sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A sociedade do enchido


Preparava-me para deitar o dente na rodela de chouriço afogada entre feijões e chispe que sobressaía no meio daquela calórica dobrada à transmontana. Espetei-lhe o garfo e olhei-a com um sentimento misto de apetite e complacência. O apetite venceu a complacência, e o paladar saboreou de forma alarve os seus ingredientes. A complacência deu lugar à compaixão, mas já era tarde; a essa hora já o pobre do enchido estava a ser trucidado pelo poder corrosivo dos sucos gástricos. Essa sensação de algum constrangimento surgiu porque por momentos coloquei-me na pele do chouriço, ou melhor dentro da pele do chouriço. Eu sei que pode parecer bizarro, que tinha muito mais dignidade colocar-me na pele de um eminente cientista, de um reconhecido ensaísta, mas todos temos uma faceta deprimente e a minha manifestou-se no interior do próprio do enchido. Pus-me no lugar de um daqueles pedaços de carne que são empurrados à força pela tripa adentro. Está-se ali com o nariz encostado às paredes internas da tripa e mandam-nos com infindáveis pedaços de carne para cima criando uma sensação similar à dos utilizadores de um autocarro da Carris em hora de ponta . Quando se pensa que não existirá maior compressão possível, alguém diz “Dêem aí mais um jeitinho!” e manda com mais uns bocados de toucinho, de gordura hidrogenada, de sangue de suíno, cebola, “Elá! Agora pisaste-me os joanetes! Já chega de empurrão, não?...”. “Não! É só mais um bocadinho!”. Ainda faltam mais uns apertões. Vem lá o sal, muitos grãos de sal, quais miúdos da creche invadindo histéricos a tripa. Já não respiramos e estamos quase surdos com os grãos de sal invadindo-nos as carnes e ainda mandam os antioxidantes. Não valia a pena, até porque com o aperto, as carnes não têm qualquer hipótese de se oxigenar. Chegámos ao limite. Estamos colados uns aos outros no meio daquela massa gordurosa e ouvimos ao longe “Aperta aí mais um bocadinho! É só mais um jeitinho!” e, como machadada final mandam os conservantes. “Conservantes é que não! Não quero ser conservado aqui colado ao toucinho!” E parece que os conservantes são só veneno. A toxicidade de um E333 está ao nível de um indivíduo que entra a fumar charuto numa casa de banho apinhada de gente.
Pensarão os leitores se este tipo não poderia limitar-se a digerir a rodela do chouriço em paz e deixá-los a eles em paz, com dissertações sobre os meandros do enchido. Lembrei-me das carnes compactadas dentro da tripa quando estive à conversa com uma senhora amiga. Dizia-me ela que o patrão lhe pediu para que fizesse mais umas horitas extras. Agora sairia de casa às 6.30h e chegaria a casa por volta das 21h. Aquilo soou-me mal e saiu-me um indignado “mas que trampa de vida é essa?”. Ela respondeu-me com um sorriso resignado “Ao menos tenho um emprego!...”. E foi aí que eu pensei no enchido como forma de caracterizar a sociedade actual. Uma sociedade cheia de tecnologia que deveria evoluir no sentido de nos facultar mais qualidade de vida, brinda-nos com “Só mais um bocadinho…”. E quando pensamos em mais um bocadinho de lazer, dão-nos mais um bocadinho de trabalho; aspiramos a mais um bocadinho de poder de compra e brindam-nos com mais um bocadinho de impostos; precisamos de mais um bocadinho de espaço e empurram-nos para o interior de uma tripa exígua cheia de gordura hidrogenada . Mas o mais estranho, é o cidadão estar ali todo comprimido dentro daquele preservativo visceral à cunha e, ao invés de dar uma canelada no toucinho que lhe puseram ao colo, acena com a mão, que levanta com dificuldade no meio do aperto, e diz que “com mais um jeitinho ainda cabem aqui à vontade mais duas dúzias de aditivos”. E qual a recompensa para um senhor resignado que é apertado “só mais um bocadinho” todos os dias ao longo da vida, quando pensa que já merece a reforma? Põem-no no fumeiro. Não bastava um tipo aguentar o odor a sovaco das outras compactadas carnes, ver-se afogado no sangue do suíno, asfixiado contra a tripa e ainda o colocam, aos 70 anos, pendurado num pau a inspirar toda aquela fumarada, dizendo-lhe que é desta que vai ficar saboroso.
É por isso que eu nutro uma admiração especial pelas alheiras da minha tia. Ao menos essas carnes, quando começam a sentir o calor da fritura debaixo dos seus pés e os apertões dos outros “bocadinhos” colados a si, tratam de irromper furiosos pela frágil tripa. Apesar de não gostarmos muito de ver a alheira a “rebentar”, deveríamos congratular-nos por termos a sorte de assistir ao vivo a um acto genuíno de revolta, protagonizado por pedaços de carne que deixaram de achar piada ao insistente repto : “É só mais um bocadinho!...”

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