sábado, 19 de julho de 2008

Comichões

Não sei quem disse que um homem só materializa a sua existência depois de plantar uma árvore, fazer um filho e escrever um livro. Depois de ter plantado algumas árvores, de ter contribuido para a produção de duas magníficas crianças, decidi compilar algumas das minhas crónicas e editar um livro de devaneios. Curiosamente, depois de me olhar várias vezes ao espelho, tentar imitar a voz de um másculo tenor ou de ter espreitado para o interior das calças, não notei grandes alterações existenciais, que corroborassem a teoria de que agora é que sou um homem a valer. Depois de pensar muito, sem grandes respostas, ...mas querem ver que é por causa do trabalho para os conseguir? Nããã... Pensando no trabalho, é curioso como esse três vértices da existência humana o têm incluido na sua génese. O trabalho para se fazer um filho é pouco (e até dá algum gozo), mas o trabalho para o criar é muito; no caso da árvore, existe um certo equilíbrio de esforço: Dá trabalho a plantar e dá trabalho depois de plantar (com as regas e as podas). No caso do livro, a relação apresenta-se algo inversa à da procriação, dando trabalho antes de editar e nenhum trabalho depois da coisa estar feita. Bom mas sem chegar a qualquer tipo de conclusão, a não ser que a existência dependerá de obras bastante mais magnânimes do que estas, aqui deixo a capa do meu livro e o seu prefácio....

A comichão é tramada. Mas aquela era particularmente tramada. Numa comichão normal, apenas tramada, existe um misto de incómodo e de prazer; chateia quando aparece, mas depois de uma boa coçadela, transforma-se em alívio, quase sempre acompanhado por um sonoro e descomprimido ahhhhh. A comichão que me assolava naqueles dias não tinha nada de normal. Não era despoletada pela mordidela de uma pulga, a picadela de um mosquito ou o contacto com uma erva daninha. Não atingia uma área específica do corpo, nem mostrava sinais de abrandamento perante as minhas vigorosas coçadelas. Pus-me a pensar, pensei mais um pouco e cheguei à conclusão que a comichão aparecia quando pensava demais. Estes surtos de urticária neural surgiam sempre que a minha mente decidia vaguear pelos meandros mais intrincados das nossas vivências sociais. Depois de muito penar, lá descobri o antídoto para essa minha irritadiça comichão: a escrita. Nunca tinha escrito nada de relevante até ao dia da primeira comichão mais que tramada. Depois desse dia continuei a não escrever nada de relevante, mas aquilo aliviava o prurido. Era uma espécie de terapia anti-coceira. Foi então que, em jeito de catarse, me pus a escrever umas coisas, sobre coisas que me causavam comichão. E é a magnitude da comichão que decide o tipo de escrita. Se o agente alergénio for de grande porte, a puxar para a sarna, a escrita descamba numa expressão rude de sentimentos do tipo antibiótico de largo espectro. No caso da ténue comichão, do tipo cóceguinha atrás da orelha, basta uma suave escrita “aspirina” para que os sintomas rapidamente se dissipem.
Quando pensei que os meus rudimentares escritos ficassem perdidos algures entre a escrivaninha e os gatafunhos infantis dos meus filhos, alguém leu um desses desabafos e pediu-me para os editar no Jornal Torrejano. E foi assim que dei em cronista. Podia ter dado em coisas piores . Eu acho que depois da minha segunda crónica, já o João Lopes tinha ficado arrependido de me ter endereçado o convite, mas nunca teve coragem de me dizer: “Desculpa lá, mas os teus gatafunhos ficam bem é no meio dos gatafunhos dos teus filhos!”. Então, essa pedra no sapato do JT foi-se mantendo por nove longos anos, durante os quais fui descobrindo o efeito secundário em alguns dos escassos leitores das minhas crónicas: uma terrível e prolongada comichão(?). É verdade, eu deixava de ter coceira porque escrevia, e o leitor passava a coçar-se porque lia. Até que cheguei a este ponto de loucura extrema ao decidir compilar alguns desses devaneios escritos, neste livro de gatafunhos terapêuticos para a comichão.
Ainda pensei em convidar um escritor a sério para fazer o prefácio do meu livro, mas não tive coragem. Por muito menos, já vi grandes personalidades arruinarem o seu aparente inabalável prestígio. Assim, coube-me a mim, apresentar esta obra literária de média…vá… de pouca envergadura, desta maneira algo comichosa.
A forma como as crónicas serão apresentadas, não obedece a qualquer tipo de organização. É que eu nunca fui lá muito arrumadinho, para desgosto dos que comigo convivem. No meio do caos, preocupei-me apenas em colocar para abrir, uma das piores e mais deprimentes crónicas, no sentido de garantir que, à medida que se avança pelas restantes páginas, a qualidade será sempre melhor.
Como última nota, apenas a recomendação para, no caso do leitor sentir em algum momento uma irritadiça comichão, o favor de fechar o livro e esperar que passe sem se coçar muito.

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