abraço que deu ao meu filho quando recebeu aquela lata de atum, o chocolate com nozes e um pacote de leite. Aí, sem intermediários mascarados, podemos sentir genuíno alcance de uma insignificante acção solidária...

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