Tenho onze
ovelhas a comer a erva do meu terreno. Fiquem os benfiquistas descansados que
não se trata de qualquer referência ovina a uma tal equipa bafejada pelo azar
dos momentos finais. Até porque ser ovelha não é sinónimo de azar; a não ser
quando a metem na carrinha rumo ao matadouro. Por falar em matadouro, afinal já
não são onze ovelhas, porque uma teve o azar de embarcar na tal carrinha. Não,
e não foi porque se portou mal ou por
ter sido agressiva (parece que existe uma raça de ovelhas paraguaias que
costumam investir sobre os donos); o animal estava muito doente e cabisbaixo.

Confinei as
bichas a metade do terreno, e elas trataram de meter a sua dentição trituradora
em acção, a um ritmo de 50 gramas de feno por segundo, ou seja, muito feno
em pouco tempo. E se a ovelha tem
apetite. Parece mesmo ser o seu único objectivo na vida pré-matadouro;
“Deixa-me encher o bandulho, porque ao menos, quando me quiserem fazer a folha,
terão de acartar com mais uns quilos sobre os costázios”. Basicamente a ovelha
come, rumina e dorme. Não joga ás cartas, não comenta a roupa da vizinha, não
diz mal do treinador Jesus, não ouve comentadores desportivos. Aos poucos
comecei a perceber que nutria algumas afinidades com as bichas: o prazer em
dormir e comer (ainda não consigo ruminar) e a apetência pelo verde como cor dominante. A ovelha está
a trucidar o pasto seco e amarelado pelo peso das suas patas e a mandar o olho
ao resplandecente verde que lhe acena do outro lado da vedação. Uma verdadeira
crueldade. Como a imagem de um sem
abrigo a roer uma côdea seca, encostado ao vidro de uma churrascaria a ver
coxas de frango saírem do carvão rumo ao prato de outros. A fronteira definida
pela rede ovelheira separa o seco do frondoso, o insonso do temperado, o
sensaborão do apetitoso. E é ver as bichas trincando o pasto seco dia e noite,
tristes e cabisbaixas, sonhando com o dia em que a vedação vem abaixo e
conseguem alcançar o éden vegetal. Percebi ainda melhor essa obsessão pelo
verde, quando peguei no serrote e as vi correr desenfreadas rumo à vedação.
Será que confundiram o verde do serrote com o verde de uma alface? Não. As ovelhas percebem que a imagem do
serrote, antecede o som do serrote, que antecede o ruído de um ramo cheio de
folhas verdes a cair no chão, que antecede
o momento da folha da oliveira a passar pelas suas papilas gustativas. E
aí estavam elas todas pimponas a lançar pelas goelas, desenfreados mééés e a
esfregarem as patas por um daqueles bitoques em forma de rama. Serrei o ramo e
os méééés aumentavam de volume. Arrastei a folhagem para o outro lado da
vedação e as bichas acotovelavam-se quais refugiados num campo da Somália e
trucidavam-na num abrir e fechar de olhos.
Ao ver aquele cenário, não consegui de deixar de pensar no significado
da fronteira entre o seco e o verde. Lembrei-me que aquela vedação poderia
representar a linha que separa Portugal dos seus “parceiros” europeus. Nós,
umas ovelhinhas famintas rapando a erva seca misturada com grãos de terra, e
eles, uns empertigados cavalos puro sangue
que passeiam e largam bosta sobre um prado verdinho, a que o borrego
faminto chamaria um figo. Nós, rapando o fundo das contas bancárias para
conseguir pagar todas as facturas mensais, e eles, enchendo os depósitos dos
Mercedes para rumar às suas casas de férias na Baviera.
Naquela tarde
serrei alguns ramos, mas só enviei para a boca das ovelhas alguns deles, não
fossem elas habituarem-se ao bem bom do verdinho e deixarem o prado seco para
outro ruminantes. Ao fazer uma fogueira com outros dos ramos serrados, senti-me
mal. Ali estavam elas de cabeças espetadas na vedação com o olhar colado na
rama verde e eu, queimando o seu sonho alimentar. Senti-me um malvado “Merkel”
, que grita: “Queriam estas folhas verdinhas no bucho?...vão mas é rapar o
pasto seco que paparam em menos de um fósforo!...Quando o pasto seco
acabar?...pode ser que vos envie mais uns quantos raminhos de oliveira, mas
poucos, para não se habituarem à fartura…”.
A crueldade
suprema é que a ovelha vê, pelos buracos da vedação, que logo ali tão pertinho
o petisco existe. E se se erguesse um
muro que impossibilitasse a visão do bicho? Ou então uns óculos pintados de
verde para que o animal visse o amarelo em tons esverdeados?...Não resulta,
porque a ovelha tem olfacto e porque já viu, cheirou e trincou o que existe do
outro lado da vedação. O curioso é que a ovelha permanece ali passiva, sem
empurrar a vedação, roendo desconsolada a erva seca e o torrão, à espera que
alguém lhe lance um raminho cheio de folhas verdes.
Um comentário:
Se as ovelhas aprendem a ler e acedem a este Teu texto, ainda chamam a "amiga" Paraguaia, mandam a cerca abaixo e dão-to uma carga de porrada tipo Proença no Colombo :-)
Mais um belo texto.
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